terça-feira, 17 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2956: Tabanca Grande (75): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)



Belarmino Sardinha
1.º Cabo Radiotelegrafista STM
Guiné
1972/74




1. Após a pré-apresentação à nossa Tabanca Grande no dia 14 de Junho na série O Nosso Livro de Visitas, Belarmino Sardinha apresenta-se formalmente com esta mensagem, de 16 de Junho, e o texto que anexou.

Estimado Camarada,

Foi com agrado que recebi a tua resposta. Claro que irei enviar as minhas fotos para me juntar a vós.

Quanto a factos, como fui em rendição individual e fazia parte daqueles que não saíam em operações, por ser do STM, felizmente não tenho história nem histórias dessa vivência a não ser por compreensão e solidariedade. Justifico assim a minha presença no almoço do BCAÇ 3832, com quem convivi durante seis meses.

Não deixarei por isso de vos dar o meu apoio e contributo sempre e quando for necessário.

Junto umas palavras que melhor descrevem o que aqui refiro. Por ser folha e meia, juntei como ficheiro para possibilitar a sua leitura em separado. Mas achei importante enviá-lo para melhor nos conhecermos.

Estava já em Bissau quando aconteceu o 25 de Abril, irei pensar se houve algum facto que mereça destaque.

Desculpem se pouco tenho que vos ajude, mas contem pelo menos com o apoio.

Um abraço,
Belarmino Sardinha
Odivelas
Ex-1º Cabo Radiotelegrafista STM


2. Apresentação
Por Belarmino Sardinha

Camarada,
A pior coisa que pode acontecer é sermos nós próprios a cometermos imprecisões dos factos que descrevemos e que não admitimos que sejam postos em causa.
Acontece que a memória quando não preservada, por escrito, submete-nos a algumas partidas, no caso concreto mais ainda por se tratar de factos tão dolorosos por vezes, que se torna difícil justificar o erro.

Cometi um erro quando referi ter estado em comunicação com Gadamael quando foi com Guileje (1).
Embora aqui reconheça de pronto o meu erro não deixa de ser lamentável que o tenha cometido, pelo que vos peço a todos desculpa.

Não fui sujeito a qualquer situação que mereça destaque, por isso me limitei a participar com alguns dados que pudessem permitir ou sugerir a quem melhor do que eu o possa fazer.
Limitei-me a viver dentro das paredes dos aquartelamentos, guardado pelos operacionais e a partilhar com todos eles as suas aventuras e desventuras apenas e só como camarada presente, pelos laços que nos uniam a situação.

Reconheço que a memória já não é o que era, ou terei eu feito por esquecer para evitar lembrar-me daqueles com quem não partilhava as operações mas partilhava as conversas, os copos e as vida antes deles a perderem e serem devolvidos depois de embalados.

A experiência mais caricata terá sido um jantar de 24 para 25 de Dezembro de 1973 em Aldeia Formosa, onde a refeição de consoada foi esparguete com marmelada e as cervejas se compravam no bar com caixas de fósforos, moeda que funcionava como dinheiro.

Recordo-me também de ter feito sofrer até ao último dia possível, o despenseiro que se tinha negado fornecer-nos diariamente, para o posto de rádio do STM, um casqueiro e um pedaço de margarina para as sandes da noite de quem estivesse de serviço ao rádio, única forma de contacto com o exterior e que funcionava 24 sobre 24 horas, à luz de duas garrafas de petróleo com uma torcida de atacador a sair pelo furo das caricas.

Confesso ter-me sentido importante nessa altura, tanto mais que ele já oferecia tudo, enlatados de chouriço e tudo, para que se lhe enviasse a mensagem a marcar as férias que permitiam vir até à tão ansiada metrópole. Aceitei apenas o casqueiro e a margarina, mordomia naquele tempo para as noites de serviço.

Podem todos ficar descansados, ele acabou por vir de férias e quando voltou eu já lá não estava, mas constou-me que continuou a haver casqueiro e margarina todas as noites. Aprendeu a lição e a saber o que era estar solidário e partilhar com os outros. Infelizmente mesmo naquele ambiente também aconteciam coisas destas, como a superioridade que se tornava ficção quando a necessidade ou o medo apertavam.

Julgo que hoje já somos todos mais iguais e compreendemos melhor o que se passava, até nisso a idade tinha importância.

Lamentavelmente, de tudo o resto, tirando umas garrafas de gin bebidas com o Brito da 38.ª de Comandos, camarada que vivia em Loures, na altura o mesmo Concelho a que eu pertencia por ainda não ter sido criado o de Odivelas, pouco mais tenho a registar, era sempre em conversas, bebidas e comidas que eu me reunia com estes amigos. Nada mais soube do Brito, espero que ainda esteja de boa saúde entre nós, pese os estilhaços que passeia consigo.

Mas dizia eu que tudo que me lembro se reúne em torno da mesa, infelizmente parece-me ter sido sempre a última ceia, já que também com o Tojo, furriel miliciano da Companhia de Transportes, surpreendido por um roquete na porta da viatura em que seguia, no dia imediatamente a seguir a termos aproveitado uma vinda do Pateiro (da 38.ª de Comandos) a Bissau para como bons alentejanos e na companhia de outros que o não eram, termos estado a comer e a beber umas cervejas e a festejar, o ainda podermos fazê-lo já que razão não havia para mais.

Parece-me por isso ser curta a minha história, pelo que calar-me-ei depois desta evocação que, lamento ser sempre ou quase sempre lembrando aqueles que já partiram há muitos anos, quando tinham apenas vinte e poucos anos.

Hoje, com filhos bem mais velhos do que nós éramos quando regressávamos, acentua-se mais este meu sentimento de incompreensão para tudo o que aconteceu.

Este texto, se para mais nada serviu, teve o mérito de ajudar a libertar-me um pouco mais e a ter com quem partilhar este sentimento da ausência dos companheiros que tombaram, mesmo sabendo que podia não mais os encontrar depois de acabado o serviço militar.

Talvez tenha sido o que mais me marcou e por isso tenha aproveitado aqui para evocar aqueles que não podendo fazê-lo pelas razões óbvias merecem que os lembremos e falemos deles.

A quem interesse este assunto das Guerras, sejam elas Coloniais ou do Ultramar, embora não se tratando da Guiné, lembro que foram publicadas duas obras, uma pela Caminho, intitulada A Primeira Coluna de Napainor (2), narrativa de um camarada em serviço em Moçambique e uma outra de um camarada em Angola, Médico, já falecido, intitulada Henda Xala (3), publicada pelo Círculo de Leitores, cuja leitura acho interessante embora saiba esgotada pelo menos a do Círculo de Leitores.

Belarmino Sardinha
_______________

Notas de CV:

(1) - Fui 1.º Cabo Radiotelegrafista STM - 036858/71 - e estive colocado em Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau nos anos de 1972/74.

Curiosamente estava de serviço no Posto Director de Bissau e em contacto com o operador de Gadamael no dia e hora em que capitulou.


Vd poste de 14 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2942: O Nosso Livro de Visitas (16): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)


(2) - A Primeira Coluna de Napainor




António S. Viana iniciou a sua actividade de jornalista no antigo jornal O Século, passando depois pelos vespertinos Diário de Lisboa, A Capital e Diário Popular e por diversas revistas. A sua actividade jornalística preferida foi sempre a reportagem, embora tenha trabalhado em todas as habituais secções da imprensa escrita. O autor classifica este livro como uma reportagem, sempre adiada, que afinal se revelou um romance, em que mistura factos de ficção com factos da realidade, inspirado na sua experiência como militar na antiga África colonial portuguesa. Em 1968, um ano depois do regresso de Moçambique, publicou um conjunto de trinta poesias, num livro em co-autoria, Poemas, que abre com a sua primeira poesia (...)

Foto e texto retirados do site da Editorial Caminho, com a devida vénia.



(3) Sobre o romance Henda Xala, consegui saber que é de autoria de Abílio Teixeira Mendes (1939-1984) e que foi publicado pelo Círculo de Leitores.

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