terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3805: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (18): O doutor não tem um remédio para a guerra?


NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (18)

MÉSINHA ? CÁ TEM!


- “É a guerra aquele monstro que se alimenta das vidas e das fazendas… e até Deus… não está seguro”.
Assim dizia solenemente o médico (tenente miliciano médico) que acabava de chegar, aproximando-se do grupo de oficiais que, em pé, se juntavam à volta de uma mesa, apreciando os jogadores de poker.

- Boa noite, meus senhores guerreiros. – cumprimentou.
Não obteve resposta.

Chegava sempre quase à hora de jantar, nunca muito antes, para evitar permanecer muito tempo naquele espaço, que tinha um pequeno bar e uma cozinha pequena. Era, pomposamente, chamado “messe dos oficiais”.
O médico tinha lugar na mesa do major oficial de operações, com quem discutia tácticas e estratégias. O oficial de operações não o levava a sério, mas alimentava a conversa sem deixar escapar qualquer informação, não confirmando ou negando as que o médico dizia ter.


- O doutor também faz planeamento das suas guerras subterrâneas? – perguntou um capitão que estava na mesma mesa.
O médico não respondeu, mas ficou incomodado. Era uma referência às instalações que ocupava: um abrigo com dois metros e meio abaixo do chão, com tecto e paredes de ferro e cimento. Para conseguir essas instalações argumentara que a enfermaria deveria ser instalada em abrigo seguro. Então tomou como suas parte das instalações, que passaram a ser o seu quarto e local de trabalho.


Durante o dia circulava pelo quartel, mas, logo que anoitecia, prevendo o risco de ataque com armas pesadas, recolhia às suas instalações, onde lia e ouvia música debitada por um gravador gigante, que desdobrava rolos de fita magnética. Saía só para o jantar, a coberto das paredes das traseiras da messe, entrando pela porta da cozinha. Terminado o jantar, regressava às suas instalações pelo mesmo caminho.


Um dos alferes milicianos lançou-lhe outra farpa:

-A guerra subterrânea do doutor acabou quando foi mobilizado para a Guiné.
Também não respondeu. Era outra referência aos rumores sobre a sua militância política nos tempos de estudante.

O oficial de operações mudou de assunto:
- Então doutor, quantos homens tem internados com paludismo?
- Três. Um vai ter alta amanhã. Acho que o pessoal não toma o quinino.
- Eu também não o tomo há mais de três meses - disse um alferes – quando os mosquitos me picam, começam a voar aos ziguezagues e caem bêbados no chão.


O médico voltou-se para a mesa ao seu lado esquerdo:
- Então, meu Comandante, notícias de Lisboa?
- Ó doutor, você é que está sempre informado.
- Mas o senhor recebe notícias diárias de Bissau…
- De Bissau só dizem o que querem.
- Oi! Cuidado, meu Comandante! Ainda tem alguma visita inesperada!
- Só se for por sua causa, doutor.

O médico fingiu ter ficado agastado.
- Não se chateie, homem. Olhe, dizem que a PIDE vai acabar.
- Não acredito.
- Ó doutor, você quer que eu ensine o padre-nosso ao vigário?
- Verdade… Não sei nada.


- Sr. Capitão – chamou o médico para uma outra mesa – aquele rapaz do pelotão do alferes Silva, que teve ontem um ataque de abelhas, não estava nada bem. Fez uma reacção anafiláctica. O rapaz quase não respirava.
- Ora! Quase todo o pessoal chegou aqui com a cara inchada. Nem conseguiam ver.
- Pois. Cara, pescoço e braços inchados, mas não foi a mesma coisa. O rapaz contou-me que foi durante uma emboscada.
- Eu sei.

Cortou o comandante:
- Da população, o que é que lhe aparece mais?
- Coisas que o furriel enfermeiro e os cabos tratam: suturas, pensos, feridas infectadas… Apareceram dois casos de infecção depois do fanado.
- Rapazes?
- Sim, rapazes. Recentemente houve dois partos. E agora está a aparecer muita garotada com infecções causadas pela matacanha. Mais que no ano passado.
- Bonita conversa para o jantar – disse um alferes.


- O que é preciso é conseguir um remédio para a guerra. O doutor não tem um remédio para isto?
O médico bebeu o último gole de café. Começou a levantar-se.
- Dão-me licença?
Fez com a mão um sinal de despedida e continuou:
- Remédio? Mésinha? Mésinha cá tem!


Ia sair pela cozinha, como sempre, mas voltou atrás. Irónico, falou para toda a sala:
- Tenham cuidado com as cadeiras. Podem cair quando menos esperam.
E recolheu aos aposentos subterrâneos.

Alberto Branquinho

ex-alf
mil da CArt 1689, 1967/69.
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Notas de vb:

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