domingo, 25 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3791: Estórias do Zé Teixeira (36): O El Gonzalez (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Publicamos hoje a 34.ª estória de Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 2 de Janeiro de 2009.


O EL GONZALEZ

El Gonzalez, abafador de tacos de profissão (1). Estado natural, alcoolizado. Conheci-o na quinzena em que, perdidos nas Serras da Beira Baixa, nos preparavamos para partir para a guerra na Guiné. Como tudo servia para carne para canhão, El Gonzalez já marcado pelo vício do álcool, logo deu sinal de si. Num ambiente tão propício, como o de viver sobre calor escaldante, longe da família e num ambiente de guerra, a situação agudizou-se.

Como telegrafista o Pré era baixo, mas certo e sabido que no dia em que El Gonzalez andasse sóbrio era para se deitar um foguete, na certeza que poucos se gastariam nos cerca de dois terços de comissão que teve de cumprir. Como arranjava o patacão, não sei. É certo que havia sempre alguém a pagar uma cervejita, só para o ver feliz, mas não era o suficiente para o seu grau de alcoolização permanente.

Durante a visita que Marcelo Caetano fez à Guiné, coube-me a sorte de ir passar a noite na outra margem do rio de Buba, exactamente no local de que servia o PAIGC para nos vir cumprimentar à canhoada, enquanto a sua Infantaria atacava do lado oposto, junto ao cemitério ou junto à pista de aviação. Local onde o comandante Manecas - o futuro comandante do PAIGC responsável pelos Mísseis Strela, não foi apanhado à mão pelos Fuzas, porque a sua estrelinha o acompanhava, no célebre ataque a Buba em Outubro de 1969, estudado no terreno pelo Capitão Peralta (cubano) e pelo próprio Manecas. Operação que se lhes tivesse corrido de feição, Buba teria caído nas suas mãos. Era esse pelo menos o seu projecto, segundo me contou o Comandante em Março passado. Ataque que eu não vivi por ter ido uns dias antes para Empada.

Após uma penosa marcha, por Sinchã Cherno, para iludir os possíveis espiões existentes na Tabanca, como se confirmou posteriormente na sequência do referido ataque de Outubro, existirem em Buba e para ultrapassar as barreiras naturais do rio – braço de mar, que se espraiava até Buba, inundando e alagando as terras limítrofes, para recolher novamente ao sei leito na maré vasa.

Pois bem, o El Gonzalez, foi o telegrafista, que nos acompanhou nesta árdua missão.

Na nossa marcha, pudemos apreciar um belíssimo espectáculo, nunca mais visto. Caranguejos multicolores, aos milhares espalhados no tarrafo, formando um colorido tapete que mudava de forma e cor em função da nossa evolução no terreno. Ao sentirem o ruído que provocávamos na marcha, ao pôr os pés no chão, fugiam à nossa frente, procurando um buraco na lama para se esconderem, formando uma espécie de semi-circulo. Nessa deslocação precipitada mudavam de posição no terreno, modificando permanentemente as cores do tapete que formavam com os seus corpos. Espectáculo fantástico que devo ao senhor Primeiro Ministro, dado que se ele não tivesse ido à Guiné, eu possivelmente não teria ido passar a noite a tão perigoso lugar e assim perderia a esta imagem que ainda retenho no baú das minhas recordações.

O El Gonzalez, chegado ao local, pousou o rádio, encostou-se a ele e adormeceu, roncando toda a noite. Acordou no dia seguinte, à pressão, já o sol ia alto e a primeira pergunta que fez foi:
- Onde estamos ?

Certo e sabido que com o seu roncar, não havia inimigo que tivesse a coragem de se aproximar e impossibilitou que algum camarada mais despreocupado adormecesse.

Na sequência desta aventura, enviei-o para o Hospital em Bissau como alcoólico crónico, na esperança de conseguir recambiá-lo para Lisboa. Oito dias depois, apareceu em Buba como curado. Passados uns dias, face ao seu contínuo estado, foi de novo dar um passeio até Bissau, mas só à terceira tentativa, logrou ganhar o passaporte para a Capital.

Isto passado mais de ano e meio de comissão.

(1) Depois da colocação de tacos no soalho das casas. Com uma lixadeira faz o polimento dos tacos e a enceramento

Zé Teixeira
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3767: Estórias do Zé Teixeira (35): O Lisboa (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

2 comentários:

Anónimo disse...

José Teixeira
O rapaz era "afagador" de soalhos e não "abafador"...a menos que no Norte (de onde eu sou, mas estou emigrado)seja assim.
Ao ler o texto, lembrei-me de que, quando a minha Companhia esteve dois ou três dias em Buba, esperando a partida para Chamarra/Aldeia Formosa/Gandembel,a ideia que retive do quartel era ser um "elpaldão de carreira de tiro", sendo o tiro de precisão facilitado por dois aspectos:
- Os dois braços de água que a envolviam e
- O franco alteamento do quartel em relação à água.
Cumprimentos ao homem e aos escritos.
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Alberto.
Então tu também andaste por aquela zona!
É verdade. Buba ficava num sítio elevado em relação ao rio, pelo que era fácil a artilharia, bem apontada fazer grandes roncos,só que a terra era muito mole e as armas enterravam-se, facilmente,fazendo com que as granadas caissem no rio, como me confirmou o comandante Manecas, mas tinha na rectaguarde uma mata muito cerrada, sem qualquer aquartelamento português para lhe tolher a retirada.
O lado oposto (da pista)era uma ligeira encosta que se sobrepunha à povoação o que seria a meu ver sem ser um "expert" na arte de guerra um espaço excelente para artilhara ligeira e infantaria, como aliás houve vários ataques em que eles se serviram dos dois espaços em simultaneo para nos atacar e até tentar penetrar em 14 de Fevereiro de 1969 cerca das cinco da manhã e em Nobembro do mesmo ano. do lado da pista havia uma aldeia inimiga a cinco Km em Sare Tuto que eu tive o prazer de visitar em 2005 e aí tomar contacto com os primeiros inimigos de outrora.
Naturalmente que estavam numa situação preveligiada para nos atacar em Buba, Nhala, Saltinho, etc e sobretudo fazem-nos esperas na bolanha dos passarinhos e outro locais propicios para emboscadas.

Um abraço do tamanho do rio de Buba no seu abraço à tabanca