segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25121: Notas de leitura (1662): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
O levantamento efetuado por Frei Vicente respeitante à missionação católica na Guiné é uma leitura pessoal que em nada colide com a obra de referência do Padre Henrique Pinto Rema. Este missionário procedeu a uma leitura de três momentos históricos de tal missionação: a que vai da criação da Diocese de Cabo Verde até 1932, um segundo momento que se estende com o regresso dos missionários até 1977; e a partir desta data um período que ele designa por igreja particular contemporânea, igual a todas as outras, pobres e ricas, projetada por bispos de grande prestígio e exemplaridade. Intervindo na educação, saúde e apoio social, tendo um ensino de gabarito, gestão de instituições de saúde com funcionamento impecável, criando escolas de artes e ofícios, um pouco por toda a parte, justifica-se a confiança deste missionário na crescente projeção desta comunidade de fiéis que não conhece qualquer hostilidade por parte da comunidade islâmica com quem dialoga nas diferentes áreas da sua intervenção.

Um abraço do
Mário



Os três rostos da Igreja Católica na Guiné (2)

Mário Beja Santos

Na mesma revista Itinerarium n.º 227, referente ao primeiro semestre de 2022, dos franciscanos missionários, donde, aliás, já fizemos referência ao Diário do Padre Macedo que testemunhou os primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, vem um artigo assinado por Frei João Dias Vicente intitulado “Os três rostos da Igreja Católica na Guiné”, cujo teor merece ser referenciado por alguns aspetos inovadores da leitura historiográfica e religiosa que ele faz. Recorde-se sumariamente o que se escreveu no texto anterior. Sem detrimento da visão global enunciada na obra de referência do Padre Henrique Pinto Rema, "História das Missões Católicas da Guiné", Frei Vicente divide todo o período histórico da missionação em três momentos maiores: a partir de 1533, data da criação da Diocese de Cabo Verde, que inclui os Rios de Guiné, até 1932, data do regresso aos Rios de Guiné dos franciscanos; o segundo momento compreende o período de 1932 a 1977, data da criação da Diocese de Bissau e escolha do primeiro bispo; e o terceiro momento estende-se de 1977 aos nossos dias.

Quanto ao primeiro momento, o autor detalha diferentes fases de missionação, não esquece os padres jesuítas, dois deles, Padres Baltazar Barreira e Manuel Álvares, deixaram informações escritas de grande importância. Assim chegamos ao virar do século XVIII, permanecem na região da Guiné os Franciscanos da Soledade, prestando assistência nas principais praças existentes. Entrara-se num período de decadência das missões, a presença portuguesa estreitara-se e pode dizer-se que a situação política nos Rios de Guiné, na segunda metade do século XVIII, era altamente problemática. Em 1778, as Praças da Guiné sob o domínio português eram: Bissau, Cacheu, Geba, Farim e Ziguinchor. As intrigas e o divisionismo entre autoridades civis e eclesiásticas eram constantes. E escreve dizendo que se os frades deram frequentemente escândalo na sua vida moral e religiosa e no desrespeito, as autoridades civis, por sua vez, não eram melhores.

São tempos de crise de vocações, tempos de crise na atividade missionária franciscana na Guiné. Não admira que em 1802 só houvesse 3 frades na Guiné, em 1806 eram apenas 4 (2 em Bissau e 2 em Cacheu); os últimos frades na Guiné terão existido provavelmente até 1823, como certifica o Procurador-Geral da Província da Soledade. A partir de 1824, os relatórios do mesmo Procurador-Geral já só falam das suas missões de Cabo Verde, sinal de que na Guiné já não estaria nenhum frade. A extinção das Ordens Religiosas em Portugal veio confirmar oficialmente o fim da presença franciscana da Soledade na Guiné.

Foram os sacerdotes do clero regular que aguentaram sozinhos os esforços por manter na Guiné a assistência religiosa possível nas principais praças sob domínio português. O Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim forneceu uns 19 sacerdotes entre 1855 até 1910 que trabalharam na Guiné e 3 deles eram mesmo naturais da região. Do Seminário-Liceu de Cabo Verde, desde 1866 até 1910 saíram 7 sacerdotes que trabalharam na Guiné. Em 1932 haveria em toda a Guiné apenas 3 sacerdotes do clero secular. Frei Vicente caracteriza esta primeira etapa da envangelização nos Rios de Guiné como predominantemente sacramental e sobretudo batismal. Os missionários não conseguiram ter recurso a catequistas leigos que pudessem ajudar a manter a fé dos cristãos e a garantir melhor a preparação dos futuros batizandos.

A segunda etapa (1932 até 1977) é marcada pelo regresso ou vinda de congregações religiosas já com forte preocupação social, regressaram os franciscanos portugueses, vieram as franciscanas hospitaleiras portuguesas; em 1940, passou a existir uma missão com completa autonomia da Diocese de Cabo Verde. A envangelização processou-se através das escolas. Lançou-se o ensino médio liceal com o Colégio Católico de Bissau, mas durou pouco tempo (1943-1945). Graças ao Acordo Missionário (1940) ficou aberto o caminho a missionários não portugueses e o Papa Pio XII criou a Missão sui juris presidida por um Prefeito Apostólico. Os primeiros missionários não portugueses chegaram em 1947, eram os padres do Instituto Pontifício das Missões Estrangeiras, seguiram-se outras missões italianas. Criou-se em 1969 o Seminário da Guiné (primeiro em Bafatá e depois Bissau), mas só passou a ter sucesso quando se construiu a Escola Interna do Seminário, o primeiro sacerdote que saiu deste Seminário foi o Padre José Câmnate na Bissign, será o primeiro bispo guineense nomeado pelo Papa João Paulo II. Esta segunda etapa assentou predominantemente na educação, na saúde e na promoção social, criaram-se infraestruturas que ainda hoje são referências na Guiné: leprosaria de Cumura, o Hospital-Geral de Cumura, o dispensário-maternidade de Quinhamel, os postos sanitários das missões de Catió, Mansoa, Bambadinca, Suzana, entre outros; foram criadas pequenas escolas práticas de aprendizagem de ofícios, casos das pequenas escolas de carpintaria, apareceu inclusivamente o jornal "O Arauto"; Frei Vicente chama a esta igreja a de tempos de missão que se adaptou às variadas dificuldades do período da luta de libertação, que soube ter uma posição ao mesmo tempo colaborante nas tarefas da reconstrução nacional e simultaneamente de crítica em relação à ideologia oficial do marxismo-leninismo.

O terceiro momento vai de 1977 a 2021, Frei Vicente define-o como o rosto de uma igreja particular contemporânea, porque passou a ser uma igreja igual a todas as outras igrejas do mundo. A Igreja Católica na Guiné-Bissau não é alvo de nenhuma hostilidade por parte do credo maioritário islâmico. O primeiro bispo, Dom Settimio Arturo Ferrazzetta, distinguiu-se pela sua simplicidade e bom relacionamento com toda a gente, já fisicamente prostrado, durante a guerra civil de 1998-1999, pôs-se ao caminho para dialogar com os dois contendores, acompanhado por outras entidades religiosas. Com ele, a Igreja Católica deu um salto. Depois de Dom Settimio, virão mais 3 bispos, Dom José Câmnate na Bissign (que resignou em 2020), o brasileiro Dom Pedro Carlos Zilli, bispo de Bafatá e Dom José Lampra Cà. Esta igreja particular está orientada tendencialmente por pastores locais. O lema de Dom José Câmnate na Bissign era a bem-aventurança evangélica: bem-aventurados os construtores da paz. Dom Pedro Carlos Zilli granjeou com enorme prestígio na sua Diocese de Bafatá. Em 2001, em Bafatá, as paróquias existentes eram 8, os sacerdotes diocesanos eram 6, as irmãs religiosas 24, os seminaristas maiores 3; mas em 2017 os sacerdotes já eram 27, os seminaristas maiores 13, os leigos missionários 16 e as religiosas 25. O seu funeral em Bafatá foi impressionante, tempos depois era comum verem-se pessoas com camisolas com o lema de Dom Pedro Zilli: o amor jamais passará.

E o trabalho de Frei Vicente culmina com a apresentação do que eram em 2021 a organização religiosa e leiga da Guiné-Bissau.

Fachada da capelinha de Nossa Senhora da Natividade em Cacheu, o mais antigo templo católico da Guiné
Missa na Guiné-Bissau, imagem do Arquivo Missionárias da Consolata, com a devida vénia
Fiéis católicos guineenses estiveram reunidos, de 8 a 9 de novembro corrente, na peregrinação Mariana 2017, na cidade de Cacheu. A peregrinação deste ano decorreu sob o lema “Maria ka bu medi pabia bu otcha graça diante di Deus (Maria não tenhais medo porque encontrastes a Graça do Pai, tradução livre)”
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Notas do editor:

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Último poste da série de 26 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25112: Notas de leitura (1661): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Joaquim Luis Fernandes disse...

Em Janeiro de 2016, em viagem que fiz à Guiné Bissau, pude testemunhar a vitalidade da Igreja Católica, pelos locais por onde passei: Bafatá, Buba, Gabu, Canchungo e Cacheu, e em duas tabancas da Ilha de Orango.
As celebrações da Eucaristia em que participei, eram bem participadas e animadas pela comunidade local. Destaco a missa de despedida na Catedral de Bissau.

Mas o episódio mais emocionante foi vivido na pequena igreja de Santa Luzia, bem perto do local que foi o nosso QG. Não resisto a deixar aqui um registo, ainda que resumido:

Faziam parte do grupo com quem viajei, três padres. Um deles, o P. Artur Oliveira, tinha sido Capelão militar nos anos de 1973/74. Era um homem a reviver os locais por onde estivera, nos tempos da guerra, contando com emoção alguns dos episódios aí vividos.

No dia 16 de janeiro, a missa da manhã era na igreja de St. Luzia. Ia quem quisesse ir e quem fosse tinha que se levantar e preparar bem cedo. Eu fui e às 7horas estava preparado. Meia hora depois estávamos a entrar na pequena igreja.
(tenho que interromper, volto mais tarde)

Continua

JLF

Joaquim Luis Fernandes disse...

Dizia:

Entrámos e tomámos os nossos lugares sentados, cada qual onde quis, pois havia muitos bancos disponíveis. Os padres perto do altar, preparavam-se para se paramentarem. Entretanto entra na igreja um homem de alta estatura, aproxima-se do altar, faz a vénia, e diz para os outros padres:
Padre Jaquité. O padre Artur, sempre brincalhão, faz o trocadilho com o nome do padre (já aqui está) e diz bem humorado: Sim os padres já aqui estão.

O padre Jaquité era o pároco daquela igreja e vinha concelebrar com os visitantes.
Após se paramentarem e já com igreja bem composta de fiéis, deu-se início à celebração e após a saudação inicial, seguiram-se as apresentações.
Ficámos a saber que o padre Keylândio Abdulai Jaquité, era oriundo de família muçulmana e era sacerdote católico desde 2002, na Guiné Bissau, um país onde os cristãos são apenas cerca de 20% da população.

Seguiram-se as apresentações dos três padres portugueses. O padre Artur, foi o último. Na sua apresentação deu realce ao facto de ter sido padre capelão militar no tempo da guerra e como era importante para ele esta visita, onde já vivera momentos com muito significado, que o deixavam feliz.

Contava então a sua passagem por Bissau, nas últimas semanas da Guiné e já depois do acordo de paz. Nessas semanas, esteve alojado no QG, ali tão próximo, e todos os dias, a esta mesma hora da manhã, vinha celebrar a esta igreja.
E continuando: Dessas celebrações, nunca se apagou da sua memória, e já lá iam quase 42 anos, a imagem de uma senhora com os seus filhinhos, que faziam como que uma escada, do mais pequeno ao maior, ao seu lado, aí comparecendo todos os dias. E apontava com a mão em direção ao local que recordava. Fez-se silêncio. Deu para perceber, que o padre Artur estava emocionado ao pronunciar essa memória e o que ela significava.

Então, desse lugar, ouve-se a voz já frouxa de uma anciã, que com o braço no ar dizia: era eu.
Aquele momento, de emoções fortes, foi eletrizante. O padre Artur ruborizou, os olhos ficaram rasos de água, deixou o altar e veio ao encontro da anciã dar-lhe um abraço.

Nos momentos que se seguiram aquele encontro inesperado, pelo seu significado, tocou-nos bem fundo.
Foi um momento, que nos fez compreender melhor, a ação do Espírito Santo, que nos congrega em Igreja e nos faz irmãos em Cristo.

Abraços fraternos
JLFernandes

José Teixeira disse...

Em 2008 o grato prazer de conhecer o Padre Jaquité que se encontrava em Portugal a cursar Psicologia e convivi com ele durante uns tempos.
Reportando-se às suas origens balanta, contou-me a história da conversão da sua família ao Islamismo, que nada teria de interesse se a política do estado português de então não tivesse uma interferência directa no assunto.
Seus pais eram naturais dos arredores de Bula, onde possuíam uma “lala” que exploravam, sendo sustento de toda a família.
Em meados da década de 50 o seu pai contraiu a tuberculose, pelo que tiveram de ir para Bissau, com o objectivo de tentar a cura, o que conseguiu.
Recuperado da doença, a família pensou em voltar para Bula, onde tinham a “lala” sua base de sustentação. Entretanto deram-se os acontecimentos no Cais do Pdjiguiti. Na sequência deste acontecimento e numa tentativa de exploração a seu favor, o PAIGC, dinamizou toda uma campanha de mobilização em Bissau, notando-se uma fuga de africanos para o “mato” e alistassem no Partido.
A reacção do governo português não se fez esperar, tendo decretado que quem estivesse interessado em ausentar-se de Bissau para o interior da Província tinha de se fazer portador de um salvo conduto emitido pela autoridade civil mais próxima da sua residência, caso contrário, se fosse encontrado pelas autoridades civis ou militares seria detido e considerado inimigo da Pátria, com as consequências que não são difíceis de adivinhar.
O pai do meu amigo, deslocou-se ao Posto civil mais próximo, nos arredores de Bissau a requisitar o salvo conduto para se poder deslocar para a sua terra. Um Sipaio seu vizinho, apercebeu-se da situação e foi a sua casa discretamente avisá-lo para não ir buscar o salvo conduto, dado que a Pide, logo de seguida o iria prender, como estava a fazer com todos os que tomavam esta iniciativa.
Face a este conselho, o pai do meu amigo, não foi levantar o salvo conduto no dia previsto, e manteve-se por Bissau, mais uns tempos.
Passados uns dia, apareceu no lugar onde morava um agente da Pide a perguntar por ele. Dirigiu-se a um “marabu”( a) que se encontrava sentado à sombra de um mangueiro e tendo a seu lado o pai do meu amigo, pois eram vizinhos.
Claro que ao ouvir o seu nome, ficou assustado, mas o “marabu” com toda a calma informou que conhecendo toda a população local, tal nome não lhe dizia nada. Disse mesmo: Este aqui é meu filho e chama-se XPTO (um nome afeto à sua família) … para não criar suspeitas. O Pide lá se foi embora, continuando a sua pesquisa, presumindo com certeza que o indivíduo que procurava se tinha ausentado para o mato, dado que nunca mais apareceu por aquelas bandas.
Comovido pela atitude do “marabu” que o salvou da prisão, dedicou-lhe uma amizade profunda, tendo-se convertido ao Islão com toda a sua família.
A vida continuou, apareceram mais filhos, aos quais foram dados nomes próprios e sobrenomes da família do “marabu”. Um deles hoje é padre católico. É o Padre Keiolando Abdulai Jakité

a) Mussulmano que dirige as orações nas Mesquitas e da formação catequética das crianças. Pessoa querida pela postura na vida e pelo respeito que merece face à posto que ocupa na religião, tal como os nossos padres das Igrejas Cristãs.

José Teixeira