quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3809: Notas de leitura (12): Os últimos dias do destacamento de Copá, Janeiro/Fevereiro de 1974 (Helder Sousa / Fernando de Sousa Henriques)

(...) "O livro tem como título principal No Ocaso da Guerra do Ultramar, e como subtítulos Uma Derrota Pressentida,. Notícias de um Correspondente de Guerra, Combatente na Guiné e é da autoria de Fernando de Sousa Henriques.

"Obtive-o num encontro de camaradas que pertenceram à CCS do BCAV 2922, sediada em Piche, sendo esse Batalhão (e as suas Companhias colocadas em Buruntuma e Canquelifá) substituído pelo BCAÇ 3883, ao qual o autor do livro pertencia, mais propriamente integrando a CCAÇ 3545. Como o autor retrata os mesmos locais e até faz largas referências à fase de 'passagem de testemunho' entre esses dois Batalhões, foi natural ter aparecido nesse convívio.

"Da ficha técnica pode-se retirar que a impressão e acabamentos pertenceram a Coingra, Lda, mas não tem mais indicações a não ser os contactos com o autor que sabemos ser Fernando de Sousa Henriques, ter o telemóvel 919534059 e o endereço de mail
fernando.sousa.henriques@gmail.com , para o caso de algum camarada o quiser contactar.

"O autor foi Alferes Miliciano de Operações Especiais e encontrou-se na Zona Leste no período de 1972-74 sendo que foi testemunha directa do final do conflito pois o regresso só ocorreu em Julho de 1974. É natural do concelho de Estarreja e encontra-se radicado na Ilha de S. Miguel (Açores) onde desenvolve a sua actividade profissional (na Administração Portuária do Porto de Ponta Delgada), colaborando activamente com a ADFA-Açores" (*).


1. Mensagem do Hélder Sousa, ex-Fur Mil de Transmissões TSF (Bissau e Piche, 1970/72)(*):

Caros Editor e Co-Editores

Procurando responder ao apelo feito pelo Luís Graça no sentido de se obterem mais elementos sobre os acontecimentos do Destacamento de Copà(*), aqui envio alguma coisa sobre o que está no tal livro que em tempos comentei, da autoria de Fernando de Sousa Henriques, intitulado No Ocaso da Guerra do Ultramar.

O autor dedica algumas páginas a esse Destacamento (pág 330 a 334), aos seus últimos dias, Destacamento esse que pertencia à Companhia de Pirada e não à sua Companhia, de Canquelifá, mas estava naquela zona entre os limites de acção de uns e outros. Vejamos o que ele conta. Trata-se sem dúvida de relato muito curioso, no mínimo, e que certamente trará mais algumas interrogações, mas está lá no livro!

Copà - Localização geográfica nas coordenadas: 12º 30' Latitude Norte; 13º 55' Longitude Oeste

"A partir da terceira semana de Janeiro de 1974, o IN começou a flagelar, igualmente, um Destacamento que se localizava em Copà, aproximadamente a Noroeste (NW) do nosso aquartelamento, sujeitando-o a fortes bombardeamentos. Esse Destacamento pertencia à Companhia sediada em Pirada, aquele e esta localizadas próximo da fronteira com o Senegal e, respectivamente, nas imediações dos marcos fronteiriços 63 e 68. Devido à sua proximidade do nsso aquartelamento, consideravamo-lo como se de um nosso 'enteado' se tratasse, já que filho não podia ser atendendo à sua cadeia de comando.

"Se com os obuses 14 podíamos e fazíamos o batimento da zona em redor de todo o destacamento de Copà, com os obuses 10,5 só conseguíamos atingir as imediações daquele Destacamento e apenas do lado que ficava mais próximo de nós.

"No dia 31 de Janeiro, como atrás se referiu, dois pelotões da nossa Companhia efectuaram um patrulhamento em direcção ao Marco 61, que envolvia o reconhecimento das imediações da Copà. Assim, seguimos até Cantire, onde inflectimos para Oré Maundé e Orèodé, duas Tabancas recentemente abandonadas, tendo as suas populações sido levadas pelo IN, como denunciavam os vestígios, bem visíoveis, dos roddos das viaturas utilizadas 'nessa limpeza' e que se dirigiam em direcção ao Senegal, detectados num patrulhamento efectuado dias antes. Dali fomos até às imediações de Copà, aproximando-nos daquele aquartelamento por Leste. Voltou a detectar-se, também ali, a existência de múltiplos rodados de diversas viaturas pesadas, bem como o estabelecimento de pequenas trincheiras e, para espanto geral, o abandono de inúmeros cunhetes vazios. Ficámos estupefactos perante tais imagens, pois não contávamos com aquele 'estendal todo' no meio da mata. O IN estivera ali em força, estabelecendo os seus morteiros (82 e 120) a Noroeste daquele e a uma distância de uns 3 km do mesmo, sem ter a mínima preocupação de eliminar vestígios da sua presença no local. Após termos procedido a um reconhecimento daquela área onde o IN estivera instalado, precisamente fora do alcance dos obuses 10,5, rumámos em direcção a Canquelifá, já que não estava previsto qualquer contacto com o pessoal daquele aquartelamento.

"A partir do início de Fevereiro, esse destacamento passou a estar sujeito a fogo de morteiro de 120 mm, com intensidade variável, mas algumas das vezes até inusitada. Através das comunicações via rádio comunicávamos com aquela força para inferirmos da sua situação. O Furriel, comandante daquele Destacamento, e o próprio responsável pelas transmissões, de início ainda gracejavam, referindo-se aos ataques como se de jogos de futebol se tratassem e dizendo que só levavam golos, sem conseguirem marcar nenhum. Não tinham a possibilidade de levantarem a cabeça, quanto mais ripostarem e, ainda por cima, com o quê? Nós, com os nossos obuses 10,5, de má memória, lá íamos, de vez em quando, tentar a nossa sorte nas 'barbas' daquele aquartelamento, mais próximo do nosso, sabendo, de antemão, que só o barulho dos rebentamentos das granadas é que poderia incomodar o IN.

"O IN, como se verá a seguir, aproveitava-se dessa circunstância e desferia sossegadamente e nas calmas os seus ataques. Nós ouvíamos, por vezes, as suas transmissões onde começou a aparecer, cada vez com maior frequência, um linguarejar em espanhol, sinal de que os internacionalistas cubanos também por ali andavam. Normalmente durante a noite, ouvíamos o roncar de viaturas que deviam proceder ao reabastecimento das diferentes posições no terreno ou, então, à mudança das mesmas com transporte de pessoas, armas e munições.

"Esta situação trazia-me preocupado, pois se viessem ao assalto ao nosso Aquartelamento a nossa posição seria débil, no caso de utilizarem viaturas blindadas, de que se ouvia falar, uma vez que só dispunhamos de umas três ou quatro bazucas, usadas, nos patrulhamentos, e sem nenhum pessoal treinado para a luta anti-carro. Os RPG-2 e RPG-7, usados pelo IN, revelavam-se de manejo mais fácil e eficaz.

"Retomando o assunto: Copà passou a ser 'abonado' quase diariamente, com as flagelações a ocorrerem a horas sempre diversas e com durações igualmente variáveis.

"Lá para a segunda quinzena de Fevereiro [***], depois de uns três dias seguidos de assédio forte a Copà e aí a meio de uma tarde, que nunca esqueceremos, foram aparecendo aos poucos e em pequenos grupos, ou isoladamente, os elementos provindos daquele Destacamento. O pessoal vinha todo sujo, camuflado, se existia, em desalinho, arma às costas ou ao ombro, desorientado e de olhar perdido. Enfim, uma lástima.

"Aqui foi uma das outras vezes em que recordei a tal frase muito usada e divulgada, mesmo em cartazes, nos meios militares, que assentava como uma luva perante o cenário que se me apresentava. A frase, já anteriormente citada, rezava assim: 'O Exército é o Espelho da Nação'.

"Mas prosseguindo. Tinham fugido, praticamente aos pares, do Inferno em que Copà se transformara. Primeiro demos-lhes de beber e de comer e depois procurámos saber o que tinha acontecido, embora, antecipadamente, já soubessemos a resposta. Lá fomos sabendo pormenores à medida que foram acalmando. Como todos sabíamos estavam a ser sujeitos a flagelações cerradas, dia após dia, que lhes foi destruindo o aquartelamento e a moral. Não conseguindo aguentar mais, fugiram naquela tarde, depois de terem passado palavra uns aos outros, dirigindo-se desorientados para o nosso aquartelamento que era o que lhes ficava mais próximo. Ainda hoje estou para perceber como é que não foram interceptados pelo IN. Sem o saberem, deixaram para trás o Furriel, o fulano das transmissões e não sei se mais alguém. Aquilo era deserção. Confrontados com a idéia de regresso, diziam que preferiam ser mortos.

"Entretanto, recebíamos uma mensagem, de que não posso precisar a origem, adiantando-nos que, na manhã do dia seguinte, ir-se-ia proceder à desactivação daquele Destacamento, sendo dali retirada a sua guarnição, sendo que em tal operação estariam envolvidas as unidades de pára-quedistas. Foi um fim de dia agitado. O Capitão Cristo a confirmar essa Operação de resgate e a reunir-se com alguns dos nossos Milícias no sentido de se arranjar uns dois ou três elementos, entre População e Milícias, que conhecessem bem aquela parte da região, para servirem de guias e levarem de volta aqueles elementos transviados que nos tinham ali caído inusitadamente. Paralelamente, os Alferes e Furriéis falavam com os mesmos no sentido de os convencer a regressarem à procedência, em face das novas notícias. Duas tarefas que não se revelaram tão fáceis como poderia parecer. Foi tudo muito estudado e planeado para se ter êxito no que se pretendia: enfiar no Destacamento sem serem interceptados pelo IN e fazer de conta que os mesmos nem dali tinham saído. Houve certa resistência dos mesmos em regressarem, mas ao cabo de umas horas convenceram-se de que aquela, embora arriscada, operação era o melhor para eles, pois não passavam ali de uns 'miseráveis desertores'.


"Um dos factores de maior peso na mudança de atitude daqueles homens foi o caso de terem abandonado o Furriel e mais um ou dois dos seus camaradas. Esse facto que, inicialmente, desconheciam era o que mais os constrangia, sendo por isso aquele que foi mais vezes utilizado, a par do relativo à desactivação do seu aquartelamento, daí a umas quantas horas. Assim, por volta das 03H30, lá seguiu o grupo de militares com os seus guias. O Capitão não dormiu bem nessa noite, tal como eu. Acho que todos suspirámos de alívio quando os guias regressaram a são e salvo com a 'encomenda entregue', o mesmo voltando a acontecer logo que se teve conhecimento de que a Operação de evacuação de Copà se tinha realizado com êxito.

"Sempre me surpreendeu o IN não ter interceptado os fugitivos, bem como não ter ido ao assalto final do Destacamento. Estava a actuar nas calmas, para além de talvez ignorar o que nele se estava a passar. Sabia que a sua queda era inevitável e uma questão de dias, não precisando de expor os seus homens. Se tivessem ido ao assalto após todas as flagelações efectuadas, acho que apanhariam, praticamente à mão, os nossos Militares, totalmente debilitados quer física, quer psicologicamente que dali só tinham uma saída: a morte.

"Para o Furriel e os seus dois ou três acompanhantes, que junto dele sempre se mantiveram, aqui fica exarado um voto de louvor.

"Mais sós ficámos, já que o nosso 'enteado' nos tinha abandonado, deixando mais uma parcela de território para nos 'estendermos', em comunhão com o IN.

"E assim reza a História sobre o final de um Destacamento em terras-do-fim-do-mundo: O Destacamento de Copà. Muito resistiu, embora passivamente, por não ter a mínima chance de ripostar."

_______

Nota de H.S.:

O Capitão Cristo referido no texto acima era o Cap Mil Fernando Peixinho de Cristo, Comandante da Companhia, CCAÇ 3545, colocada em Canquelifá e pertencente ao BCAÇ 3883 e à qual pertenceu o autor do texto inserto no livro também acima identificado, o então Alf Mil Op Esp Fernando de Sousa Henriques.
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 10 de Novembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3430: Bibliografia de uma guerra (36): No ocaso da Guerra do Ultramar, de Fernando Sousa Henriques. (Helder Sousa)
Sobre o autor e o livro, vd. também o artigo, publicado no Diário dos Açores, 9/11/2007 > "No Ocaso da Guerra do Ultramar" relata uma vivência militar na Guiné, por Vera Borges

(...) "Em declarações ao Diário dos Açores, Fernando de Sousa Henriques qualifica o seu trabalho como sendo um livro 'de factos, de vivências, sentimentos e simbolismo, de grande interesse histórico'.
(...) "Repleto de ilustrações, o título do livro No Ocaso da Guerra do Ultramar, remete-nos para um significado: 'os últimos dias da Guerra do Ultramar' (...).
"O livro procura retratar 'como se vivia e se passava na Zona Leste da Guiné, com fronteiras com o Senegal e a Guiné-Conacri, entre 1972-74, num período em que o IN (Inimigo) incrementava aí a sua actividade, procurando levar a cabo a denominada Limpeza do Leste que, a concretizar-se, aumentaria consideravelmente as chamadas Zonas Libertas, permitindo-lhe maior notoriedade e projecção a nível Internacional e um eventual assento na ONU', ressalva o autor.
"Por outro lado, Fernando de Sousa Henriques pretende transmitir ao leitor o período de 'sufoco vivido pelas nossas tropas (NT), perante o cada vez maior poder ofensivo que o IN continuadamente vinha a apresentar, contando mesmo com elementos internacionalistas a integrarem já as suas fileiras'.
(...) "Esta é a segunda obra publicada de Fernando de Sousa Henriques, a primeira tem como título: Um Icebergue Chamado 25 de Abril. 'A Revolução dos Cravos' foi vivida à distância pelo autor, porque nesta altura se encontrava no Ultramar, tendo este acontecimento histórico sido decisivo para o término da guerra colonial.
"Fernando de Sousa Henriques formou-se, no Porto, em Química, e, posteriormente, em Electrotecnia. Em São Miguel seguiu um percurso profissional muito diferenciado, tendo percorrido áreas como as do Ensino Técnico, desenvolvido trabalhos diversos, em especial a nível de Projecto e Fiscalização, no âmbito da sua Formação Profissional, com relevância para a Engenharia Electrotécnica, passando por Empresas como a Mobil Oil Portuguesa e os CTT. Em 1989 assumiu o cargo de Engenheiro-adjunto da Junta Autónoma do Porto de Ponta Delgada".

(**) Vd. postes de:

26 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3795: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (1): O princípio do fim, a história do Soldado António Rodrigues
e
26 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3797: Copá, abandonado em 14/2/1974 (José Martins) (2): Unidades de intervenção no subsector de Bajocunda

(***) Deve ser primeira quinzena de Fevereiro de 1974, já que oficialmente o destacamento terá sido abandonado a 14/2/74.

1 comentário:

Luís Graça disse...

Hélder:

Caracterizas, e bem (a fazer fé no relato do Fernando de Sousa Henriques, autor do livro 'No Ocaso da Guerra do Ultramar'), a situação vivivida pelo pessoal de Copá (1 Gr Comnb da 1ª Companhia de do BCAÇ 8323)como "constrangedora, com o pessoal em grande desorientação, configurando de facto uma situação de deserção, tanto mais que alguns ficaram no quartel"...

Para prevenirmos a tentação de fazer juízos sumários sobre esses camaradas (por parte dos habituais 'combatentes de bancada'), precisaríamos de mais informação, detalhada e em primeira mão, sobre esses tristes acontecimentos...

O que me intriga não é a desmoralização, a desorientação, a indisciplina e a até eventual deserção do pessoal de Copá, mas sim a quebra de coamndo e a aparente falta de liderança (estratégica) do sector... Onde estava o comando do batalhão ? A jogar à lerpa ou ao King ? De férias na metrópole ? Desenfiado em Bissau ? Distraído ?

Como é possível ter acontecido o que aconteceu em Copá ? E, como tu bem o dizes, tudo ficou aparentemente no "segredo dos deuses", isto é, "foi abafado"...

Será que estávamos mesmo no "princípio do fim" ? Terá havido mais casos destes no TO da Guiné, no final da guerra ?

Um Alfa Bravo. Luís