quinta-feira, 3 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3017: Blogoterapia (59): Fotos chocantes de "despojos humanos" (Henrique Cerqueira)

1. Mensagem de Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil do BCAÇ 4610/72/743.ª Companhia, Biambe4.º Gr Comb, CCAÇ 13, Bissorã):

Bom dia, Camarada Luís Graça

Hoje resolvi escrever sobre o artigo do nosso camarada Branquinho (1). É que foi com alguma surpresa, e até incredibilidade, que ao ler o artigo sobre os "Despojos Humanos" deparo-me com uma série de fotos no mínimo chocantes.

Não será pelo facto de serem fotos aterradoras, pois que infelizmente quase todos nós convivemos de perto com situações idênticas e até hoje em dia somos invadidos com imagens idênticas ou ainda piores, que nos entram pela casa dentro através das televisões oriundas das mais diversas guerras actuais. Mas aí ainda se vai entendendo, devido ao jornalismo demasiadamente desenfreado e com total desrespeito pelos valores humanos.

Também posso dar algum benefício de dúvida a quem na época se recriou a tirar este tipo de fotos (pois que na época a inconsciência estava minada pela falta de formação militar e até de acção psicológica virada para o âmbito de guerra). Agora neste preciso momento, em que todos nós tentamos ainda enterrar os nossos Fantasmas , deparamos com fotos de camaradas nossos que MORRERAM e que são agora expostos como se de UM MATADOURO SE TRATASSE.

Perdoa-me, Camarada Luís, mas eu penso que não foi uma atitude acertada ao publicarem estas fotos.

Quando cheguei ao Biambe em 1972 e me atribuíram uma espécie de quarto no aquartelamento e, quando fiquei só, deparei-me com um troféu que o meu antecessor deixou num frasco, que eram duas orelhas supostamente de um inimigo. Fiquei chocado com tal troféu e em segredo eu próprio fiz uma espécie de funeral a essa parte do corpo de um ser humano.

Ainda hoje sinto tristeza ao me lembrar de tal episódio, daí o meu total desacordo na publicação destas fotografias, pois que me faz pensar que quando foram tiradas e guardadas todo este tempo, foi como se de um Troféu de Guerra se tratasse.

Penso assim que neste momento deveríamos ser um pouco mais cuidadosos e, quem sabe, ir ao fundo das gavetas e destruir algumas das más lembranças e se calhar algumas das nossas piores atitudes como seres humanos que, por este ou outro motivo, mesmo que impulsionados por situações a que fomos empurrados,umas veses obrigados, outras por instinto animalesco que de uma forma outra estaria enraizada em nós [...].

Vou terminar este meu parecer, mas quero ainda esclarecer que escrevo estas linhas movido por uma certa tristeza e alguma raiva. Daí que me desculpem todos, se não estão de acordo com o escrito. É que, como de costume, eu normalmente só escrevo o que o meu coração manda e faço-o tal e qual como penso. Por tal, meu amigo Luís Graça, se achares que não vale a pena publicar, estás como sempre à vontade para o fazer.

Quero ainda dar uma nota muito positiva para o que se tem escrito sobre o tema que foi lançado que é o após, o regresso à Metrópole (2). Logo que possa, e se ainda estiver admitido neste blogue, escreverei algo sobre o dito tema.

Um abraço para ti Luís Graça e restantes camaradas da TABANCA GRANDE
Henrique Cerqueira
Ex-Fur Mil
Batalhão 4610/72
Biambe, Bissorã,
1972/1974

2. Comentário de L.G.:

(i) É saudável discordarmos uns dos outros, e sobretudo apresentarmos as razões por que discordamos desta ou daquela orientação, atitude, acção, omissão... Discordar não é conflito nem delito.

(ii) A decisão foi minha, e de mais minguém, a de "ilustrar" (não gosto do termo, mas não me ocorre outro) o poste do Branquinho com as imagens (macabras) de "despojos humanos" que, presumo, tenham sido enterrados, depois de fotografados, no "biotério" do Hospital Militar de Bissau, se é que o hospital tinha biotério...

(iii) Calculei os riscos e os estragos. Pela segunda vez, pisei deliberadamente o risco. E também propositadamente reproduzi o comentário que o Carlos Vinhal já tinha feito, através do correio electrónico do nosso blogue, a respeito dessas imagens.

(iv) Na altura já não sei se respondi ao Carlos Vinhal. De qualquer modo, nem todas as questões que levantamos, a nós próprios ou aos outros, têm resposta. Recuso o "voyeurismo", a morbidez, a pornografia, a exploração estética da morte e do horror... mas há às vezes tenho dificuldade em estabelecer a linha de fronteira. Eros e Tanatos, amor e morte, são uma terrível dicotomia, com que nunca saberemos lidar bem (ou com que sempre lidaremos mal)...

(v) O que nos incomoda nas imagens da morte na guerra ? Há um pudor, por parte dos velhos guerreiros, dos antigos combatentes, em relação à morte, aos cadáveres, aos despojos humanos da batalha... Curiosamente, também os médicos lidam mal com isso... Como se ambos soubessem que a Morte/Tanatos acaba sempre por triunfar contra tudo e todos, o Amor/Eros, a vida, a ciência, a tecnologia, a nossa doce e terna ilusão de eternidade... Por isso fazemos monumentos (funerários) aos nossos mortos, aos nossos combatentes, aos nossos heróis...

(vi) Na aldeia global, a morte não é mais sinónimo de horror porque chega a nossas casas através do ecrã-tampão, do ecrã-filtro do nosso televisor... Já nada nos tira o apetite (nem a seguir o sono) à hora do telejornal, à noite, ao jantar... A televisão banalizou a morte, o horror, a guerra em directo...Do Iraque ao Darfur...

(vii) Em contrapartida, as imagens do fotojornalista que chegam à World Press Photo, através de um processo de selecção de um júri, profissional, conceituado, plural e internacional - muitas delas sobre o horror da guerra e da violência - têm como objectivo, explícito, COMUNICAR comigo, e implícito, PROVOCAR-ME, CHOCAR-ME, MEXER COM AS MINHAS EMOÇÕES, INTERROGAR-ME, SACUDIR A MINHA INDIFERENÇA, SENSIBILIZAR-ME, etc.

(viii) Os nossos filhos, que felizmente não foram à guerra, TÊM O DIREITO SABER QUAL O EFEITO (DEVASTADOR...) QUE AS NOSSAS TECNOLOGIAS DA MORTE, nossas e do PAIGC, tinham sobre os nossos corpos, sobre os corpos dos nossos camaradas, sobre os corpos dos nossos inimigos... Das minas anti-pessoais aos fornilhos, dos obuzes 14 às bombas de napalm, das granadas de RPG7 aos morteiros 120...

(ix) E o que é a guerra se não um imenso matadouro, Henrique ? Repara que estas imagens são descontextualizadas, não permitindo em caso algum identificar quem que seja... Por outro lado, não são nem podem ser lidas como troféu de guerra (Nada te autoriza essa leitura...).

(x) É preciso "exorcizar os nossos fantasmas" (coisa que andamos a tentar fazer há 40 anos, ao que parece em vão...). Concordo contigo. Mas será através da denegação ? Da ocultação dos cadáveres, das orelhas, das cabeças, das pernas, dos despojos... ? Da destruição das imagens, dos signos, dos vestígios, dos documentos, das narrativas ?

(xi) Não creio que alguém se pudesse recriar (o termo é teu) , no então HM 241, e muito menos o nosso camarada Carlos Américo Cardoso, ex-1º Cabo Radiololista (que já deu provas de ser uma camarada com valores, com sensibilidade, com sentido de solidariedade, etc.)...

(xii) Vamos censurar as nossas próprias narrativas ? Vamos decidir que frases como esta são inaceitáveis porque podem ferir a nossa sensibilidade, ou a sensibilidade de alguns de nós, dos nossos velhos, das nossas criancinhas ?

Entra no recinto do aquartelamento a viatura de caixa aberta, com os pedaços dos corpos. Curiosos agarram-se às cancelas e espreitam.
– Foda-se! Parecem todos pretos! (1)


(xiii) Agradeço muito a tua participação no bogue, com o teu comentário, ainda para mais para me criticares enquanto editor. É um direito mas também uma obrigação que tu tens, enquanto mebro da nossa Tabanca Grande.

(xiv) Em contrapartida, estranho o teu último parágrafo: "Quero ainda dar uma nota muito positiva para o que se tem escrito sobre o tema que foi lançado que é o após, o regresso à Metrópole (2). Logo que possa, e se ainda estiver admitido neste blogue, escreverei algo sobre o dito tema"...

Não aceito a tua insinuação (involuntária...) de que alguém possa ser expluso deste blogue por uma "delito de opinião" ou por fazer críticas ao(s) editor(es)...

Um Alfa Bravo (abraço) do Luís.

_________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos

(2) Vd. poste de 2 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3015: Os nossos regressos (4): Dois anos perdidos naquela terra, quente, húmida e vermelha...(Torcato Mendonça)

2 comentários:

Carlos Vinhal disse...

Continuo a achar desnecessária a exibição de corpos sem vida e despojos humanos, pelo imenso respeito que devemos ter a quem morreu numa guerra inútil.

Anónimo disse...

Sinto-me inclinado a concordar com o Henrique Cerqueira e o Carlos Vinhal.

Não me parece que acrescente nada ao texto.

Abraço camarigo
Joaquim Mexia Alves