Vigésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 27 de Julho de 2015.
Pôr a carta no correio... na guerra!
Os CTT’s em Mansoa estavam localizados na rua onde,
ao fundo, existiam aqueles riachos enlameados que
despertavam as canoas do nosso amigo Iafane, que
andavam à deriva por altura da maré cheia, talvez
querendo fugir, libertando-se dos sonhos do seu dono
que estavam interligados num fluxo sinuoso, pois a sua
Guiné era um refúgio seguro, onde podia ter relações
legalmente, quase como se fosse um casamento, com
três, quatro ou cinco mulheres, onde, como já dissemos
em textos anteriores, a sua acção era ignorada, fazia
parte da história colonial, daquele braço português de
opressão racial e subjugação dos civis guinéus, longe da
velha Europa, do resto do mundo, na altura, em algumas
zonas, profundamente racista, mas felizmente, a
simpática funcionária dos CTT’s em Mansoa era uma
senhora africana que usava permanente, pintava os lábios,
arranjava as unhas, usando roupas estilo quase europeu,
mostrando, pelo menos para nós, um sorriso no
atendimento e, cremos que não andaremos longe da
verdade, se dissermos que devia de ser só ela a esposa
do seu marido, pois ele acompanhava-a sempre quando
iam à missa, pelo menos ao domingo, onde também iam
as filhas do Libanês que inundavam a igreja com aquele
perfume exótico.
Falar dos CTT’s de Mansoa é falar de jornadas de
história do movimento que passou a ter com o
nascimento da guerra colonial, com a presença dos
militares, principalmente os vindos da Europa, os
canteiros das ruas e os troncos de algumas árvores
estavam pintados de branco, havia alguma ordem e
arrumação pública, talvez fosse o lado menos mau da
guerra, podemos dizer que era o outro lado da moeda,
mas o aumento do seu movimento, tal como por aqui nos
USA, quando surgiu o Pony Express, que foi estimulado
pela ameaça da Guerra Civil e havia necessidade de uma
comunicação mais rápida com o Ocidente.
Não queremos, mais uma vez, lembrar o furriel Honório
que rasava, com a sua avioneta do correio, a árvore
grande que existia no aquartelamento, que foi baptizada
por “a mangueira do Setúbal”, que tinha na sua base
muitas gaiolas de macacos e periquitos, que faziam um
barulho estrondoso, anunciando a chegada do correio,
pois isto era lembrar cenário de guerra, mas podemos
dizer que quase todas as semanas íamos aos CTT’s de
Mansoa comprar selos para enviar cartas com
fotografias para familiares e amigos, não só para nosso
uso como para companheiros que estavam nas suas
tarefas e nos pediam. Cremos que os aerogramas que
eram entregues no aquartelamento, com a ajuda do furriel
Honório, viajavam mais rápidos que as cartas que se
entregavam nos CTT’s e, mesmo assim, deviam
demorar muito menos tempo do que o serviço do Pony
Express, que consistia em homens montados a cavalo
transportando alforjes de correio, através de um trilho de
mais de 2000 milhas, serviço que abriu oficialmente em
Abril de 1860, que começou a ter carreiras
simultaneamente a partir de St. Joseph, no estado de
Missouri, e Sacramento, no estado da Califórnia. A
primeira viagem no sentido oeste foi feita em 9 dias e 23
horas e a viagem em sentido contrário, em 11 dias e 12 horas.
Na altura, eram as colunas militares que levavam as
cartas e encomendas para Bissau, daí não devia haver muito perigo para irem de barco ou avião para a
Europa, não como o Pony Express, que naquele percurso,
tinha mais de 100 estações, cerca de 90 homens
treinados para andarem a cavalo, assim como entre 400 e
500 cavalos, cuja via expressa era extremamente
perigosa, todavia nunca foi perdida uma entrega, mas
este serviço durou apenas 19 meses, até Outubro de
1861, quando a conclusão da linha Pacific Telegraph
terminou com a necessidade da sua existência. Era uma
novidade, todos invocavam as notícias do Pony Express,
principalmente durante os primeiros dias da Guerra Civil
e, esta linha a cavalo, nunca foi um sucesso financeiro,
levando os seus fundadores à falência, no entanto, o
drama romântico em torno do Pony Express tornou-se
uma parte da lenda do Oeste Americano.
Telefonar dos CTT’s de Mansoa talvez fosse possível,
a nós nunca nos passou pela cabeça tal aventura, pois na
nossa aldeia, na vertente da montanha do Caramulo,
onde a crosta terrestre, lentamente começava a ser plana,
flutuando por perto as zonas ribeirinhas do rio Águeda,
onde pela noite, não havendo luz eléctrica, se a terra
tremesse, nascendo dos céus uma pequena luz, que seria
uma qualquer estrela, mas talvez uma estrela nova,
daquelas que fazem oscilar um continente, ninguém dava
por isso, talvez na reunião da capela, na missa do
próximo domingo, o senhor padre, com ar muito
responsável, vestindo um traje preto, nos dissesse que o
“Nosso Deus”, lá nas alturas, não gostava do nosso
procedimento, estava zangado e teríamos que rezar, fazer
mais sacrifícios, contribuir com mais donativos, baixar a
cabeça, render homenagem aos senhores da aldeia e da
vila, que eram os bons, os melhores, que só tinham
intenção de nos fazer bem, pois todos os habitantes da
aldeia não sabiam que o resto do mundo existia, pois não
havia telefone.
Tony Borie, Julho de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 26 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14933: Libertando-me (Tony Borié) (27): Todos temos um rio, eu tenho quatro: o Águeda, em Portugal; o Mansoa, na Guiné e os Passaic e o Yukon, nos Estados Unidos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Interessante Tony essa das nossas aldeias sem luz e sem telefone e com o padre de roupa preta.
A tua memória não e curta, ao contrário da maioria dos portugueses, principalmente quem nunca teve que emigrar.
Tony, talvez te fizesse bem para a tua "cultura geral" uma visita esse Portugal que conheces-te, que seria difícil re-encontrares.
Esse Portugal interior não melhorou, simplesmente extinguiu-se, foi remédio fatal.
Tem telefone, não tem padre de roupa preta, mas não tem gente.
Cumprimentos.
Caro Tony
Essa do 'correio de Mansoa' e o 'Pony Express' está bem esgalhada....
Sim, é verdade que o 'Pony Express' faz parte do imaginário do 'velho Oeste' e que ainda hoje, quem 'viveu' as 'coboiadas' no cinema, não deixa de relacionar esses esforçados pioneiros como alguém que superava solitariamente todas as adversidades que lhe apareciam pela frente, já agora, quase como aqueles camaradas que na Guiné também o faziam em relação às suas dificuldades.
Quanto ao panorama que o Rosinha traça do interior do território estará um tanto 'empolado' mas tem tendências para isso....
Hélder S.
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