sábado, 3 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25131: Os nossos seres, saberes e lazeres (612): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (140): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
Com o passeio num troço do rio Douro, caminhou-se para o término destes dias de deslumbramento em lugares vinhateiros que totalmente desconhecia. O que prende a atenção em primeiro lugar é a afeição no acolhimento dos grupos que chegam, a sentida satisfação em mostrar o património, desde monumentos nacionais a lugares pitorescos, a vislumbres do passado, ver mulheres vindimadeiras a acenar com alegria a nossa passagem; e compreender como aqueles solos xistosos, declivosos, são esmeradamente tratados para dar vinho fino ou licoroso ou de mesa, é a região demarcada mais antiga e é vendo que se percebe porquê; e há os monumentos paisagísticos, inigualáveis que só o Douro dá permissão. Do pouco que vi, fica agora o desejo de alargar as vistas, há aqui uma gente muito gentil que nos toca o coração, não posso pois deixar de recomendar que façam romagem até estas paragens.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (140):
Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (9)


Mário Beja Santos

Estamos no Pinhão, é dia de passeio de barco pelo rio Douro, o tal rio de quem Miguel Torga proferiu esta sentença: “Nenhum outro caudal nosso tem tais estremecimentos, tais lutas, tão denodado pelejar em todo o curso; nenhuma outra nesga de terra possui mortórios tão vastos, tão estéreis e tão malditos.” Parece blasfémia, é uma observação lúcida à chusma de contradições que o Douro e o seu rio oferecem, a aridez do xisto e de uma terra que parece queimada, rio de sinuosidades que abre inusitadas plataformas coloridas, surpreendentes. Do perto ao longe vemos serras nuas a perder de vista, e dentro da aridez o verde quase todo o ano, dado pelas videiras, terra declivosa e nós a contemplar aquelas titânicas escadarias ou socalcos. Tudo isto é avistado a partir do Pinhão.
Houve que preparar algum conhecimento sobre o Douro e as suas terras, houve que reler de bom grado o Miguel Torga e Araújo Correia, este médico na Régua. Antes de partir para este Douro de aldeias vinhateiras tirei da estante o álbum Os mais belos rios de Portugal, texto de João Conde Veiga e fotografia de Augusto Cabrita, anotei num caderninho algo que me ajudou a fazer a leitura do rio e da paisagem: “O Douro é talvez a região mais trabalheira de Portugal. A terra áspera e íngreme, onde pela disposição nenhum mecanismo agrícola pode ser empregado, é toda laborada a aço e a pulso. O homem duriense, mal descobre na ilharga de um monte dois palmos de terra xistosa, sobranceiro ao rio, que lhe pareça propícia ao fabrico de um ou dois geios, aí está ele com a picareta e o ferro do monte a esfarelar, a erguer o socalco e a espetar no custoso degrau duas dúzias bacelos, que serão o seu melhor cuidado, até à morte, como se fosse as mais finas roseiras.”

É esta a paisagem que se desfruta, nesta manhã de sol esplendoroso.

O Pinhão e a sua ponte, o povoado na margem direita, a riqueza vinícola na esquerda
A vegetação a beijar o rio, o arvoredo a suster as terras, as videiras alinhadas, ao longe tudo parece pintado, entre o azul e o verde
Não chegaremos a Barca D’Alva, pouco importa, o olhar enriquece-se com todo este contraste, parecem águas oleosas, graças à luz do céu, veja-se o encarpado das margens, volto a pensar no Miguel Torga: “Socalcos são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limites plausíveis da visão. Um poema geológico. A beleza absoluta.” E o rio sulcado por embarcações turísticas, nas duas direções.
Sabe-se lá porquê, enquanto via esta árida encosta e o casario nela encimado recordei-me do primeiro filme de Manoel de Oliveira, “Douro, Faina Fluvial”, não propriamente um filme, mas um documentário, não passado aqui, mas na zona ribeirinha, e deu-me para questionar quão inusitado é este espetáculo e tão diametralmente diferente do Douro que atravessa o Porto e Gaia. Um escritor já completamente esquecido, Sousa Costa, falava do odor das uvas derramado no ar, em afagos capitosos, nos cânticos das mulheres e os gritos dos carregadores, registando a mancha movediça das vindimadeiras a arrancar os cachos maduros, eles cantando em coro estribilhos de canções populares, também tenho direito a deixar correr o pensamento e a imaginar que na curva seguinte vou presenciar, na plenitude, as vindimas nesta terra quente, e até avistar barcos rabelos…
Vamos voltar ao Pinhão, que já foi o embarcadouro das pipas de vinho fino a caminho das caves de Gaia, acenou-se ao comboio a caminho da Régua, não se avistaram vindimas e não há rabeleiros cheios de pipas, não o odor das uvas, só estes montes pintados, e então deu-me para pensar em Eça de Queiroz e numa observação dele em “A Cidade e as Serras”:
“Olha para o rio! Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, de um verde-pálido de reseda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebeciam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul. Jacinto acariciava os pelos corredios do bigode: - O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza.”

É a hora da despedida, estamos prestes a aportar no Pinhão. É nisto que recordo que ainda não se fez uma saudação ao vinho fino, para o vulgo vinho do Porto, socorro-me novamente de João Conde Veiga: “Mama, na sua nascença, nas fráguas de xisto, que acobertam a raiz do calor, depois é o sol que, numa estranha alquimia, se condensa no açucarado das uvas, e daí vai ser engarrafado em vinho como se fosse o próprio astro quente e brilhante que mandássemos aquecer os país das brumas.” Um passeio que me regalou. Vamos amesendar em Tabuaço, como sempre acontece, haverá um passeio derradeiro, o autocarro partirá depois à desfilada por horas, até nos largar em Sete Rios, bem perto do Jardim Zoológico.
Vagueando por Tabuaço, detive-me em frente a uma bica, muito gostei do conjunto azulejar, lá vão os campónios rumando para as alturas, não se sabe quais, para o caso não interessa, estamos a centenas e centenas de metros acima do nível do mar, é só mais uma escalada, porventura ali cultivam para a subsistência e tratam primorosamente as suas videiras, oxalá que ainda hoje assim seja.
Fica-nos a impressão que em termos turísticos Tabuaço é de pouca permanência, mas sabe bem ver quem aposta num modelo turístico não hoteleiro, provoca sempre agrado ver intervenções sérias como esta aparenta.
É a despedida, voltando atrás, àquela manhã em que fomos a Barcos, inequivocamente aldeia vinhateira, prendeu-nos a atenção este casarão que já conheceu melhores dias, mas guarda imponência ali junto à igreja matriz, que é de suprema excelência, para que conste.
Porquê voltar a falar de S. Pedro das Águias, um tesouro do românico, que não se visitou? Se é verdade que a viagem nunca acaba, há que criar argumentos para voltar, o Douro vinhateiro é imenso, e o último traço de memória que registo é o orgulho destas gentes pela sua ancestralidade e pela comunicação afetiva gerada pelo Douro que corre lá em baixo e por este xisto abençoado da terra quente onde medra um dos pais gostosos vinhos do mundo.
____________

Nota do editor

Pos anterior de 27 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25114: Os nossos seres, saberes e lazeres (611): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Alberto Branquinho disse...


Mário

Parece que o Rio Douro (da Região do Douro!) começa no Pinhão ou em S. João da Pesqueira. Por acaso (!) vocês não foram até Barca d'Alva (Note-se: pelo rio). É que, para além dessas localidades, para montante há mais terras, paisagens e... outras coisas. Parece que há só rio que, por acaso, vai até Barca d'Alva... Não, vai mais além, até Miranda (em terras portuguesas).

MAS A CULPA NÃO É TUA. É de quem SÓ quer vender meio rio e as suas terras - de lá para juzante.
Toma nota: vinho fino não é "Vinho do Porto". O vinho fino não tem carimbo nem rótulos bonitos.

Abraço
Alberto Branquinho

Fernando Ribeiro disse...

Eu gostaria de acreditar que os donos das terras sabem o que andam a fazer, quando vejo encostas que antes tinham socalcos e agora já não têm, como se verifica nas duas primeiras fotografias. Destruíram socalcos centenários e arrasaram encostas para poderem meter máquinas nos vinhedos e assim empregarem menos mão-de-obra. No entanto, as encostas sem socalcos ficam sujeitas a uma muito maior erosão provocada pelas chuvas, porque os socalcos seguram as terras.

A quarta fotografia é um testemunho de uma tragédia ocorrida no séc. XIX, porque nos mostra mortórios, que são socalcos onde estão plantadas amendoeiras e oliveiras, em vez de videiras, ou então são socalcos abandonados, só com mato. Trazida nas raízes de videiras importadas da América, uma terrível praga reduziu para menos de metade a produção de vinho do Douro e levou muitos lavradores à ruína. Essa praga foi a filoxera, um minúsculo inseto que vive nas raízes das videiras e lhes rouba a seiva, matando-as. Nos socalcos onde a praga se manifestou e fez os seus terríveis estragos, não foi possível voltar a plantar vinha, porque os ovos da filoxera ficavam na terra e as novas vinhas, plantadas em lugar das que morreram, também acabavam por morrer, atingidas pela mesma praga. Por isso esses socalcos se chamam mortórios.

Aquele foi um tempo de fome e desespero no Alto Douro, que só não foi pior porque uma riquíssima vitivinicultora do Peso da Régua acudiu aos lavradores arruinados, comprando-lhes todo o vinho que ainda tivessem conseguido produzir e adquirindo-lhes as terras, para a seguir revender-lhas a um preço simbólico. Essa vitivinicultora foi D. Antónia Adelaide Ferreira, mais conhecida por Ferreirinha. Além do mais, a D. Antónia procurou encontrar uma solução para o problema da filoxera, indo ao estrangeiro para se informar. A solução encontrada consistiu na enxertia das cepas do Douro em cepas americanas de castas que fossem resistentes à filoxera. As videiras que resultaram desta enxertia adquiriram resistência à praga e a produção de vinho voltou a aumentar. A D. Antónia foi então vista pelo povo de toda a região como salvadora, num tempo em que não existia estado social. Ainda hoje a Ferreirinha é apontada como um exemplo de empresária com sentido de responsabilidade social e espírito de iniciativa.

(continua)

Fernando Ribeiro disse...

(continuação)

Acho muito bem que o Mário Beja Santos recomende que se faça romagem até estas paragens. Eu também recomendo, mas aviso para tomarem cuidado todos aqueles que quiserem visitar o Alto Douro no verão, porque as temperaturas na região podem chegar a valores extremamente elevados. Evitem visitá-la durante uma vaga de calor. Dois ou três anos atrás, foi registada no Pinhão uma temperatura de 47 graus à sombra! Quarenta e sete graus! Na Quinta da Ervamoira, em Vila Nova de Foz Côa, as vindimas fazem-se já em agosto, porque as uvas nesse mês já estão maduras, por causa do calor. O vinho dessa quinta, aliás, misturado com o de uma outra quinta mais fresca, é que dá origem ao famoso vinho "Duas Quintas", perdoe-se a publicidade.

Além dos locais visitados pelo Beja Santos, alguns das quais eu não conheço, com muita pena minha, recomendo que se visite a igreja românica de São Pedro das Águias, entre Tabuaço e Moimenta da Beira, assim como o mosteiro de São João de Tarouca, perto da vila de Tarouca. Além de ser muito interessante do ponto de vista arquitetónico, a igreja do mosteiro de São João de Tarouca guarda no seu interior um tesouro artístico de elevadíssimo valor, sob a forma de pinturas renascentistas da Escola de Viseu, sobretudo da autoria de Gaspar Vaz e de Grão Vasco. Destaco, em particular, um preciosíssimo quadro representando São Pedro, que é geralmente atribuído a Gaspar Vaz, mas há quem o atribua a Vasco Fernandes (Grão Vasco). Só este quadro de São Pedro justifica uma deslocação a São João de Tarouca. Também lá está a arca tumular, talhada no tosco granito local, de D. Pedro, Conde de Barcelos, que foi filho bastardo do rei D. Dinis e um dos homens mais viajados e cultos da Europa do seu tempo.

O Beja Santos deu abundante nota do muito que há para ver em Trevões, perto de São João da Pesqueira, mas quem vai a Trevões também pode percorrer mais dez ou quinze quilómetros para ir a Penedono e visitar o castelo do Magriço, um dos Doze de Inglaterra. O castelo de Penedono é um espetacular castelo gótico, apropriado para ser habitado por um garboso cavaleiro medieval, como foi o Magriço. É um castelo que parece saído diretamente dos romances de cavalaria, tal e qual.

Alberto Branquinho disse...


Olá, Fernando Ribeiro!

Gostei muito deste teu texto.
Quero só referir (não é acrescentar, porque resulta do teu texto, mas quem não sabia... não ficou a saber) que a Ferreirinha e as histórias à sua volta (mais do Barão de Forrester) fazem parte do maravilhoso popular de todo o Douro e não só até ao Pinhão ou à Pesqueira.
As pessoas têm que ficar cientes que o Douro (com o Alto Douro ou Douro Superior) vai até Barca d'Alva e não se deixar enredar em tricas de carácter paroquial.
Eu sou natural de Foz-Côa, onde nasci há 80 anos.

Abraço
Alberto Branquinho