Belarmino Sardinha (1), ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Guiné, 1972/74.
1. Em 14 de Julho recebemos do nosso camarada Belarmino Sardinha dois trabalhos, sendo um deles, este sobre os cães que se tornaram nossos companheiros de campanha.
Caros Luis Graça e Carlos Vinhal,
É sempre com prazer que partilho convosco e com os restantes camaradas da tabanca a minha opinião ou vida militar, contudo, isso não vos obriga a publicarem o que envio se o interesse não o justificar.
Deixo assim à vossa consideração, a divulgação dos textos no blog.
Com um abraço,
Belarmino Sardinha
2. Os Cães da Guerra
Confesso-me um verdadeiro desconhecedor do interesse que poderá ter para os outros os acontecimentos que passo a relatar, mas faço-o convicto do que estou a fazer, com satisfação e prazer no sentido de partilhar esta vivência e dar a conhecer os fiéis amigos, neste caso que não o foram o bacalhau.
Ao abrir hoje o Blog, verifiquei que falavam de cães na guerra e, mais uma vez, se estaria ou não a guerra militarmente perdida.
Começo pelos cães, os cães da nossa guerra, porque não dedicar-lhes, também a eles, umas linhas de homenagem se foram igualmente importantes para nós, pelo menos para alguns, como amigos e companheiros.
Recordo que ao chegar ao posto de transmissões do STM em Mansoa, fui apresentado ao nosso cão Tá ri rá que recebeu-me sem qualquer problema, com alguma indiferença é certo, mas apenas de estranheza, não sei quantas comissões tinha já.
Nada tem de especial esta situação, o que nunca foi possível foi explicar a sua forma de entendimento, que não levantando qualquer problema e até acompanhando quem chegava de novo, não permitia a qualquer militar ou civil africano que se aproximasse ou mesmo passasse próximo das instalações do STM. Mas só neste local agia desta forma o que levava a permanentes ameaças - Si mim apanha na tabanca...
Como era um cão que nos acompanhava frequentemente fora do quartel e mesmo sozinho nos seus passeios, não sei se seria ainda vivo à data da independência, mas caso fosse ainda vivo, mal visto como estava de um e de outro lado da comunidade africana deve ter tido pouca sorte.
Quando pouco ou nada fizemos para salvaguardar a integridade dos camaradas africanos que lutaram pela bandeira de Portugal ao nosso lado, como o faríamos por um cão? E nessa altura quem se lembraria de um cão?
Mas não acabam aqui os meus cães de guerra e a sua companhia.
Enviado que fui a Bissau para receber as instruções que me levariam até Aldeia Formosa, por desentendimento com um superior queixinhas, fui recebido, além dos meus camaradas naquele local por um corpulento cão, de nome Mike.
Também este tinha sido vítima dos distúrbios psicológicos ou do álcool de um qualquer militar que, saiba-se lá porquê, o tinha atirado ao chão com apenas alguns meses de vida. Com uma pata traseira fracturada e solidificada torta, tinha um andar deficiente mas que lhe permitia fazer tudo.
Como o nosso local de trabalho era igualmente de dormida, sem qualquer separação que não apenas um pano de tenda, o que não permitia grande descanso, passados alguns dias resolvi alugar uma tabanca e passar a dormir lá. Como guarda-costas levava o Mike, a quem dei banho dentro de um bidão e de onde só consegui retirá-lo depois de tombado este com a ajuda de outros camaradas.
Tirando um outro seu rival, com quem media forças regularmente ou fazia exercício, não sei qual teria sido a sua desenvoltura se tivesse necessitado de apoio, mas que o bicho e o seu porte metiam respeito não havia dúvidas.
Como passados três meses voltei para Bissau nada mais soube, mas presumo e se calhar estarei certo, que esta terá sido a única vez que foi lembrado depois de nos termos vindo embora.
Também é necessária sorte para poder existir como cão.
Um abraço
Belarmino Sardinha
13 de Julho de 2008
Foto: © Rui Pereira (2008). Direitos reservados
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Nota de CV:
Vd. poste de 17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2956: Tabanca Grande (75): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM (Guiné 1972/74)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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