terça-feira, 1 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)

1. Texto de Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74).

Com o Sangue na Guelra
por B. Sardinha

Tomei conhecimento deste Blog após algum tempo, muito, depois de criado.

Embora procure actualizar-me rapidamente, tenho consciência que muito me falta ainda ler do que já está escrito, mas não podia nem queria deixar de participar, não com factos de guerra propriamente ditos, que felizmente não vivi fora dos quartéis por onde passei, mas com outros que poderão ser interessantes para quem se queira dedicar a estudar, investigar, e pretenda um dia, daqui a mais alguns anos - não faltam muitos para se extinguirem os últimos de nós pela lei natural da vida -, analisarem, com a devida distância, as implicações que tiveram estas guerras de guerrilhas da altura, no comportamento social, individual e colectivo e no pós- independência das colónias ou províncias, hoje Países, onde nos batemos como se dizia, pela Pátria.

Tudo isto a propósito do que li escrito pelo Amílcar Mendes, da 38.ª de Comandos, a quem antes de mais envio o meu abraço, onde além de nos dar a conhecer na 1ª pessoa as tragédias sofridas por estes camaradas, se sentiu, certamente que não neste blog mas na sociedade em geral ou por pessoas pouco identificadas ou mal esclarecidas, apelidado de assassino.

No contexto da guerra, se assim o quiserem entender, todos que lá estivemos o fomos. Até mesmo eu, sem nunca ter saído da frente de um rádio o posso ter sido. Não acredito que qualquer camarada, no seu perfeito juízo, assim o considere. Só pode ser dito por alguém que nunca lá esteve ou por razões políticas que o motivem e me escuso de referir.




Guiné >Região do Oio > Mansoa > 2005 > Panorâmicas de Mansoa na actualidade > Fotos enviadas pelo nosso amigo e camaarada Constantino Neves e a ele cedidas pelo ex-Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria José Couto, da sua Companhia, a CCS/BCAÇ 2893. Voltou à Guiné em 2005. Já aqui publicámos fotos dele, do Cacheu, de Quinhamel e de Bafatá.

Fotos: © José Couto / Tino Neves (2006). Direitos reservados.


Tenho amigos que, continuando a sê-lo, embora pensem dessa forma, não consigo demovê-los, acham que por se terem ausentado na altura certa todos os outros o deveriam e poderiam ter feito e assim são co-responsáveis, mas cada um sabe das condições de vida que tinha, da sua formação e esclarecimento político e contactos na altura.

Mas voltando aos operacionais comandos, é certo que eram vistos de forma diferente da outra tropa, começavam logo por ser voluntários recrutados na instrução, mas quem é que aos 20 anos, sabendo ou calculando que ia parar à Guiné, Angola ou Moçambique não queria ir melhor preparado, não queria ser herói, chamar a atenção das miúdas e mostrar-se forte e valente sem medos nem receios?

Só quem nunca teve 20 anos e nunca cometeu excessos pode dizer uma tal barbaridade, ainda por cima não assumida ao que parece.

É verdade que estes militares tinham uma postura que lhes era transmitida e eles assumiam-se como diferentes, melhores e superiores, era uma outra forma de se afirmarem quando nada tinham tido antes onde pudessem fazê-lo, era normal naquela idade, a libertação dos pais e das dependências, a passagem a homem. Veja-se como mo Amílcar Mendes retrata e se distancia hoje dessa postura, mas assume-a.

Recordo um episódio da chegada desta companhia de comandos periquitos, a 38.ª a Mansoa, e o alvoroço que criaram quando substituíram à Porta D’armas os velhinhos do BCaç 3832, desejosos de regressarem a casa.

Habituados que estávamos a sair uniformizados mas sem obrigatoriedade de jogar com as peças certas de cada uniforme, quer dizer sairmos à vontade já que os passeios se limitavam a três ruas, irmos até à sede dos Balantas ou ao cinema, beber umas cervejas no Simões ou simplesmente dar uma volta, com estes à porta d’armas não podíamos sair do quartel se não estivéssemos fardados a rigor, quer dizer, sapatos e meias altas já que de botas de lona ninguém passava. Também não se lhes podia chamar periquitos.

Claro que rapidamente se espalhou isto no quartel e, passado pouco tempo, estava uma quantidade significativa de militares fardados a rigor, alguns até com a farda n.º 1, a formar à entrada do quartel e a pedir revista pelo oficial de dia.

Esta atitude tomada pela velhice e outros menos velhos como eu, com apenas 5 meses de Guiné, foi ultrapassada de imediato e voltou tudo à normalidade. Mas ficava sempre um mal estar que só o tempo esbatia, o conhecimento e a porrada que uns e outros íamos levando, cada uns nas suas situações.

Outras coisas eram feitas de propósito para obrigar a essa divisão, mas era normal no regime da altura e em qualquer outro que arranje formas de distrair para impedir aquilo que é importante, e era importante impedir que a generalidade dos militares, mais ainda os operacionais considerados de elite, não se misturassem e apercebessem da realidade, mas é esse estudo e as suas implicações que pode e deve ser feito por especialistas da matéria. Mas dizia eu que havia coisas que eram mal interpretadas e aceites, tais como terem construído um refeitório e um bar só para eles, onde acabou por não ser, já que eu, como individual, acabei por almoçar com eles uma vez e no bar passei muitas horas, mas tenho consciência de que terei sido mesmo uma excepção.

Ninguém pode hoje criticar um antigo militar que aos 20 anos esteve envolvido em actos que fizeram parte de um passado da história de Portugal, quando se tenham cingido ao andamento normal da situação vivida no local.

Não creio que alguém seja hoje capaz de chamar isso a Salgueiro Maia, também ele tendo chefiado um grupo operacional de comandos e um oficial que tinha orgulho na sua farda e no seu porte, mas que o tempo ajudou igualmente a amadurecer e a quem todos devemos o contributo e a bravura em 25 de Abril de 1974.

Um abraço para todos
B. Sardinha

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