1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 17 de Julho de 2015:
Queridos amigos,
E assim se chegou à Festa dos Tabuleiros, o acontecimento religioso e etnográfico que Tomar propicia. No contexto da teofania do culto do Espírito Santo, o mais surpreendente acontece aqui e nalgumas ilhas dos Açores. As ruas engalanadas fazem antever os milhares de horas de paciência a cortar papel e a torná-lo revigorante arte efémera; os cortejos que vão pululando entre sexta e sábado, originando ajuntamentos espontâneos, sabe-se lá de que freguesia tomarense vêm aqueles pares, eles de calça preta, faixa à cinta, camisa branca e gravata a condizer com a faixa da companheira, ela transportando em cima da rodilha cerca de 15 quilos de fiadas de pão armado e encimado pela Pomba do Espírito Santo.
Uma cidade em festa, numa amenidade surpreendente, até ao momento culminante daquele domingo do grande desfile de todos os tabuleiros que serão abençoados pelo bispo. Inesquecível. E agora vamos fazer uma pausa, repensar Tomar.
A seguir a viagem segue para Itália. Depois conto.
Um abraço do
Mário
Tomar à la minuta (11)
Beja Santos
Vinde, Divino Espírito, aqui estão os tabuleiros da nossa fé
Não escondo a minha ansiedade, subi a fasquia das minhas expetativas, pela primeira vez na vida este septuagenário comparecerá à Festa dos Tabuleiros. A sua aura vem de longe, a minha avó Ângela contava-me, enquanto eu adormecia, a intensidade dos preparativos, as saudades que ela levou para África, os bilhetes-postais lhe chegavam de Tomar com a azáfama dos familiares na organização dos festejos.
À cautela, na sexta-feira de manhã vagueio, simulo que a intensidade do colorido ainda está longe e que tudo vou sorver, em longos haustos, para nunca mais esquecer. Preocupo-me com pormenores, coisas que só a mim dizem respeito, e que vêm nestas imagens: um belo portão Arte Deco, é bem provável que numa Alemanha qualquer fosse peça de museu, aqui está em fase de enferrujamento. Na rua do compositor Lopes Graça apanhei o cartaz e o incentivo: “Acordai!” e logo me lembrei de um recital de poesia no Instituto Superior Técnico, Maria Barroso galvanizava a assistência jovem com poemas de Manuel da Fonseca e ouviu-se o coro da Academia dos Amadores de Música, até que entrou a polícia à chanfalhada, foi desordem geral mas Maria Barroso enfrentou os caceteiros sem uma tremura. E temos aquela escada, que sorte com aquela luz, crua e desnudada, atravessa-se numa das ruas que mais prazer me dá, não sei se é a Idade Média se é uma aldeia serrana que entra por Tomar adentro. E visitei uma exposição que está no belo edifício que foi do Turismo, ali se exibem peças extraordinárias que foram doadas pelo professor José-Augusto França, como este óleo de Joaquim Rodrigo que me traz reminiscências de Piet Mondrian.
Assim entrei na festa, na embriaguez da cor das ruas, venho venerar o labor meticuloso de quem lavrou em papel toda esta decoração, alguém me disse que haverá banda de música por estas ruas populares ornamentadas, quero andar aqui à solta, mais tarde passarei pela Várzea Grande para me inteirar com do Cortejo do Mordomo, já vi passar pelas ruas gente a cavalo, bem ajaezados, até pensei que iam para a Feira da Golegã… Estou a contar com surpresas amanhã, apanhar os Cortejos Parciais dos Tabuleiros. Agora, deixem-me andar na folia, a cor é comigo.
Andei a saltitar entre a Corredoura, a Várzea Pequena, pus-me na ponte velha, voltei a mergulhar nesta imensidão de luz e de sombreado. Se uma das pautas de conduta da cidade é a sua amenidade, a festa e quem a visita não trouxeram estridência, andam todos em estado de admiração, vejo gente de outros pontos da Europa boquiabertos, de câmara em punho para que ninguém dos Países Bálticos até ao Mar Negro possa negar que naquele ponto do mapa, não muito longe do centro de Portugal, há para ali uma festa peculiar ao divino Espírito Santo, e que não é de fácil entendimento. Serão eles os mensageiros deste fenómeno tão terno e tão denso da Santíssima Trindade, outros virão para confirmar a beleza das imagens de que eles são portadores.
É sábado, vou pôr-me na giraldinha, à procura de surpresas dos Cortejos Parciais dos Tabuleiros, os pares desfilam solenes, cientes da supervisão pública, riem quando se aplaude e cumprimentam quando são reconhecidos, tanto quanto eu sei tanto pode ser gente de Carregueiros, Santa Maria dos Olivais, Junceira ou Sabacheira, são muitas as freguesias, dão-nos o privilégio dos ver deambular entre a parte da cidade e o casco histórico, é este um dos grandes temperos destes dias de lazer e homenagem cristã.
Nova pausa, passo pela Levada, venho visitar uma exposição fotográfica, a da família Correia, o pai de nome Augusto Corrêa Júnior e o filho José Augusto Pimentel Corrêa, agora é um mergulho no passado, que bela iniciativa, já visitei a exposição de Arte Abstrata da Coleção José-Augusto França, parei demoradamente frente às imagens de Lopes Graça, valeu a pena conhecer os dotes fotográficos destes Corrêa e Correia que saíram do pó do esquecimento.
É o zénite da festa, domingo, 12 de Julho, acalorado desde o meio-dia. Venho preparado para grandes emoções, o Cortejo dos Tabuleiros arrancará da Mata dos Sete Montes, haverá antes o Cortejo das Coroas e Pendões do Espírito Santo, aproveitei para os últimos disparos, aquela pombinha junto de porta manuelina na Igreja de S. João Batista assombra-me. Vou aguentar a pé firme junto à entrada da mata, quero acompanhar tudo, gaiteiros e tamborileiros, as quatro bandas de música, os pensões e o início do grande evento, dado pelo fogueteiro. E pelas quatro horas da tarde os escuteiros abrem alas, passaram os polícias e desencadeia-se a marcha processional, estabeleceu-se a eletricidade, há faísca mágica, mesmo com a assistência a acotovelar-se, todos querem imagens, de vez em quando há suspiros e alarmes, aquela menina que parece que vai deixar cair o tabuleiro, outra que se soltou a rodilha da cabeça, passa uma jovem com ar contrito, um dos pães foi esburacado por ratos ou pássaros, há comentários, e ela segue encabulada. Depois mergulho na multidão, até assisti a uma cena de pancadaria, um deles ficou com a camisa toda rasgada, e lenhos na cara. Falta-me ânimo para o momento solene, aquele que irá ocorrer pelas 16 horas, em plena Praça da República quando todas estas moçoilas de diferentes idades erguerem sincronicamente, à terceira badalada, os seus tabuleiros.
Volto a rememorar as histórias que a avó Ângela me contava sobre esta teofania do Espírito Santo, senti como minha toda esta movimentação prazenteira das ruas coloridas, dos desfiles, da cidade que se abriu com os braços bem abertos para acolher todos.
Chegou a hora de partir, de dizer adeus, introduzir uma pausa e refletir sobre esta rede de afetos tomarenses. Nativo ou forasteiro, devemos sempre procurar ver o nosso lugar com olhares renovados.
Como escreveu uma vez José Saramago, a viagem nunca acaba o que acaba são os viajantes. O que vê de manhã não é o que se vê à tarde, o que se vê na Primavera não é o que se vê no Outono, o olhar remoça-se, depura-se ou decanta-se. E o nosso lugar bem-amado tem outro sangue oxigenado, é uma saudade entranhada que nos revigora o futuro. Como esta imagem tão bela, esta escultura antiga que me faz cismar, fixada nos muros da Igreja de S. João Batista. Até um dia, despeço-me com estima.
Texto e fotos: © Mário Beja Santos
(FIM)
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Nota do editor
Postes da série de:
27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)
3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14694: Os nossos seres, saberes e lazeres (97): Tomar à la minuta (2) (Mário Beja Santos)
10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14726: Os nossos seres, saberes e lazeres (99): Tomar à la minuta (3) (Mário Beja Santos)
17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14758: Os nossos seres, saberes e lazeres (101): Tomar à la minuta (4) (Mário Beja Santos)
24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14793: Os nossos seres, saberes e lazeres (102): Tomar à la minuta (5) (Mário Beja Santos)
1 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14819: Os nossos seres, saberes e lazeres (103): Tomar à la minuta (6) (Mário Beja Santos)
8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14849: Os nossos seres, saberes e lazeres (104): Tomar à la minuta (7) (Mário Beja Santos)
15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14880: Os nossos seres, saberes e lazeres (106): Tomar à la minuta (8) (Mário Beja Santos)
22 de Julho de 2015> Guiné 63/74 - P14915: Os nossos seres, saberes e lazeres (107): Tomar à la minuta (9) (Mário Beja Santos)
e
29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14944: Os nossos seres, saberes e lazeres (108): Tomar à la minuta (10) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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