quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Confesso que me rendo a este espantoso espírito de observação do Tenente Costa Oliveira, certo e seguro ele faria diários dos itinerários, dos acidentes, das emoções que a natureza lhe provocava; não se existe um outro testemunho ao vivo de tal valia como o dele quanto à guerra do Forreá, veremos adiante que ele estava bem informado sobre todas estas vicissitudes; é igualmente um diário histórico, não encontrei até agora ninguém que tenha descrito a demarcação de fronteiras, com especial ênfase no sul, como ele; e mostra-se profundamente crítico pela incúria em que deixámos a Senegâmbia portuguesa, tecerá comentários ácidos à decisão de termos ofertado em bandeja o Casamansa à França, se havia ponto, depois de Cacheu e Bissau, onde a nossa presença tinha algum relevo era em Ziguinchor. É um observador contumaz: a natureza das tabancas, a importância do Corubal e do Geba, não esconde o seu entusiasmo com as belezas guineenses e não deixa de lastimar como a colónia está num prático abandono. E que o leitor se prepare, o tenente Costa Oliveira ainda tem muito por contar.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

Estamos no início de março de 1888, a comissão luso-francesa tem permissão de marcar as fronteiras, visitou o rio Cogon, depois disso levantou-se o acampamento e abalaram para Kumataly, uma povoação importante e fortificada. Observa o tenente da Armada Real:

“As fortificações do gentio na Guiné são extremamente curiosas. As habitações ou cubatas são dispostas circularmente. Em torno delas constroem uma espécie de muralhas com altos e grossos troncos de árvores das espécies mais resistentes, pau-carvão, pau-ferro, sibes, etc. e a dois metros pouco mais ou menos de distância pela parte de fora uma segunda estacaria de troncos mais delgados e menos humildes, mas coberta de ramos de plantas espinhosas. Grossos portões de madeira fecham estas tabancas, e os caminhos que dão serventia ao interior da praça são tão complicados e cheios de óbices que se um estranho atrevido ousar entrar por algum deles, sem perfeito conhecimento daqueles labirintos, jamais sairá do espaço compreendido entre as duas paliçadas, por mais esforços que faça.”

Relata a passagem por uma povoação destruída e incendiada pelos Biafadas. É o momento propício para o autor tecer observações sobre gente importante da região:

“Já que falámos dos Biafadas ou Biafares, vem talvez a propósito dizer o que sabemos acerca de Mahmad-Jolá, o chefe de uma tribo que tanto concorreu para o abandono das feitorias do rio Grande. Conta-se que em certa ocasião, Mudi-Yaiá, fazendo guerra aos Biafadas, aprisionara bastante gente, e entre elas uma criança dos seus nove aos dez anos, viva, inteligente, simpática.
Mudi-Yaiá afeiçoou-se a esta criança, e levou-a para a sua companhia, dando-lhe mais tarde um lugar importante nos seus exércitos. Anos depois, esta criança, já um homem feito, quando entrava em qualquer conflito gentílico, tinha sempre o ensejo de se distinguir, já pelo seu valor pessoal, já pela perícia com que dirigia as suas hostes; e Mudi-Yaiá, satisfeitíssimo com o seu pupilo, enchia-o de presentes e até de mimos.

"Um dia os Biafadas atacaram os Fulas. Fizeram-se grandes combates, arrasaram-se muitas tabancas e fizeram numerosos prisioneiros de parte a parte. A sorte desta vez foi favorável aos fulas, e Mahmad-Jolá havia-se distinguido nos recontes em que entrara. Mudi-Yaiá, exultante de alegria, elogia-o publicamente, e conta-se que nessa ocasião solene lhe dissera:
- Bateste-te como um valente, é pena que sejas um Biafada!

"Mahmad-Jolá ouviu a sua triste história e a dos seus, silencioso e com as lágrimas a marejar-lhe os olhos, foi, dizem, nessa ocasião, que concebeu o arrojado plano de fujir e apresentar-se ao régulo dos Biafadas, seu legítimo rei e senhor!

"Apresentou-se ao chefe dos Biafadas e ofereceu-lhe a sua perícia na arte da guerra, jurando morrer ou exterminar a maldita raça Fula!”


O que importa saber é que Mahmad-Jolá passou a partir de então a atacar feitorias do rio Grande, com o fim exclusivo de roubar e até matar.

Costa Oliveira vai agora descrever o itinerário para Damdum, e dirá adiante que nesta povoação ainda lá estava a comissão francesa, emprestou-se dinheiro Monsieur Brosselard para contratar alguns carregadores para a sua viagem de regresso a Buba. E de novo este espantoso espírito observador do oficial da Armada vem ao de cima:

“De Chequeúel para Mahmed-Djimi o aspeto do país começa a modificar-se. Já tivemos que subir um monte de 160 metros de altura acima do planalto em que caminhávamos, monte conhecido com o nome de Deballara. Do cume deste monte percebem-se os rios Cogon e Kolibá. Pegadas de elefantes e grandes antílopes abundam nestas paragens. A água é magnífica e a temperatura média menos elevada 21ºC. Nas margens das ribeiras abundam árvores, e nas colinas e planícies o pau-carvão, o pau-ferro, o pau-sangue, o bambu e o algodoeiro-silvestre. Os seus habitantes são todos, ou quase todos, escravos de Mudi-Yaiá, e aproveitam sempre as ocasiões favoráveis para fugirem ao jugo daquele poderoso tirano. No caminho encontrámos depois algumas destas desgraçadas famílias, que se dirigiam também para as bandas de Contabane.”

Abasteceram-se em Damdum de mantimentos a troco de contas de coral, missanga e dinheiro. No dia 15, estiveram a determinar as posições geográficas do Cogon e no dia seguinte o Kolibá. Agora um aspeto curioso que ele escreve:

“Corubal, Kolibá, Kokoli e Koli são diferentes nomes do mesmo rio, dados nas diversas zonas por onde corre. É sempre um grande rio de 200 ou 300 metros de largura. Passa por Kadé, e dizem nascer nas altas montanhas do Futa-Djalon; é fundo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de 4 metros de altura próximo de Consinto (não será Cusselinta?).
De Mahmed-Djimi para o Kolibá, observa o oficial, não há vereda trilhada pelo pé do homem, caminha-se através do mato que, facto notável, pode considerar-se divido em três zonas distintas, atenta a natureza da vegetação que nelas predomina, sendo a primeira de gramíneas, a segunda de bambus e a terceira uma floresta virgem cheia de plantas espinhosas, nas quais rasgámos as carnes e deixámos pedaços de fato!”


Não menos interessante é a observação que ele faz sobre o rio Geba:

“Para mim é ponto de fé que o futuro da Senegâmbia portuguesa está ligado a este rio. Geba e Damdum são pontos estratégicos e importantes do Sertão e, se fossem convenientemente guarnecidos e defendidos, assim como Sambel-Nhantá, S. Belchior e mais alguns no Corubal, o comércio, à sombra desta proteção havia de desenvolver-se rapidamente e Bissau poderia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região.”

Julga importante dar-nos uma outra informação: Mamadu Paté, irmão de Bacari Guidali, mandado assassinar em 1886 por Mudi-Yaiá, domina todo o território ente Geba e Damdum e não consente que os Fulas de Yaiá, seu inimigo, viagem neste seu território. E aproveita para tecer outra consideração:

“Se nós tivéssemos a habilidade de promover a paz entre aqueles dois potentados, e conseguíssemos estabelecer um posto militar em Damdum, o comércio que por ali passa não poderia derivar-se para Geba, principalmente no tempo seco?”

E volta a tecer considerações sobre a presença portuguesa, propõe pontos a fortificar: Farim, Geba, Buba, Damdum, Bolor, Bissau e a colónia do rio Grande de Bolola, e pontos intermédios tais como S. Belchior, Sambel-Nhatá, no rio Geba, e Gampará, no Cacheu. Às duas horas da tarde do dia 18 abalava a comissão portuguesa de Damdum. 

“Na vanguarda da extrema linha de carregadores, levada por um cabo de caçadores, tremulava a bandeira nacional, respeitada por todos e testemunha insuspeita de que nunca se praticara um ato indigno!”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecido
Atual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
Imagem do antigo quartel de Bolama, retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 17 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25080: Historiografia da presença portuguesa em África (404): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25098: Historiografia da presença portuguesa em África (405): voyeurismo, exotismo, sexismo e racismo na exposição colonial do Porto de 1934: uma reportagem do jornalista de "O Comércio do Porto", Hugo Rocha (1907-1993), publicada no "Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro"

2 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Alguns pontos a considerar no texto do presente Poste do nosso amigo MBS:

Ponto 1: "Relata a passagem por uma povoação destruída e incendiada pelos Biafadas. É o momento propício para o autor tecer observações sobre gente importante da região:"

“Já que falámos dos Biafadas ou Biafares, vem talvez a propósito dizer o que sabemos acerca de Mahmad-Jolá, o chefe de uma tribo que tanto concorreu para o abandono das feitorias do rio Grande. Conta-se que em certa ocasião, Mudi-Yaiá, fazendo guerra aos Biafadas, aprisionara bastante gente, e entre elas uma criança dos seus nove aos dez anos, viva, inteligente, simpática.

Mudi-Yaiá afeiçoou-se a esta criança, e levou-a para a sua companhia, dando-lhe mais tarde um lugar importante nos seus exércitos. Anos depois, esta criança, já um homem feito, quando entrava em qualquer conflito gentílico, tinha sempre o ensejo de se distinguir, já pelo seu valor pessoal, já pela perícia com que dirigia as suas hostes; e Mudi-Yaiá, satisfeitíssimo com o seu pupilo, enchia-o de presentes e até de mimos.

Um dia os Biafadas atacaram os Fulas. Fizeram-se grandes combates, arrasaram-se muitas tabancas e fizeram numerosos prisioneiros de parte a parte. A sorte desta vez foi favorável aos fulas, e Mahmad-Jolá havia-se distinguido nos recontes em que entrara. Mudi-Yaiá, exultante de alegria, elogia-o publicamente, e conta-se que nessa ocasião solene lhe dissera:

- Bateste-te como um valente, é pena que sejas um Biafada!

Mahmad-Jolá ouviu a sua triste história e a dos seus, silencioso e com as lágrimas a marejar-lhe os olhos, foi, dizem, nessa ocasião, que concebeu o arrojado plano de fujir e apresentar-se ao régulo dos Biafadas, seu legítimo rei e senhor!

Apresentou-se ao chefe dos Biafadas e ofereceu-lhe a sua perícia na arte da guerra, jurando morrer ou exterminar a maldita raça Fula!”.

O que se transcreve acima é pura ficçao, um mito fabricado por biafadas ou portugueses e que desvirtua a realidade dos factos, na verdade o Mamadu Jola nao tinha sido preso como se relata, ele e outros jovens biafadas teriam sido enviados para formaçao religiosa para Futa-Djalon (Cadé) cujo estado teocratico dominava toda a regiao, a semelhança do que fazia com outras etnias como os Nalus, Landumas, Bagas e outros grupos do Sul, para desse modo garantir que seriam governados por seus filhos e nao por pessoas estranhas aos seus povos.

No entanto, mais tarde, o Mamadu Jola, provavelmente, com apoio e incitamento das autoridades portuguesas em Bolama que viam com maus olhos a presença massiva dos Futa-Djalonkés, entraria em conflito com os seus antigos Suseranos, expulsando-os em terras anteriormente conquistadas aos Biafadas como Fulacunda e Buba-Tumbum.


Ponto 2: “Julga importante dar-nos uma outra informação: Mamadu Paté, irmão de Bacari Guidali, mandado assassinar em 1886 por Mudi-Yaiá, domina todo o território ente Geba e Damdum e não consente que os Fulas de Yaiá, seu inimigo, viagem neste seu território”.
Esta informaçao nao corresponde a verdade historica e o MBS sabe disso. O Mamadu Paté foi mandado assassinar, em Buba, pelas autoridades portuguesas, através do destacamento militar instalado nessa localidade para proteger as feitorias. Na altura, a regiao do sul do territorio era dominada por Alfa Iaia ou Modi Alfa Iaia, rei do Labé que controlava Gabu depois da derrota dos mandingas (Soninqués) e o chefe dos Fulas-Forros de Forrea, Mamadu Paté (Bolola) com os quais os portugueses tentavam negociar acordos, sem qualquer sucesso e faziam tudo para criar revoltas por meio de alianças, entretanto conseguidas com o chefe dos Fulas-Pretos de N’dorna ou Indorna e sucessor de Alfa Molo (Cassamansa) e com os Biafadas liderados por Mamadu Jola.


(Continua)

Anónimo disse...

(Cont...)

Ponto 3: “De Chequeúel para Mahmed-Djimi o aspeto do país começa a modificar-se. Já tivemos que subir um monte de 160 metros de altura acima do planalto em que caminhávamos, monte conhecido com o nome de Deballara. Do cume deste monte percebem-se os rios Cogon e Kolibá. Pegadas de elefantes e grandes antílopes abundam nestas paragens. A água é magnífica e a temperatura média menos elevada 21ºC. Nas margens das ribeiras abundam árvores, e nas colinas e planícies o pau-carvão, o pau-ferro, o pau-sangue, o bambu e o algodoeiro-silvestre. Os seus habitantes são todos, ou quase todos, escravos de Mudi-Yaiá, e aproveitam sempre as ocasiões favoráveis para fugirem ao jugo daquele poderoso tirano. No caminho encontrámos depois algumas destas desgraçadas famílias, que se dirigiam também para as bandas de Contabane.”
- Chequeuel deve ser o nome original da actual localidade de Che-Che, junto ao rio Corubal.
- O monte Deballara deve ser o conhecido durante a guerra colonial por Montanha de Cabral, entre Madina de Boé e Dandum.


Ponto 4: “Corubal, Kolibá, Kokoli e Koli são diferentes nomes do mesmo rio, dados nas diversas zonas por onde corre. É sempre um grande rio de 200 ou 300 metros de largura. Passa por Kadé, e dizem nascer nas altas montanhas do Futa-Djalon; é fundo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de 4 metros de altura próximo de Consinto (não será Cusselinta?).
- Koliba é o nome dado ao rio na lingua mandinga;
- Koli na lingua fula;
- Kokoli era o nome de uma etnia indigena da mesma regiao;
- Corubal é a grafia portuguesa do nome Koliba.


Ponto 5: “E volta a tecer considerações sobre a presença portuguesa, propõe pontos a fortificar: Farim, Geba, Buba, Damdum, Bolor, Bissau e a colónia do rio Grande de Bolola, e pontos intermédios tais como S. Belchior, Sambel-Nhatá, no rio Geba, e Gampará, no Cacheu. Às duas horas da tarde do dia 18 abalava a comissão portuguesa de Damdum. “Na vanguarda da extrema linha de carregadores, levada por um cabo de caçadores, tremulava a bandeira nacional, respeitada por todos e testemunha insuspeita de que nunca se praticara um ato indigno!”
O tom do discurso aqui apresentado é do tipo colonial de quase todos os africanistas e aventureiros europeus, desde Cadamosto, em que os portugueses e outros europeus eram descritos como os bonzinhos e todos os outros, seus concorrentes, locais ou estrangeiros, eram diabolizados .
Dandum é a localidade de Boé, depois de Madina (onde estava situado o quartel), perto da fronteira com a Guinée (Conakri).


Com um abraço amigo,

Cherno Baldé