quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

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