terça-feira, 1 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3007: Os nossos regressos (2): Finalmente, cheguei, estou vivo, não se assustem, sou eu, o Joaquim (J. Mexia Alves)

1. Para a nova série Os Nossos Regressos (1)... 

Regressos, no plural, por que cada história é uma história... O regresso a casa não foi vivida da mesma maneira, por todos nós: houve seguramente um cocktail explosivo de sentimentos contraditórios... E depois a mais ou menos difícil (re)adaptação à vida civil, após um ano de tropa e dois de guerra... 

O meu regresso e o que se seguiu depois 

por Joaquim Mexia Alves (2)

Sei lá quando, já não me lembro, mas deve ter sido nos meados de Dezembro de 1973, que me disseram em Mansoa: 
- Prepara-te, vais para Bissau para embarcares para a Metrópole. 

Parecia assim uma coisa irreal! Agora que o cacimbo tomava conta de mim totalmente, agora que tanto me fazia ser de noite ou de dia, estar no quartel ou no mato, é que me diziam para eu me ir embora. 

Fiquei a pensar no assunto e tive uma certeza: tinha de estar muito apanhado do clima para a coisa não se transformar em euforia! 

Lá pelos vinte dias de Dezembro, julgo eu, vim então com uma mala pequena, para Bissau. Tanto tempo, dois anos e nada para trazer! 
O whisky tinha-o bebido, (que assim não se estragava de certeza), as fotografias, as que tinham sobrado de uma fúria que me tinha dado e me levou a rasgar não sei quantas, também vinham no saco, o camuflado, uma roupita civil e sei lá eu bem mais o quê. Bissau, as burocracias, os últimos copos, as últimas doideiras, (tenham pena de mim que me vou embora e desculpem lá qualquer coisinha), e duas ou três tentativas falhadas de ligar para a família a dizer: 
- Parto hoje, chego amanhã, não se incomodem, que eu também não.

Um último olhar a Bissau, à terra quente e vermelha, um último suspiro de calor, uma última experiência dos braços, pescoço e todo o corpo sentir-se todo molhado de suor, pegajoso e embarcar. Ao menos aqui não há aquelas mosquinhas pequeninas do mato que se metem nos olhos, nos ouvidos, poisam nos braços e não levantam quando passamos a mão e ali ficam esmagadas, coladas com o suor do calor e do medo. 

 Avião, ar condicionado, "hospedeiras" fardadas, de barba feita, que debaixo das cuecas eram “inguais” a mim, que naquele tempo ainda a mulher não ia à tropa! Lá em baixo vai ficando para trás a estrada de Bambadinca/Xitole, tantas vezes palmilhada, o Geba, e a travessia mil vezes repetida de sintex a remos de Mato Cão para Bambadinca, a estrada Jugudul/Portogole, causa de tantas noites em branco, vai ficando para trás o suor, as lágrimas, a revolta, o sangue e vai nascendo já, muito timidamente, uma saudade inexplicável. 

E ficam também para trás os camaradas e amigos que comigo embarcaram e agora ainda têm de penar mais um pouco. 
E ficam para trás os meus camaradas “toupeiras” de Mato Cão, e o bife de javali frito em banha da cobra, e as perninhas de rato cozinhadas à José Orabé. 
E ficam para trás os Balantas garbosos, guerreiros do "Taque Tchife", "Agarra à mão", dos quais me vai no coração o "gigante" In Oina Nor, que supostamente me protegia as costas e lá de baixo, na bolanha, deve olhar para o avião com os óculos de lentes amarelas, de andar no mato, que lhe deixei. 

Na ida deram-me seis dias de Niassa para me ir habituando à ideia da Guiné. Agora só me dão duas ou três horas para me ir readaptando à sociedade dita civilizada. A coisa não vai dar certa!
 
Finalmente o “pássaro” aterra em Lisboa. 

Que tristeza, toda a gente dá abraços, beijos, palmadas nas costas, lágrimas, e eu para ali sozinho, perdido, irrealmente regressado da guerra. Um camarada da guerra, que não me lembro se já conhecia, ou se foi conhecimento a bordo, percebe a minha desorientação, ou por já lhe ter dito que não tinha lá ninguém à espera, ou porque percebeu a coisa, e diz-me: 
- É pá, se não tens ninguém, eu peço aos meus pais e levamos-te a casa. 

Eu nessa altura, ou seja antes de partir, vivia em Lisboa. Nunca percebi porquê, mas a verdade é que tinha levado comigo a chave da casa para a Guiné e ainda estava comigo. Aceitei de muito bom grado a oferta e fizemo-nos ao caminho. Lembro-me vagamente de termos parado na Estalagem Terminal, logo ali na Avenida Gago Coutinho, pois era lá que os pais deste camarada tinham ficado hospedados e de eu tentar telefonar para casa sem ninguém me atender. 
E chegámos finalmente à Rodrigo da Fonseca, rua da minha infância e adolescência, despedimo-nos com agradecimentos e juras de nos reencontrarmos, e toquei à porta na esperança que abrissem e eu fosse preparando caminho para evitar "cheliques", desmaios, etc, etc. 

Tal não aconteceu, e assim fui subindo de elevador até ao quarto andar e, com algum receio, meti a chave à porta e abrindo-a gritei: 
- Sou eu, o Joaquim, já cheguei da Guiné, não se assustem! 

Respondeu-me o silêncio, um insuportável e profundo silêncio! A casa não tinha aspecto de ter vida naquele momento e então fez-se luz no meu espírito! Era dia 21 de Dezembro e por isso a família já estava em Monte Real para passar o Natal. Fiquei mais aliviado. Pousei a mala e fui direito ao telefone, para ligar para casa dos meus pais em Monte Real. Atendeu um irmão meu: 
- Está lá. Quem fala? 
Respondi: - É o Joaquim! 
Resposta pronta: - Ó meu filho da p…, vai pró c…, o meu irmão está na guerra da Guiné e tu a gozares! Vai pró c… E “tunga”, desligou-me o telefone nas trombas! 

Liguei outra vez, e muito rápido disse logo para não desligar, que era eu mesmo e que dava provas disso, etc e tal. Depois de convencido lá falámos um pouco, porque é eu não tinha avisado e enfim e "assim e andando". Disse-lhe para me virem buscar a Lisboa e ele disse que já me ligava. Isto ao que me lembro era assim já lá para as nove horas da noite, ou coisa parecida. Pouco tempo depois disse-me que me vinham buscar, mas não era já, para eu descansar um pouco, que lá para a meia-noite, uma hora estariam em Lisboa. Não percebi muito bem porquê, porque é que não vinham logo, mas borrifei no assunto. 

Mas qual descansar, qual quê!... Vou já é p'ró Gambrinus! 

A excitação de estar em Lisboa, mais a fome e sobretudo a sede de uma imperial como deve ser, chamavam por mim. Lembrei-me então que estava todo vestido de verde e que não ia para a rua fardado, era o que mais faltava! Fui ao guarda-fatos do meu quarto procurar roupa para vestir e deparei com o dito cujo vazio! Tinham-me levado a minha roupa toda para Monte Real, julgava eu.
Assim tive de me socorrer das jeans que trazia na mala vinda comigo da Guiné, um pólo azul claro e os respectivos sapatos. Tinha, julgo eu, cerca de 20$00 no bolso, guardados religiosamente desde a última vinda à Metrópole, nas férias. 

Saí de casa e percebi então verdadeiramente que era dia 21 de Dezembro, Inverno em Portugal e que eu estava de manga curta e com o "bronzeado" típico da tropa em África. Não me preocupei com a coisa, mas vi nalguns rostos que se cruzavam comigo na Avenida da Liberdade, o espanto e a pergunta íntima se eu não estaria doido. Fui direito ao Gambrinus, na Rua das Portas de Santo Antão, onde os meus amigos e o pessoal dos toiros se costumava juntar ao fim da noite, na certeza que havia de encontrar pessoal conhecido e que alguém havia de ter pena de mim e me havia dar de comer e beber. O Zé Luís Vacas de Carvalho, sabe bem onde é!!! 

Assim que entrei e me dirigi ao balcão, o Domingos, Chefe do Bar e que me aturava desde as minhas primeiras saídas nocturnas em Lisboa, logo percebeu o que se passava e disse-me: 
- Acabou de chegar da Guiné, não é? E se calhar nem tem um tostão no bolso? 

Para além de me servir de imediato uma reluzente, fresquíssima e saborosa cerveja, deitou as mãos ao bolso e entregou-me dois contos de réis, dizendo-me que depois faríamos contas. Senti-me um pouco em casa e entretanto foram chegando os amigos, foi-se fazendo a festa, bebendo umas cervejas e matando saudades. 
Depois lá fomos para um bar qualquer de Lisboa, continuar a noitada, de tal modo que me esqueci que já devia ter os meus irmãos em casa à espera. Despedi-me, meti-me num táxi e fui para casa onde os meus irmãos já dormiam nos sofás da sala. Abraços, algumas lágrimas, recriminações por não ter avisado e metemo-nos no carro para, julgava eu, irmos direitos a Monte Real. Claro que passado um pouco, com trepidar do carro e as últimas emoções vividas, adormeci como um "anjo" e dormi por tempo largo. 

Em Castelo de Vide, Alentejo, para uma batida aos coelhos 

Quando acordei e olhei pela janela do carro não percebi se ainda estava a dormir e a sonhar, porque a paisagem que via na luz da aurora nada tinha a ver com Leiria, Monte Real, ou arredores. Logo de imediato parámos numa bomba de gasolina e os meus irmãos disseram-me que o meu pai e os outros estavam à minha espera no café, ligado às bombas. Mais abraços, mais lágrimas e a pergunta inevitável: 
- Mas onde é que raio nós estamos? 
Desvendou-se o mistério: Estávamos no Alto Alentejo a caminho da Castelo de Vide, onde íamos a uma batida aos coelhos! Fiquei ali sem pensar no que dizer. Certo é que passado pouco tempo lá estávamos preparados para a caça, (não me lembro se vesti o camuflado, ou a farda verde), e eu ainda nem passadas 24 horas de ter saído da Guiné, com uma arma na mão a olhar para a mata à minha frente. 
O meu irmão João dizia-me: 
- Ó pá, toma cuidado que andam aí uns gajos a bater os coelhos. Não são “turras”, (que me perdoem os camaradas de armas do PAIGC), são batedores. Não dês um tiro em nenhum! 
Aviso importante que retive na cabeça, pois a coisa podia dar para o torto. 

Bem, durante a manhã acertei sobretudo no chão, nas árvores e em muita coisa que não coelhos, mas para a tarde já matei um ou dois, sei lá, já não me lembro. 
Regressámos então a Monte Real, onde fui apaparicado pelas senhoras da família, com a minha mãe à frente, claro. Nem sempre o último filho de nove irmãos tem a possibilidade de ser mimado, porque é coisa já muito vista, por isso foi um momento muito especial do meu regresso. 

No outro dia de manhã, (ainda estou para saber se foi real ou sonhado), ainda a dormir ouvi umas explosões e só quando dei com as trombas na porta da cozinha percebi que não havia valas para me meter e que já não estava na Guiné mas sim em Monte Real. Parece que teria havido uns foguetes nessa manhã, mas não se falou mais no assunto. 

Regressado a Lisboa, lá me fardei pela última vez para ir ao Depósito de Adidos, acabar com a minha ligação à tropa. À entrada, e perante a indiferença do sentinela, (que achei uma falta grave de consideração por um combatente…), dei-lhe uma "pissada" e obriguei-o a fazer um "ombro arma" como devia ser. 
Entrado na Repartição que me tinham indicado, dou com um Sargento sentado, mal-humorado e que me atendeu como se eu fosse uma "merda" qualquer. Depois de algumas insistências minhas para ser atendido e uns grunhidos do dito cujo como resposta, veio ao de cima o meu lado irascível e colocando uma mão no balcão, saltei para o outro lado. Está bom de ver que o homem deu um salto e correu para trás fazendo imensas promessas que eu iria ser despachado num ápice e que pedia muita desculpa, mas não se tinha apercebido, etc, etc. 
Lá me entregaram o papelito a dizer que eu passava à disponibilidade e curiosamente não estava lá nenhum General ou politico para me agradecer os três anos dados à Nação, etc, etc, o que eu também não estava à espera, obviamente. 

À saída, ainda fardado claro, o sentinela ao ver-me, fez o mais perfeito "ombro arma" da sua breve carreira militar. Ai não!!! 

Bem, depois foi a inadaptação à sociedade de Lisboa 

Aquela gente vivia como se não houvesse gente a morrer na guerra, como se nada se passasse e quando eu dizia qualquer coisa acerca disso, olhavam para mim como se eu fosse um qualquer "alien" completamente desfasado da realidade. Claro que isto não podia dar bom resultado, e as noitadas, os copos sempre em exagero, os problemas e "desaguisados" constantes, não prenunciavam nada de bom para a minha vida futura. 
Os meus pais preocupados, bem como o resto da família, arranjaram uma solução que me propuseram. Um dos meus irmãos mais velhos tinha empresas em Angola e Moçambique, e assim, se eu concordasse iria uns tempos para Angola, adaptar-me a trabalhar, a fazer algo de útil pela vida e depois logo se veria o que se seguiria, pois em Lisboa a coisa ia-se complicar e o reentrar no curso de Medicina era coisa que nem os maiores sonhadores acreditavam que eu fizesse. 

Assim, passados pouco mais de dois meses de ter saído da Guiné, no dia 8 de Março de 1974, esta “praça” desembarca no aeroporto de Luanda. (É curioso que o país e a tropa complicaram como o caraças a minha ida para Angola, o que não tinha acontecido quando foi para eu ir para a Guiné. Porque é que seria????) 

Aberta a porta do avião, levei com aquele calor e aquela humidade que aproximam o clima de Luanda do da Guiné, e foi quase como um regressar a "casa". 
Daqui para a frente, o clima, a sociedade, os amigos, e até, curiosamente a situação politica, ajudaram-me a encontrar um equilíbrio para poder continuar com a minha vida. 

Regressei pouco antes da independência, mas já com outra vontade de viver. A guerra passou, os tempos duros e feios também e agora dou comigo muitas vezes, como dizia no nosso encontro em Monte Real, a ter saudades da Guiné e dos tempos de camaradagem, em que os homens por força das circunstâncias, mas não só, confiavam uns nos outros e encontraram amizades para toda a vida. Somos especiais, não tenhamos dúvidas, pois o que passámos determinou em nós um código de conduta, um "linguajar" muitas vezes apenas para nós compreensível, e uma generosidade de entrega que se revela de cada vez que é necessária. 
Fazemos e faremos quer queiram quer não, os políticos e outros, parte inegável da história de Portugal. Apenas me morde a consciência, o coração, aqueles que, ou deixando-se levar por promessas ou de livre e expontânea vontade, sendo da Guiné, decidiram combater connosco, servindo a nossa pátria, e acabaram abandonados pela nossa bandeira tendo sido alvo da fúria de alguns dos seus irmãos de nacionalidade. 
Estes factos são uma vergonha que há-de perseguir os portugueses e um dia terão de estar inscritos na história como uma das páginas mais tristes e vergonhosas de Portugal. A ti, In Oina Nor e a tantos e todos que como tu protegeram as “nossas costas”, as “costas” de Portugal, a minha homenagem, o meu respeito, as minhas lágrimas sentidas. 
Mas estou em paz, pela graça de Deus. 

Joaquim Mexia Alves 
Monte Real, 28 de Junho de 2008
 __________ 


(2) O nosso amigo e camarada Joaquim Mexia Alves foi alferes miliciano de operações especiais, tendo passado, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, por três unidades no TO da Guiné: 
(i) pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); 
(ii) ingressou depois no Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão); 
(iii) terminou a sua comissão na CCAÇ 15 (Mansoa ). 

A CART 3492 pertencia ao BART 3873 (Bambadinca, 1971/74). 
O Pel Caç Nat 52 estava na altura afecto ao mesmo batalhão. No Sector L1 (Bambadinca) privou com a malta da CCAÇ 12. Em todo o lado fez amigos. A CCAÇ 15 era uma das novas companhias africanas, neste caso composta por balantas.

3 comentários:

Luís Graça disse...

Meu caro Joaquim: são estes textos, ainda escritos com o sangue que nos resta, que nos fazem orgulhar do nosso blogue! E que fazem tão bem à nossa auto-estima.

Parabéns!... E que seja um estímulo para outros camaradas escreverem sobre o seu regresso.. à normalidade, ao "outro lado do da vida".

Luís Graça disse...

Pois é, amigos e camaradas, não haverá duas histórias iguais, nunca há duas histórias iguais... Em contraparida, teremos experimentado o mesmo leque de emoções, sensações e sentimentos: da alegria à tristeza, da saudade ao desencanto, da estranheza à raiva...

Alguns levaram cinco anos a voltar ao normal... Outros nunca mais o conseguiram... Outros, ainda mais filosoficamente, perguntaram-se (ou perguntam-se ainda hoje):
- O que é(ra) o normal ?

Quando se olharam para o espelho, não reconheceram o jovem que, dois anos antes, tinha sido sido mobilizado para o TO (Teatro de Operações!) da Guiné... Seguramente, ninguém voltou mais como veio. Nunca mais fomos os mesmos.

São estas histórias de regresso que é preciso contar. Nem sei se hiouve um regresso. Se não ficámos memso, poara sempre, na Guiné... Muiytos de nós deixaram lá ficar um fantasma, sua alma penada, que ainda não foi exzorcizada.

Não é fácil alinhavá-las, a essas histórias/estórias, no écrã do computador ou na folha branca de papel... Mas gostaria de poder ler outras, tão arrebatadoras, de um grande lirismo contido, com as do Briote e do Mexia Alves, que inauguraram em cheio esta nova série...

Eu, por mim, estou a arranjar coragem para contar a minha (ou, pelo menos, uma versão mais ficcionada)...

Anónimo disse...

Camarada e amigo ("camarigo", como gostas de dizer) J. Mexia Alves, é sem dúvida um belo e sentido depoimento. Um retrato bem fiel do que sucedeu a muitos de nós. E a parte final é um soberbo hino à solidariedade e à amizade profundas que naquelas terras, naquelas condições e com a idade que todos nós tivemos, conseguimos desenvolver, bem como, ao mesmo tempo, colocas o "dedo na ferida" relativamente ao modo como "não foram" tratados e acautelados aqueles que pelas razões que apontas se colocaram "do nosso lado".
Hélder Sousa