quinta-feira, 3 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3018: Os nossos regressos (5): Refazer a vida (Carlos Vinhal)



Carlos Vinhal
Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá
1970/72



Refazer a vida

Se a última noite passada em Mansabá tinha sido um desassossego, a última passada em Bissau, não lhe ficou atrás.
O pessoal todo alvoroçado, adivinhando as poucas horas que faltavam para o regresso.

O dia aprazado para o embarque era 19 de Março (Dia do Pai) de 1972, às 16 e 30h, o local de partida o Aeroporto de Bissalanca. Quantos pais estariam naquele momento ansiosos pela melhor prenda que jamais iriam receber, o seu filho de volta.

No início de Março, já a CART estava acantonada nos Adidos, Bissau tinha sido, mais uma vez, fustigada com foguetões enviados pelo PAIGC. Desta feita a zona atingida foi a do Aeroporto. Logo os mais afoitos se esforçaram em recolher notícias sobre possíveis estragos nas pistas, não fosse o diabo tecê-las e nós termos de ficar mais uns tempos em Bissau. Tudo bem, felizmente. As metralhas cairam longe do objectivo.

Fevereiro de 1972> A última foto em Bissau


O último dia

Voltemos ao dia 19 de Março, dia de todos os útimos acontecimentos, começando pelo pequeno-almoço.

Por sorte, tocou-me o último Sargento de Dia à Companhia, começado no dia anterior e que terminaria assim que abandonássemos as instalações dos Adidos.
Em princípio tudo estava programado para correr normalmente, não fosse um acto de indisciplina por parte de um dos nossos militares que resolvendo antecipar a peluda, achou que já não devia seguir a disciplina imposta, mas necessária.

O Sargento de Dia à Unidade, deu-me instruções para ocupar determinadas mesas que estariam destinadas à CART 2732.
A malta começou a entrar e alguém resolveu sentar-se a uma mesa que não nos estava destinada. Fiz-lhe ver que deveria ir para junto dos seus camaradas entretanto já devidamente sentados, ao que ele se negou. Repeti-lhe mais uma vez a ordem e porque a desobediência continuasse, perdi a cabeça e levei-o para junto dos colegas ao empurrão.
Gerou-se alguma confusão, hoje reconheço que a minha atitude foi excessiva, mas na hora fiz-lhe ver que até ao último minuto a ordem e a disciplina eram para se cumprir.

No princípio da tarde lá fomos transportados para o Aeroporto, não ouvindo desta vez pelo caminho, como no longinquo dia 17 de Abril de 1970, os miúdos a gritarem: “Periquito vai pró mato...”

Procurámos em vão, na pista, o abençoado avião, mas nem sinais dele. Logo veio a notícia de que o vôo estaria atrasado cerca de duas horas. - Mais duas horas na Guiné. Não podia ser.

Os relógios que por ali marcavam a passagem do tempo, reuniram-se para fazer greve de zêlo, trabalhavam sim, mas de acordo com as leis vigentes, ou seja, cada hora com sessenta minutos e cada minuto com sessenta segundos. Quais maus funcionários públicos, não se compadeciam com as urgências de cada um, a Lei é para se cumprir escrupulosamente.

De quando em vez procurava-se no céu um pontinho que fizesse adivinhar a esperada aeronave, da qual nem sabíamos a cor.

Ao fim de uma eternidade chegou o nosso transporte que após despejar quem trazia, começou a engolir as nossas malas. Pelas 18,30h chegou a nossa vez de voar.

O regresso

Com o último olhar, despedimo-nos da Guiné e dos seus rios, das suas tabancas, da sua beleza natural, dos seus perigos, trazendo as suas gentes no coração. Mais do que nunca nesta hora, a lembrança dos camaradas que não puderam partilhar estes momentos de felicidade, por terem falecido durante a Comissão, vieram à lembrança, fazendo libertar uma lágrima teimosa.

Para a esmagadora maioria dos militares da CART seria a primeira viagem de avião, mas o nervosismo do batismo de vôo, diluiu-se no nervosismo próprio de quem estava ansioso pelo regresso. Os TAM estavam equipados com os majestosos Boeings 707 320C. Serviço de bordo impecável em nada diferente do das carreiras comerciais, excepção feita aos assistentes de bordo que eram militares, como não podia deixar de ser.


Boeing 707 320C dos TAM
Foto retirada do site do Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, com a devida vénia

Confesso que nunca vi um Boeing andar tão devagar, veio primeiro a noite antes que se avistasse Lisboa. A malta a bordo era um misto de emoções, uns muito alegres outros nem por isso e alguns vinham como que anestesiados, não acreditando numa oferta daquelas. Para lá tinham ido num porão do Ana Mafalda, mal instalados e mal comidos. Para casa traziam-nos num luxuoso avião, servidos com todos os requintes.

Às voltas por Lisboa

Pelas 23,30 horas de Portugal, na noite fria de 19 de Março de 1972, poisa em Figo Maduro a nossa aeronave trazendo de volta homens cheios de esperança para recomeçarem uma vida interrompida há já tanto tempo.

Algumas centenas de pessoas esperavam os militares continentais, já que os madeirenses só no dia seguinte voariam para o Funchal.

Eu já sabia que não teria ninguém à minha espera. O meu camarada e ainda hoje amigo, Dias, residente nos arredores de Vila Nova de Famalicão, tinha-me prometido boleia até casa, mas na hora verificou que a família apenas trazia de reserva um lugar para ele. Para compensar levava-me as malas, ficando eu assim livre desse incómodo.

Faltavam no entanto os últimos procedimentos militares.
Após alguns momentos junto dos familiares, fomos transportados, a monte, em camionetas Morris, quem não se lembra delas, com a caixa equipada com um banco corrido de cada lado, tapada com uma lona, mas aberta atrás e à frente, apanhando o vento daquela fria noite lisboeta, para o Hospital da Estrela. Bom começo para quem vinha do tórrido calor da Guiné, mas que importava, já não precisavam de nós saudáveis.
Fizemos alguns exames para despiste de alguma coisa mais complicada, acho eu e, já a madrugada ia alta, nos puseram a caminho do RAL1, pois faltava saldar as contas com a Tropa. Ainda bem porque eu estava tesinho que nem um carapau seco e nem dinheiro tinha para vir para casa.

Tentei ficar com o cartão de militar, mas como o sorja me ameaçou não me pagar se não o entregasse e o dinheiro era importante para mim naquela situação, rendi-me à evidência.
Deram-me umas massas correspondentes ao vencimento até à data de passagem à disponibilidade, 11 de Abril de 1972. Bem bom, pensei, quase um mês pago para não fazer nada.

Passadas umas horas, cada um começou a ir para seu lado. Os de Lisboa desapareceram, os de fora que tinham família, também e vejo-me praticamente só em Lisboa, alta madrugada, não sabendo sequer para onde era o norte. Um taxista que passava, em busca de alguma corrida mais compensatória, perguntou-me de onde era e como eu dissesse ser do Porto, interessou-lhe o cliente. Demos umas voltas para ver se aparecia alguém para completar o carro, mas ao contrário, encontrámos um outro táxi já com três camaradas que vinham para a zona de Santo Tirso e que procuravam um quarto elemento. Descartei-me do meu motorista de ocasião, mudei de táxi e... EN1 fora nos pusemos a caminho da Cidade Invicta.

Estava uma madrugada húmida com vestígios de ter chovido. Para quem se lembra, a EN1, apesar de ser o principal eixo Norte-Sul, era uma estrada má, com muitos buracos, onde se perdia imenso tempo a escolher os mais pequenos na tentativa de poupar a mecânica dos automóveis. Como é dos livros, em tempo de chuva os buracos engordam.

Para se fazer uma ideia do tempo que se demorava a fazer o Lisboa-Porto, saímos da capital pouco passava das cinco horas da manhã e chegámos à Ponte Luís I um pouco antes das 11.
Para facilitar a vida aos meus camaradas que continuavam viagem, fiquei ao fundo da Av. dos Aliados.

Finalmente na santa terrinha

Respirei fundo. Que estranho, as pessoas andavam nas suas vidas completamente descontraídas, as mulheres eram todas tão bonitas. Eu ainda fardado, olhar estranho, mirando tudo e todos, sorvendo sofregamente aqueles momentos, exibia na manga do blusão um dístico com a palavra Guiné e por cima do bolso esquerdo a Medalha Comemorativa das Campanhas da Guiné, mas ninguém reparava em mim. Apetecia-me gritar:- Vejam, sou eu, acabo de chegar da Guiné. - Que se danem.

Procurei a praça de táxis. Ali estava, no mesmo sítio. Em Portugal, naquele tempo poucas coisas mudavam. Estava tudo bem.
- Para a Rua D. Nuno Álvares Pereira, 799, Matosinhos, se faz favor.

Entretanto começou tudo a ficar mais familiar. As ruas, as casas, as pessoas... Chegados, pedi ao motorista do táxi para esperar um pouco, subi o pequeno lance de escadas que me levava ao pequeno pátio e bati à porta. O meu coração não cabia dentro do peito. Quem viria abrir? Oxalá fosse ela. A porta abriu, apareceu a madrasta que me disse que a Dina não estava, porque tinha ido a casa de uma irmã que havia casado uns meses antes.

Desci as escadas desiludido, triste e magoado. Toda a gente sabia que eu chegava naquela manhã. Incompreensível a sua atitude. Nem parecia dela.

Com semblante carregado pedi ao homem que me levasse para Leça da Palmeira. Chegados junto à Igreja, pedi para me deixar ali, paguei e percorri as poucas centenas de metros que me separava de casa. Confesso que a esta distância não me lembro de me ter cruzado com alguém conhecido, o que é improvável. Sei que não troquei palavra com ninguém. Ao dobrar a esquina da minha rua, vejo ao fundo, junto à nossa porta o meu pai que deve ter passado ali a manhã toda à minha espera, para que eu visse que ele já estava refeito de uma crise cardiovascular de que tinha sido vítima no mês anterior. Disso viria a falecer anos mais tarde.

Depois de um efusivo abraço, entrámos em casa. Apareceu logo a minha mãe que estranhamente chorava... porquê se eu já ali estava, definitivamente são e salvo? Segundos depois apareceu a razão do meu viver, que esteve escondida todo o tempo que eu dediquei aos meus pais.

Ainda hoje lhe digo que a alegria de a ver na companhia dos meus pais, à minha espera, foi menor que tristeza que senti quando em sua casa me disseram que estaria em casa da irmã. Ninguém compreendia como vínhamos tão fragilizados psicologicamente daquelas terras. Não se admitiam jogos nem brincadeiras naquelas horas do reencontro com a vida dita normal. As provações foram tantas... os reencontros tão difíceis...

Passados os primeiros dias em que tive ocasião de rever todos os amigos e refazer a minha vida social, a ordem era ver como estava a minha situação profissional.
Quando fui incorporado já era funcionário público, embora em regime de Assalariado de caráter permanente, pelo que tive de ver como estava a minha situação. Consultei o Chefe que informou que o meu lugar me aguardava e que continuava a ganhar 1700 escudos mensais, o mesmo que ganhava quando fui para a tropa. - Qual quê? Como me vou casar? Tenho 24 anos, três dos quais perdidos como militar.
Foi-me prometida promoção condigna e futura integração na carreira correspondente às funções que exercia.

Voltei ao trabalho no dia 17 de Abril de 1972 e fiquei a saber que tinha sido aumentado em 900 escudos. Com 2600 escudos já dava para casar desde que a futura esposa desse uma ajuda.
Mais tarde, em Janeiro de 1973, fui integrado na nova categoria, tendo novo aumento e o caminho aberto para progredir profissionalmente, como veio a acontecer.

Em Agosto do mesmo ano de 1972 dissemos ambos o sim que se mantém após 36 anos já volvidos.

Dediquei parte da minha vida a servir o Estado. Fi-lo entre 1966 e o ano 2000, sendo que entre 1969 e 1972 o fiz, usando uma farda e uma arma.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2008> Guiné 63/74 - P3015: Os nossos regressos (4): Dois anos perdidos naquela terra, quente, húmida e vermelha...(Torcato Mendonça)

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