terça-feira, 1 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos


1. Texto enviado, em 1 de Julho, pelo Alberto Branquinho, advogado, ex-alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69):

Camarada Luis Graça

Com os meus cumprimentos pelo Post 3000, estou a enviar mais um texto para o UMBIGO (*), o nº3.

Um abraço
Alberto Branquinho


2. NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (3) > DESPOJOS
por Alberto Branquinho

Fotos: © Carlos Américo Rosa Cardoso (2007)(**)

Mais ou menos nove horas da manhã. O pessoal da Companhia estava pronto e equipado, com os seus pertences arrumados nos sacos de lona e espalhado pela proximidade dos abrigos (não fosse necessário recorrer a eles). Aguardava a coluna auto que chegaria de norte, para sair dali nessa mesma coluna, no movimento de retorno. A impaciência era grande para abandonar aquele inferno de guerra, sofrimento e privações de há longos, longos dias.

Exactamente a norte – três, quatro (cinco?) rebentamentos de grande potência. A primeira reacção foi correr para os abrigos. Muitos estacaram imediatamente, porque estouros com aquela força nada tinham a ver com saídas de canhão ou de morteiro. Todos os olhos dos corpos agachados se viraram para o lado dos estouros, com expressão ansiosa. Uma nuvem de pó (e fumo?) começou a surgir e a avantajar-se muito acima das copas das árvores, lá ao longe.
- Que merda foi aquela?

A resposta chegou pouco tempo depois, via rádio e retransmitida:
- Fornilhos.

Chamam-se enfermeiros e saem viaturas com pessoal, em socorro. A coluna tarda e não há mais notícias.

Chegam as viaturas que tinham saído. Os homens vêm com um ar soturno. Duas viaturas tinham sido afectadas e havia muitos corpos despedaçados.
– Quantos? - Ninguém sabe.
- Quando se fizer a chamada é que se pode ver. Sabe-se que falta um alferes.

Entra no recinto do aquartelamento a viatura de caixa aberta, com os pedaços dos corpos. Curiosos agarram-se às cancelas e espreitam.
– Foda-se! Parecem todos pretos!

A viatura é coberta com panos de tenda amarrados e enxotam as moscas que teimam em ficar por baixo dos panos. Uma raiva enorme, surda e irracional enche as cabeças e os peitos. Muitos cospem para o chão de forma maquinal, continuada e inconsciente.

As viaturas são abastecidas de combustível para o regresso, ao mesmo tempo que é retirada a carga que se destinava ao aquartelamento. Tenta-se reorganizar a coluna para o regresso, com a indicação de que a viatura com os restos dos corpos seguirá na retaguarda. O pessoal da Companhia que aguardava a chegada da coluna, seguirá a pé, espaçado, pelotão a pelotão, entre as viaturas.

Começa o andamento, desenrolando o novelo de viaturas e homens. A raiva sobe-lhes, os peitos arfam, os dentes cerrados. Há ordem para, além de olhar à direita e à esquerda, estarem atentos, também, às grandes árvores que ladeiam o itinerário. Não demoraram muito a chegar ao local do rebentamento dos fornilhos. Cabe um homem agachado dentro de cada buraco.

Um furriel viu, pendurado de um ramo alto, um braço ou, talvez, fosse uma perna.
- Eh, pá! Deixa aqui a G-3 e vai lá buscar aquilo, que a gente dá-te cobertura.
- Foda-se! Ir lá em cimba ?! Bá lá bocê!

Frente à recusa, desistiu e ficou parado, a olhar fixamente aquilo. Depois olhou para o chão, na beira do itinerário, ao lado da árvore. Três ou quatro formigas grandes e pretas, com as pinças cravadas, tentavam arrastar um pedaço de carne, que tinha colado um farrapo de farda camuflada. Com raiva, elevou o tacão da bota de lona para esmagar as formigas, mas susteve o pé no ar, com a perna flectida, para não esmagar, também, a carne. Acabou por dar um passo mais largo. Voltou-se para observar melhor e verificou que havia mais pedaços de carne espalhados em volta.

Ficou a olhá-los sem dar conta que as viaturas e os homens continuavam a passar.
Retomou a marcha devagar, muito devagar, titubeante e, entre dentes, ia repetindo Lavoisier:
-“Na Natureza nada se cria, nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde…nada se perde"...

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

30 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2931: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (2): Da solidão de pides, padres, administradores, mascotes...

(**) 1º Cabo Radiologista Carlos Cardoso, dos Serviços de Saúde Militar (1972/74). Vd.postes de:

1 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1481: Hospital Militar de Bissau (1): Apresenta-se o ex-1º Cabo Radiologista Cardoso

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Já em tempos (8/5/2007), o nosso co-editor Carlos Vinhal me tinha posto uam questão delicada à qual não lheu dei resposta na altura. Ela merece o nosso aperço e reflexão. Para que não se perca, aqui a reproduzo:

Caro Luís

Se falo nisto é porque tu próprio já levantaste o problema. O da criação de uma "Comissão de Ética".

Face à quantidade e qualidade de material que te chega às mãos para publicar e que pode ferir mentes mais ou menos sensíveis, sou de opinião que deveríamos a curto prazo criar essa tal Comissão que, em caso de dúvida, te aconselhasse quanto à sua publicação ou não.

Vem isto a propósito de quê? Das imagens enviadas pelo Carlos Américo Rosa Cardoso, por ti publicadas, que no mínimo teve uma atitude contra a ética profissional ao permitir que se exiba publicamente imagens de membros humanos, só porque ele como profissional teve oportunidade de fazer tais fotografias.

Imagina que amanhã um de nós, por fatalidade, tem que ser amputado de uma perna e a vê publicada no DN, JN, etc. as imagens do seu membro amputado, só porque o Radiologista fez umas fotos e resolveu torná-las públicas.

Se as imagens dele são de anónimos, são por outro lado de camarad noss, que lutaram e tiveram a infelicidade, que não nós não tivemos, de ficar sem o seu membro. Pergunta ao Vitor Junqueira a sua opinião quanto médico.

Tenho um camarada amigo de infância que em 1970, em Moçambique pisou uma mina AP e ficou com uma perna amputada até à coxa. Que dirá ele ao ver estas fotos? Nem tenho coragem de lhe perguntar.

Recebe um abraço do camarada
Carlos Vinhal carlos.vinhal@gmail.com

Carlos Esteves Vinhal
Leça da Palmeira
Telem 916032220

Ex-Fur.Mil.Art.ª MA
CART 2732/CTIG 1970/72
SPM1388 Mansabá

Anónimo disse...

Ele tem razão.Não vejo o problema por mim. Vejo-o, isso sim, por muitos que, não habituados á violência das imagens de guerra leiam o blog.Não é acto médico. Pessoalmente fiz o seguinte; levantei-me aproximei-me de um espelho, levantei o pólo e vi a imagem.O tempo e os pelos taparam e só tenho um umbigo.Digo isto porquê:vi fotos minhas no blog e lembrei-me de, um dia deitado em cama de hospital, meio estonteado, ver entrar uma pessoa amiga e dizer: tanto tubo, ligaduras e tens cinco umbigos. Cinco? Sim um de nascença e quatro que te fizeram agora...porra estás lindo, ainda tiro uma foto. Não tirou e tenho pena. Enviava-a e veriam o efeito de cerca de uma centena de "coseduras" com fios e agrafos... Abraços a todos do (narciso) perdão TORCATO MENDONÇA- nome imcompleto!