Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 22 de julho de 2008
Guiné 63/74 - P3081: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (4): Os meninos à volta da fogueira...
"Encontrei esta fotografia num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de 1972. Lembrei-me logo dos meninos de Missirá educados por Lânsana Soncó,lembrei-me das tábuas com os versículos do Corão que se podiam comprar ao pé de Fá Mandinga.Em Missirá e Finete tínhamos acordado que estas aulas eram complementares às do professor da primária,foi assim que os meninos tinham uma boa parte do dia preenchido"(BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Cidade de Bafatá > Finais de 1969 > Vista aérea da mesquita de Bafatá. A Zona Leste da Guiné (região de Bafatá e Gabu) é aquela onde se pratica mais a Mutilação Genital Feminina (MGF)... As populações islamizadas representam quase metade dos guineenses.Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
1. Mensagem do Alberto Branquinho, com data de 8 de Julho (Recorde-se que o nosso camarada Alberto Branquinho, hoje jurista de formação e profissão, foi alferes miliciano na CART 1689 (Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69) (1).
Caro Luís Graça
Junto vai o texto do UMBIGO nº. 4, que fala de religiões. Tem matéria meramente de facto. Não tem juízos de valor. Assim, espero que não levante polémica.
Um abraço e os meus agradecimentos.
Alberto Branquinho
Ex-alferes miliciano
CART 1689 /BART 1913
2. NÃO VENHO FALAR DE MIM … NEM DO MEU UMBIGO (4) > UMA ESCOLA MUÇULMANA
por Alberto Branquinho
Sempre que havia necessidade de fazer colunas auto para abastecimento do quartel, situado a noroeste, o pessoal saía pela porta norte, com os picadores à frente e com instruções para irem ficando abrigados ao longo do itinerário a percorrer, fazendo segurança ao vaivém das viaturas. O movimento da tropa começava somente quando havia já alguma luz, com o sol a tentar romper entre a folhagem da mata e os troncos das árvores.
Isto era o habitual em qualquer aquartelamento, em circunstâncias idênticas. A diferença estava no facto de, no lado norte e nordeste deste aquartelamento, haver uma grande tabanca de população fula e de, junto a essa porta norte, haver uma escola ao pé da casa do padre.
Os alunos, entre (talvez) os sete e os dez anos, com vestes compridas e cabeça coberta, estavam sentados em esteiras à volta de uma fogueira, com labaredas baixas, para afugentar o frio e o cacimbo da madrugada. Cada um empunhava uma tábua de cerca de trinta a quarenta centímetros por uns vinte centímetros, onde estavam escritos textos em caracteres arábicos (excertos do Corão?). A configuração das tábuas era idêntica à das tábuas dos desenhos bíblicos em edições juvenis, que representam o Senhor a entregar a Moisés as tábuas da lei no Monte Sinai, quando o povo judeu transgrediu no peregrinar pelo deserto.
A cena que se nos deparava era um círculo de garotos à volta da fogueira, entoando, em uníssono e a média voz, uma cantilena cheia de aa, acompanhados de sons guturais ou aspirados, enquanto o fumo da fogueira, no centro, subia, se dispersava e os envolvia, misturando-se com o cacimbo. Tudo isto era batido pelos, ainda, fracos raios de sol, rasante, fazendo um quadro quase irreal. Era belo e quase místico, não fosse a perturbação introduzida por alguns soldados que, passando em fila de um, opunham à cantilena:
- Há… há…há… há…
- Gá… gá… gá… gá…
- Olarilálá… olarilálá… olarilálá…
Apesar de os graduados os mandarem calar, o contraponto feito pela tropa continuava, à socapa.
Os garotos, inicialmente divertidos ou espantados, levantavam os olhos das tábuas para observar os intrusos e voltavam à leitura.
Só o padre, postado atrás, em pé, hierático e digno, de boné de lã na cabeça, com uma barbicha que lhe alongava o rosto, olhava fixamente o fogo e, com as mãos dentro das vestes, desconhecia a tropa que passava (2, 3).
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P.S. - Este "Post Scriptum" vem a propósito de um "POST ante" (POST 3025 de 5 de Julho último) do Jorge Cabral, para esclarecer que:
(i) O Branquinho que ele refere no nº. 1 desse POST sou eu, que tenho o nome próprio Alberto;
(ii) O Branquinho mencionado no nº. 2 do mesmo POST é meu irmão, de nome próprio António, como o Jorge Cabral sabe.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. poste de 1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3011: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (3): Fornilhos e despojos humanos
(2) Esta cena é-nos familiar a todos nós, camaradas da Guiné, que andámos pela Zona Leste, em pleno chão fula... Os meninos à volta da fogueira, decorando versículos do Corão... O contexto é outro, mas lembrei-me do célebre poema e música, belíssimos, do angolano Rui Mingas (Manuel Rui Monteiro), interpretado entre outros pelo nosso Paulo de Carvalho
Com fios feitos de lágrimas passadas
Os meninos de Huambo fazem alegria
Constroem sonhos com os mais velhos de mãos dadas
E no céu descobrem estrelas de magia
Com os lábios de dizer nova poesia
Soletram as estrelas como letras
E vão juntando no céu como pedrinhas
Estrelas letras para fazer novas palavras
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Com os sorrisos mais lindos do planalto
Fazem continhas engraçadas de somar
Somam beijos com flores e com suor
E subtraem manhã cedo por luar
Dividem a chuva miudinha pelo milho
Multiplicam o vento pelo mar
Soltam ao céu as estrelas já escritas
Constelações que brilham sempre sem parar
Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão aprender como se ganha uma bandeira
Vão saber o que custou a liberdade
Palavras sempre novas, sempre novas
Palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo
Assim contentes à voltinha da fogueira
Juntam palavras deste tempo sempre novo
Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo
(3) Também evoquei esta cena, num poema em falo do ao Iero Jaló, o primeiro homem (da CCAÇ 12) que morreu ao meu lado:
(...) Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te puto
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os meninos à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe (4).
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo. (...)
(4) Há tempos o António Santos (ex-soldados de transmissões, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), mandou-me imagens dessas famosas tabuínhas... Não as localizo, de momento. Recordo-me de lhe ter prometido que ia pedir a alguém (um aluno meu, médico, muçulmano, de origem argelina) para as traduzir, o que nunca consegui... Se ele, António, me estiver a ler, que me mande essas imagens em 2ª via...
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