3 anos nas Forças Armadas (4)
Cacine
Tinha um pequeno porto que já não me lembro a função dele pois as LGD’s faziam o seu descarregamento na praia.
O interior do quartel era composto duma avenida ladeada de palmeiras que incutia um ambiente próprio de zona equatorial. Desde a margem do rio até à saída do quartel, desembocando na aldeia, o panorama arborizado inspirava-nos de modo a abstrairmo-nos do monstro que era a guerra. Para além das palmeiras havia muitas árvores de fruta, bananeiras, mangueiras, laranjeiras e muitas outras. O nosso quartel era um lugar aprazível e a restrição de entrada do pessoal da tabanca não era rigoroso pois por volta das 16 horas lembro-me de lhes comprar mancarra (amendoim) do qual fazia o meu lanche acompanhado com uma cerveja. Nos dias de batuque na tabanca também íamos ver e tomar parte. Havia um comerciante que abastecia a população e até onde se ia muitas vezes. O administrador do posto, um cabo-verdiano, fazia parte do convívio e lembro-me que no fim da comissão nos preparou umas boas refeições de frango de caril. Ele vivia com a mulher.
O nosso convívio com a malta do pelotão era intrínseco criando-se uma forte amizade baseada nas circunstâncias da guerra e onde os longos convívios faziam brotar uma certa espiritualidade de onde nascia o saber ouvir o outro desfilando na memória do tempo rasgos de facetas de vidas duras passadas na terra de origem. Os problemas individuais desfilavam como contos de histórias e uma vez foi a sério e chegou longe demais. A namorada escreveu a informar que o namoro acabara. Longe, isolado, sem nada poder participar e ouvir directamente o que se passava a imaginação alcançava situações à maneira dele e foi de tal ordem que se abordou da beira rio e desvairado começou a disparar a G3. Já não me lembro quem foi ter com ele onde o imprevisto poderia acontecer mas que resultou em bem.
Cacine era o local onde se passava cerca de dois anos envolvidos na mística da guerra. Os nossos aposentos deviam ser precários que nem me lembro como estávamos acomodados. Todos os meses fazíamos rotação entre Cameconde e Cacine. Por isso devíamos andar sempre com a roupa atrás de nós.
O desporto era sempre um motivo para estarmos activos e o futebol era o que era mais requerido por todos. Um desporto barato porque são muitos atrás de uma bola cujo preço a dividir pelos que jogam e a sua duração dá como resultado uns tostões a cada um.
Formar equipas não era difícil entre mais de meia centena de pessoas porque a outra estava noutro lado. A disputa entre sectores era aliciante. E depois de um bom desafio de futebol um bom banho de água tirada por uma bomba sabia bem. O balneário era público feito de bidões enchidos a partir dum Unimog. Cada sector tinha o seu balneário.
De Fevereiro ao Natal de setenta o tempo passou-se. A alternância entre Cacine e Cameconde dava para variar um pouco. Quem estava em Cacine fazia os patrulhamentos até Cameconde e quem estava em Cameconde fazia-os para além em direcção à fronteira com a Guiné Konacry. A alimentação constava muitas vezes de peixe pescado na zona ou de carne arranjada por caçadores locais e até de elementos da milícia. Eram alturas de convívio em que faziam parte o comerciante local assim como o PIDE.
Ao longo do ano e conforme a estação sabia bem fazer as refeições ao ar livre debaixo duma boa sombra. A companhia dividida em quatro pelotões de 25 soldados entre os quais 12 cabos, 12 furriéis e 4 alferes juntava-lhe o pelotão das Daimlers. Sargentos havia 3. O capitão era o Magalhães. O nosso capitão foi do melhor que se pode arranjar no exército português. Fomos e voltamos todos e nesta pequena frase está tudo resumido.
Já não me lembro bem quando tirei as minhas primeiras férias as quais foram passadas em S. Miguel. Apanhava-se a avioneta para Bissau e daqui um avião da TAP para Lisboa e depois S. Miguel. Pormenores já não me lembro. Não me recordo por exemplo o preço da avioneta para Bissau nem a passagem para Lisboa e S. Miguel. Sei que ganhava naquela altura cerca de sete mil escudos. Transferia cinco mil para os Açores dos quais dava mil aos meus pais. Ficava com dois mil para as minhas despesas. Tinha que pagar a lavadeira, as bebidas fora das refeições, a mancarra e sei lá que mais. Fui duas vezes para Bissau através dum artigo do RDM que me dava 5 dias indo para o hotel que já nem sei o nome. Em Bissau percorríamos a cidade entrando nas esplanadas onde a cerveja era servida com um prato de sobremesa com camarões. À noite o serão era passado num quartel onde se jogava o bingo. Havia bons prémios tais como frigoríficos.
Passar a tropa no mato ou na retaguarda fazia a diferença. Neste contexto os nossos miolos começavam a fazer muitas perguntas. O por quê disto assim! Com que direito a situação desta guerra gerava um conjunto onde muitos seres humanos se debatiam consigo próprios a respeito da sua existência e para que servia ela. Defender a pátria ou interesses de alguns que se serviam da pátria para fins obscuros que no fundo não passava de dinheiro e bem estar à custa da vida de seres humanos. Olhando a história ela está eivada de guerras e o homem não aprende a viver sem ela. É a lei da selva, a lei do mais forte, os que não têm consciência, sobrepondo-se aos que a têm. Espero bem que um dia os dirigentes políticos sejam obrigados a passar por uma instituição religiosa para formarem a sua consciência para não ouvirmos de muitos políticos que têm a consciência tranquila quando o mais comum dos cidadãos sabe que é exactamente o contrário. Esta relatividade tem que ser bem definida. Deve ser proibido países serem governados por um Hitler, por toda a espécie de ditadores mesmo por um Bush.
Mas voltemos a Cacine para falar dum pelotão de milícias. Era uma tropa civil que na Guiné servia para fazer a picada dos caminhos e trilhos por ode se passava. Eram detectores de minas. Por acaso enquanto estive nesta guerra não me lembro de alguma mina ter sido despoletada. Dos 23 meses que ali estivemos, estive dois de férias e dois a tapar buracos em outras duas companhias. Mas neste pelotão havia de tudo um pouco. Havia os revoltados mais conscientes da situação que chegavam ao ponto de serem vergastados por lutarem por uma justa causa mas que na altura ponham em risco a sua sociedade. Era a ditadura. Os chefes da tabanca sabiam com quem estavam a lidar e colocar em risco de vida uma população ou alguns deles era periclitante sair fora da visão Salazarista. Sei dum caso em que foi bem vergastado. No entanto havia outros tipos de seres humanos e deixei bons amigos sendo um deles o Salifo Dabó.
Era um meio de subsistência ser-se integrado nesta tropa civil porque nunca soube como se vivia em lugares destes sem uma agricultura. Uma vez dei comigo num terreno onde estava a trabalhar um nativo tentando retirar alguma coisa da terra depois de fazer uma queimada. Um terreno cheio de tocas de árvores queimadas. Ele estava irritado e zangado. Mais para os arredores e mais longe dos espaços da tropa havia aquilo que antigamente parecia terrenos de muita fruta.
A milícia era um pelotão de nativos que por eles iam passando as mais diversas companhias e certamente já cansados de andarem a repetir a mesma lição dezenas de vezes.
A população vivia em palhotas no aldeamento ao lado do quartel, para o interior do terreno. O contacto é coisa que se vai fazendo e adquirindo no bom ou mau sentido consoante a mensagem que transmitimos. Muito longe da mentalidade objectiva do tempo estava eu, formado numa congregação religiosa, transmitindo uma sã cordialidade de modo a conseguir um bom relacionamento com as pessoas. Não foi fácil nem possível, tirando algumas excepções. O diálogo era sempre à base da desconfiança. Os mais velhos e responsáveis pela população, os religiosos e homens do povo, esquivavam-se e normalmente não apareciam. Falar com eles era pior que ter uma audiência com o presidente da república. Por isso, fora desse ciclo mas certamente com a prevenção deles, apareciam as crianças e jovens. Em todas as situações do planeta as crianças são sempre as mais espontâneas e certamente por isso as que mais sofrem.
Esta “bajuda”, termo para rapariga ou menina, era filha dum milícia que lavava a minha roupa.
Algumas mulheres dos milícias apareciam com as suas crianças às costas. Fui nomeado para estar à frente deste grupo apesar de não ter isso muito em conta pois eles tinham o seu dirigente.
O meu amigo Salifo Dabó com a sua irmã
O meu amigo Salifo Dabó, um milícia e três bajudas
Makissa, uma criança filha dum milícia, penso que pai da moça que me lavava a roupa, já não me lembro, e que dediquei muita da minha atenção. Com autorização do capitão e dos pais levava-a para o quartel onde a mimava com o que havia de comestíveis, chocolates, e bebidas gasosas etc. A transpiração era um dos cuidados a ter. Dava-lhe banho, levava-a para a messe dos oficiais e estava connosco parte da tarde.
Hoje pergunto onde estará essa criança. Será que é viva? Sabe-se que após a independência foram mortos, por vingança, muitos dos milícias espalhados por toda a Guiné. Se alguém souber do paradeiro da Makissa, eu gostaria de saber.
Outra coisa curiosa que aconteceu em Cacine foi a visita duns jornalistas, penso que alemães, acompanhados por uma patente militar e sempre debaixo de olho e que me entrevistaram com uma série de perguntas que já nem me lembro sobre a situação da guerra. A Makissa estava comigo nesses momentos. Outra situação que gostaria de saber por onde anda a reportagem desses jornalistas.
Estávamos a esfregar as mãos de contentes porque estava a chegar o fim da comissão quando nos aparece um major com um plano maquiavélico para fazermos uma operação bem para o interior e para sul. Foi coisa que ainda não nos tinha acontecido. Não nos queriam deixar sair de Cacine sem um rebuçado destes. Todo o aparato foi montado e não sei quantos pelotões saíram mato dentro com um esquema que o capitão tinha em seu poder. Pormenores não me lembro mas certamente comunicados a nós sem fazer a mínima ideia da realidade do terreno. Alguém sabia o caminho e como tal lá nos embrenhamos por atalhos durante horas. A dada altura chamaram-se lá da frente com mensagem passada ao de trás. Era uma mina anti pessoal que era preciso desmontar. Lembro-me de ter nas minhas mãos o detonador. A dada altura paramos. Uma avioneta percorreu o espaço por cima de nós. Mais tarde resolveram ir buscar-nos de batelão. A maré já estava vazia e foi longe que nos deixaram entrando lodo dentro, patinhando, de modo a chegarmos ao quartel.
Texto e fotos: © Tibério Borges
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine
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