Guiné > Região de Tombali >Aldeia Formosa >CCAÇ 2381 (1968/70) > O Maioral Zé Teixeira,1º cabo enfermeiro, junto ao obus 14 que batia a zona fronteiriça...
- Tirem-me daqui! Tirem-me daqui!
...Era o grito que mais se ouvia nos últimos meses de Guiné, sobretudo depois da estúpida morte do Conceição Caixeiro (1).
A reentrada no Niassa em fins de Abril de 1970 foi o primeiro sinal de que era chegada a hora do regresso, passados quase vinte e quatro meses num ambiente de guerra activa.
Quatro camaradas tinham ficado pelo caminho. Alguns mais tinham antecipado o seu regresso, feridos e estropiados. Nós, os restantes, de olhos postos no mar alto, a tentar divisar Lisboa, dizíamos adeus à Guiné, com promessa de não mais voltar. Puro engano que o tempo se encarregou de esclarecer, pois a maioria de nós, hoje, sonha em voltar, agora voluntariamente para rever as amizades deixadas, e foram tantas, passar pelos locais onde viveu, onde sofreu, situações de luta e tantas de alegria. Situações que nos marcaram por toda a vida.
Nunca mais se via Lisboa
O nascer e o pôr-do-sol, marcava os dias e as horas, que teimavam em não passar. Lisboa teimava em não aparecer no horizonte visual. Faziam apostas sobre o dia e a hora da chegada. Manhã cedo toda a gente vinha para a amurada do barco, à procura de sinais da terra abençoada. Muitos ali ficaram de guarda, dia e noite na esperança de serem os primeiros. Até que se nota à distância uma mancha negra.
- Terra! Terra! Lisboa à vista!
Toda a gente acorre, surgem de todo o lado. É quem mais espreita. Eu não via nada, a não ser uma agitação febril de um vai e vem, um apontar de dedos, acolá, lá longe … Demasiado lento para a nossa pressa o barco lá se foi aproximando, e a noite também, para nosso azar. Vamos desembarcar de noite, dizia-se.
- Como vou localizar de noite a minha mãe ? - interrogava-se alguém.
- Vamos ficar no barco até de manhã, tem lá jeito desembarcarmos de noite!
Uma longa noite, com Lisboa ali tão perto
Certo é que a noite chegou e nós ficamos a ver Lisboa, do navio enquanto os nossos familiares ficaram a ver navios. A marginal iluminada, os carros a passar, as pessoas. E, nós a duzentos metros da costa, tão pertinho!
Noite longa das mais longas das noites, e sem sono, tal como nas emboscadas da Guiné. Agora sem medos nem fantasmas, cantava-se em grupos mais ou menos homogéneos. Sonhava-se acordado com os abraços e beijos que iríamos distribuir na manhã seguinte.
Um barco acordado toda a noite à espera de um novo dia, o qual seria de facto a reentrada numa nova vida, a nossa, a verdadeira, a que desejávamos construir. O mágico dia da peluda há tanto tempo sonhada e desejada.
Mal o sol nasce, começa a atracagem e as correrias pela amurada à procura dos familiares que no cais nos aguardavam. Muitos deles, vindos de terras distantes, passaram ali a noite, apreciando o espectáculo que ao longe se vislumbrava no barco.
Juntamente com cinco camaradas, empunhávamos um cartaz identificativo pré-acordado com as nossas famílias. Corremos o barco de lés a lés à procura de sinais de localização das mesmas, para desembarcarmos ao seu encontro. A alegria é enorme quando um de nós ouve chamar pelo seu nome. Segue-se, outro e outro, até ficar eu sozinho. O tempo vai passando o barco esvazia-se e eu continuo à procura dos meus.
Um camarada volta ao barco com o caniche, todo orgulhoso pois o animal reconheceu-o, passados dois anos de ausência. Por simpatia ficou comigo algum tempo. Enrolo o cartaz e continuo desesperadamente à procura. Ao longe vejo um rosto conhecido. Salto de contente. Expresso a minha alegria batendo com o pau do cartaz na borda do barco, mando beijinhos e sou correspondido, mas...esta visão varre-se de imediato da minha memória.
Não era a minha mãe e continuo desesperadamente à procura, deixando a minha família expectante no lugar onde a tinha visto, à espera que eu descesse do barco. Eram, a minha cunhada, meu irmão e minha mãe. Estranharam que eu continuasse a correr o barco de uma ponta à outra. Chamam por mim, mas eu estava cego e surdo.
A minha Mãe?
Fui dos últimos a descer. Entrego os meus haveres à guarda numa família de um camarada e amigo. Agora no cais, continuo à procura. Aparece-me a namorada. Encontro feliz. Pergunto-lhe pela minha mãe. Ela tinha vindo de véspera e marcaram encontro também ali no cais. Agora somos dois à procura, vais ser fácil pensei eu. De facto meu irmão agarra-me por um braço e diz-me com ar de zangado:
- Vem daí, a nossa mãe espera-te além!
Minha mãe recebeu-me com lágrimas de tristeza, pois para ela, eu desprezei a família, a mãe por troca com a namorada.
Após o espólio regresso a casa na manhã seguinte. Confesso que só ao chegar a Gaia e ver o meu Porto, senti que verdadeiramente estava fora da guerra. A recepção foi fria e estranha de tal modo que uns dias depois pensei em sair de casa. Queria fugir daquele ambiente que não me compreendia. Toda a gente afirmava que eu os tinha visto, atirado beijos, dito adeus, quando estava no barco e continuei sem lhes ligar à procura da namorada, enquanto os outros corriam a abraçar os pais e irmãos.
Eu negava. Rebatia que não tinha visto ninguém, que até cheguei a chorar de desespero, mas passava por mentiroso.
Passados uns dias, minha irmã que não tendo ido a Lisboa esperar-me, estava um pouco à margem do problema, foi ao meu quarto desejar-me boa noite e ficou a conversar comigo, pois só ela procurava entender-me.
- Sabes Zé, eles (minha mãe, irmão e cunhada) devem ter alguma razão, quando dizem que te viram, com um cãozito ao colo, e com um pau na mão. Dizem até, que tu quando vista a Glória (minha cunhada) saltaste de alegria e bateste com o pau na borda do barco, assim. Truz! truz! pegando no mesmo pau no qual estava embrulhado o cartaz que trouxera da Guiné.
Este truz truz reavivou-me a memória perdida. Num ápice, revi toda a cena; a minha cunhada a chamar-me, a acenar-me com a alegria natural de um encontro tão querido e há tanto tempo desejado, os meus gestos, a minha alegria…
Corri ao quarto da minha mãe, acordei-a e num longo abraço, bem sentido e selado pelas lágrimas, reencontrei-me e reencontrei a minha mãe.
Poderá parecer uma história, mal contada, mas foi a realidade do meu atribulado regresso, que teimava em não relembrar nem tão pouco escrever, mas o blogue prega-nos destas partidas.
Um abraço.
Zé Teixeira
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Adaptação e substítulos: vb
(1) Vd. poste de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca
(...) "O Conceição era uma camarada de Lisboa, que tanto quanto eu sabia, não tinha pais e vivia com a avó. Era um moço muito alegre e passava o dia a cantar.
"Já perto do fim da comissão, em Empada (está na parte do diário que não enviei para o blogue), estava na retrete ... e a cantar. Não ouviu as saídas de morteiro que nos foram enviadas do cimo da pista e controladas via rádio por alguém lá dentro ou junto ao arame farpado. Uma das primeiras rebentou no telhado da retrete e projetou-o para trás, esmagando parte da nuca contra a parede" (...).
(2) Vd. artigos de
1 Julho > Guiné 63/74 - P3007: Os nossos regressos (2): Finalmente, cheguei, estou vivo, não se assustem, sou eu, o Joaquim (J. Mexia Alves)
26 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2987: Os nossos regressos (1): Lisboa, dois anos depois (Virgínio Briote)
(2) José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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