1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:
Queridos amigos,
É uma obra magnífica, duríssima, questiona-se a todo o momento como é que um romance desta envergadura não voltou à guerra, seja no romance, conto ou poesia. É facto que leu muito, em todos os quadrantes da guerra, o que lhe permitiu elaborar uma obra de referência, “Os Anos da Guerra”, de 1988, foi o pioneiro e devemos-lhe obra muitíssimo asseada.
Falando por mim, deu-me pistas valiosas para o livro que escrevi sobre a literatura da guerra da Guiné. No meio da brutalidade e das descrições horrendas, João de Melo ascende ao volteio poético, e permitam-me este exemplo magnífico, em jeito de quase despedida: “Eu, soldado ocidental, demoro aqui os olhos: uma seta voa ao encontro dos sítios, do seu conhecimento. sirvo-me dos morros de Calambata, da Canda (a serra azul), da Binda (as tagarelas árvores-garrafas) e bebo a invenção destes nomes. sentei-me na noite, em Calambata, com um cigarro suspenso da ferida visível do rosto e de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias desta guerra”.
Um abraço do
Mário
Autópsia de Um Mar de Ruínas (3), por João de Melo
Beja Santos
Em Calambata, vai crescendo a tensão emocional, os mortos por ali andam, em bolandas, aguardam transporte que tarda em chegar. Na sanzala sonha-se, estão a chegar os dias de pesar o café e receber nas mãos o dinheiro quente. Já se sabe que vão chegar as grandes bebedeiras, o que sobrar não dará para o ano todo. É nisto que uma espetacular queimada vem alvoraçar Calambata. E volta o ramerrão, a mansidão dos dias, tal como vai ser vivida na messe de sargentos:
“O Furriel Silvares sorvia e mastigava a cerveja morta, com a repugnância de quem estivesse bebendo a própria urina – e o carão habitualmente rubro de Octávio enchera-se de covas vivas. Apenas o furriel das transmissões dormitava no seu canto, de novo desesperado, sem saber por que motivo a cortiça do cérebro não cedia já ao torpor e à hipnose do álcool, ao uísque e ao martini, ao gin tónico com uma rodela de limão; Tavares escrevia uma nova página do seu diário de campanha, memórias de guerra sobre o título de De Como Nos Fomos A Eles Em África E Asinha Os Tornámos Escravos Nossos E De Nossa Única Vontade; escrevia em duplicado, com um químico, sendo o original para a mulher e a cópia para guardar num cofre de folha retangular. De uma forma geral, estavam para ali, tardes inteiras, e não falavam, por quanto já nada havia para dizer, nem o jogo das cartas servia de pretexto para empurrar o tempo e as palavras”.
E abruptamente a guerra reacendeu-se, as minas rebentavam em todas as picadas matando homens e Berliets. Chegaram tropas de intervenção de Luanda, tomaram conta de todo o Norte, parecia que a guerrilha queria aniquilar a cidade de São Salvador, a população pôs-se ao trabalho, construiu abrigos e valas. Começa a espera, prevê-se que a próxima grande flagelação será Calambata. É neste contexto que João de Melo escreve belíssimas páginas sobre o amor, antológicas:
“Nas mãos incertas do meu amor repousarão algumas das palavras. Escrevo-as nuns transparentes, levíssimos aerogramas de um azul de anjos, porque vem avião, são três da tarde e o amor desespera tanto. Ninguém melhor do que tu, amor, lembrará vivo. São três da tarde e eu de ti tão sedento como da água que pudesse caber nos mares do deserto. Sou porém um homem com mãos de cedro (…). Porque demoram tanto os abomináveis sargentos-de-dia a distribuição do correio? Não sabem, não saberão nunca, amor, que uma carta não tem só a importância de ser escrita. Abre-me os lençóis para que o sono te doa como um címbalo acordado em Lisboa. Falas-me de um país às três da tarde, 1972, e nunca foi tão triste o mês de Novembro (…).
… eis meus dias serenos, parados iguais: um exílio de homem na guerra, enquanto acredita no amor, amor, tem seus recados e não conhece outros países. Por isso te digo que em tudo há um tempo e um lugar para ele até que o amor ausente seja um canto. Este canto ausente és tu, amor, e só a ti o digo, escrevendo-o com o abandono e o desamparo de um sentimento de amor que há de ser sempre maior do que a minha vida”.
A brutalidade começa a tomar conta dos militares de Calambata, são as lavadeiras quem pagam, as chuvas são imensas, as gentes das sanzalas andam apressadas a proteger o café. Cresciam as nuvens, uma bravia tempestade rebentou, tal e qual um estrondo de guerra. “E quando, finalmente, essa chuva rompeu, as pessoas calaram sua boca de repente e ficaram a pensar as pedradas de granizo davam gozo ouvir no silêncio porque adormeciam por dentro. Pouco a pouco, pelo chão, a água formava poças, levava consigo o lixo e as areias e ficava tão avermelhada como o sangue que podia escorrer das feridas das pessoas”. O envolvimento do escritor com a vida dura dos nativos é permanente, pela sua voz ouvimos os anseios, as promessas e as esperanças nos dias melhores. A realidade é dura, a comida falta e os meninos lá vão ao quartel buscar a comida para o jantar.
Os meses passam, a fadiga toma conta de todos, é bem patente naqueles patrulhamentos de vários dias:
“Eram vinte e sete homens destroçados, vencidos pelo cansaço de três dias de marcha através da selva. Trazida na memória do corpo, e vinda de todos os meses que levavam já daquelas andanças, a fadiga reduzira-os à condição de peregrinos da própria terra que pisavam. À ordem de parar, deixaram-se logo cair para o chão, com tudo o que transportavam às costas: armas e granadas, bornais de campanha com panos de tenda e um cobertor, algumas caixas de ração de combate, colchões pneumáticos, os cantis, uma ou outra lata de cerveja. Colava-se-lhes o cabelo à testa e ao pescoço – e nos rostos empoeirados, com sulcos de transpiração que pareciam mascará-los, alastrava agora um fogo convulso e sanguíneo, de uma cor afiambrada”.
São patrulhamentos incessantes, evita-se a todo o transe que a guerrilha esfarele quem vive em Calambata. E num desses patrulhamentos encontram os guerrilheiros, há fogo confuso e depois o silêncio. E João de Melo pincela primorosamente a descrição de um rasgo de bravura, a alucinação e o destemor que nada faz prever:
“Viu o olhar alucinado do furriel Octávio e teve logo a certeza de que ele ia desatar a correr pela mata fora, disposto a enfrentar o risco de ser atravessado pelas balas dos guerrilheiros. Tentou agarrá-lo por uma perna, mas falharam-lhe os dedos. O furriel caiu, levantou-se, pôs-se a rolar no chão, como uma bola, até se estatelar ao comprido numa plataforma baixa da mata. Aí, despejou o primeiro carregador de munições sobre o chapinhar invisível daqueles passos lançados na fuga. Sacou a Breda das mãos do soldado Monteiro e desfez-se rapidamente de uma fita de balas. A seguir, correu de novo pela mata e recomeçou a disparar às-cegas. Acreditou que faria alguns mortos: os cadáveres teriam de ser iguaizinhos aos dos companheiros mortos nas outras emboscadas, com aqueles estranhos braços rígidos apontados a um céu sem altura. Sempre jurara vingá-los. Com um pouco de sorte, o seu nome constaria em breve dos relatórios de guerra, ficaria indissoluvelmente ligada à história de um Batalhão martirizado. Quando se viu sem balas, assumiu um ar idiota. Meio atordoado, puxou da única granada que trazia enganchada no cinturão e retirou-lhe a cavilha com os dentes. Ficou a seguir com os olhos o gesto circular da mão que a atirava para longe, por cima da copa das árvores, e esperou a explosão. A mata encheu-se logo de ecos. Regressou cabisbaixo, de cócoras e olhos no chão, porque tão-pouco podia oferecer o espetáculo de trazer consigo um prisioneiro de guerra, uma arma ou mesmo as orelhas de um cadáver”.
O alferes anda por ali descorçoado, já só pensa nas férias. É nisto que se ouve ao longe o zumbido dos helicópteros.
O romance avança rapidamente para o fim, vem a caminho uma coluna civil com gente de Makela do Zombo, vêm fazer negócios de café e outras coisas mais, e vem também a caminho a tropa especial ávida por matar os combatentes da revolução.
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Considerava Mouzinho de Albuquerque, que subjugou os Vátuas e Gungunhana, quando também os Zulus eram submetidos por Cécil Rodes, (perto de 1900) que «é a primeira obrigação dos Srs. comandantes das unidades conservarem não só o moral das suas tropas, como cuidar da sua saúde e instrução»
Conheci todos os destacamentos da zona de São Salvador e a também a sede em 1966, como já disse, portanto posso dizer que também esta foi a minha guerra de 13 anos, mas não foram nem minas nem turras a grande preocupação daqueles anos naquela região.
Respeito todas as opiniões de toda a gente, mas a minha opinião sobre aquele momento e aquele lugar também está formada.
O grande problema daqueles militares naqueles anos, era a claustrofobia e o tédio dentro de umas instalações enquadradas por arame farpado, no meio do nada, sem alternativas de intercâmbios durante um ano inteiro.
Em Angola era facílimo um fim de semana prolongado (mensal) de folga a toda a tropa, se tudo fosse escalonado devidamente por Comandantes que seguissem as indicações de Mouzinho de Albuquerque: cuidar da moral e da saúde da tropa.
Havia instalações militares à beira de praias com biquinis como Luanda, Benguela, Moçâmedes, Porto Amboim, etc.
Mas essas coisas também davam muito trabalho aos comandantes.
E também escrevia M.A. que a tropa chega a Moçambique, mas já a pensar no dia de regresso.
Enfim, agora temos Vátuas e Zulus a bater à porta do Túnel da Mancha.
É a continuação de uma guerra que está para durar
Também está muito transmontano e algarvio a bater à porta da embaixada de Angola em Lisboa a pedir vistos de 3 meses para Luanda.
Obrigado BS
Em poucas palavras,como sempre Rosinha,explica como se podia melhorar a permanência obrigatória dos militares em teatro de guerra assim como vê a situação atual de África relacionados com os acontecimentos de Calais muito parecidos na sua génese com os portugueses á porta da Embaixada de Angola em Lisboa.
Aprendemos muito com o Rosinha.
Enviar um comentário