segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21551: Notas de leitura (1323): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O Tenente-General Piloto Aviador António Bispo produziu um relato que intitula “Um exercício de ficção, em retrospetiva”. Nele existem longos diálogos, vão aparecer Salazar e Amílcar Cabral. Tudo colimará, como veremos mais tarde, num encontro de amigos onde se decide escrever a guerra de África, contadas pelos protagonistas. Lá no grupo haverá mesmo quem resmungue sobre a bibliografia em língua inglesa sobre esta guerra que dá vómitos, e outro acrescenta que tudo o que se tem publicado até agora tem sido lixo, inverdade e propaganda ideológica. Como os protagonistas estão na fase final da vida era preciso contar a verdade, sem sofismas.
No final da conversa dir-se-á que houve aquela guerra porque se constituíram partes em oposição que se deixaram cair na armadilha. Daí este exercício de ficção.

Um abraço do
Mário


Colonialismo e descolonização num espelho estilhaçado (1)

Beja Santos

O colonialismo, em termos históricos, foi condenado pelos vencedores da II Guerra Mundial e a descolonização entrou em marcha ainda na década de 1940, a independência da Índia foi o pontapé de saída. Todo este processo de análise tem merecido investigações de todas as proveniências, e do rigor histórico disseminou-se para a literatura. No caso português, tem dado azo a trabalhos de primeira água como a obra de consagração de Valentim Alexandre, “Contra o Vento”, Círculo de Leitores, 2017 e o romance de Pedro Rosa Mendes, “Baia dos Tigres”, Dom Quixote, 1999. Tema naturalmente polémico, que conjuga com atrição por força da ideologia. No caso português, o MFA afirma-se alegando que o poder político derrubado fora incapaz de encontrar soluções políticas após um prolongado conflito armado em três frentes, numa delas existia já um Estado reconhecido por mais de oitenta nações. Recrudesceram tomadas de posição, da extrema-esquerda à extrema-direita. Esta, alega que continua de pé, como narrativa dominante, a versão dos vencedores. E mantém um percurso incansável de acusações que vão desde a demissão das Forças Armadas perante valores inalienáveis até a um persistente discurso de que toda a nossa História recente é resultado de um processo manipulador, tanto na interpretação do colonialismo português como no que intitulam o desastre da descolonização.

Foi recentemente publicado o livro “A Armadilha da Guerra, um exercício de ficção, em retrospectiva”, por António de Jesus Bispo, DG edições, 2017. Não é romance histórico, não é ensaio histórico nem documento memorial, a obra não assume nenhuma destas facetas. É uma crónica que se inicia à volta de uma tertúlia que tivera lugar, nos anos 1960, na Pastelaria Mexicana, um capitão piloto-aviador, Victor Silveira, conversa com um estudante cabo-verdiano de nome Amílcar, afilhado de Amílcar Cabral. Tecem amizade, fala-se da luta armada que lavra na Guiné. Por decisão do autor, o diálogo é manifestamente desequilibrado, ao jovem cabe o papel de colar as frases da farta oratória que cabe ao protagonista, um convicto de que aquela guerra é justa e de que o adversário é dirigido por um narcisista marioneta de Moscovo. É um oficial convicto com uma capacidade discursiva entre Silva Cunha e Venâncio Deslandes, mas arroga-se à livre crítica, está inquieto com os problemas da comunicação da guerra na Metrópole, há muita mentira internacional, racismo há nos EUA, “Um verdadeiro racismo que discrimina pela cor da pele. Na minha estadia na Guiné não vi agressões das autoridades, abusos de poder, faltas de respeito, atentados à dignidade das pessoas e outros actos do mesmo género.” A luta pela independência, segundo o oficial narrador, teve uma consequência positiva, “porque nos estimou a criarmos condições para um maior desenvolvimento e a interiorizar uma ideia de multiculturalismo, de comunidade multirracial ligada por um conjunto de valores e pelo respeito pelas diferenças”. Fala-se aqui e acolá da Guiné, o colonialismo merece um discurso benevolente, fala-se do modo de ser português nas parcelas do Império, opressores a sério têm sido os norte-americanos e até os soviéticos, a causa portuguesa tem legitimidade à face do Direito, o discurso, aqui e acolá, também aparece pintalgado de aberturas ao diálogo, até se admite uma consulta popular, no caso da Guiné era importante alterar o paradigma das Forças Armadas, adotar uma espécie de estado de sítio, alargar as suas missões. Um outro caminho passa pela emigração, pois “muitos dos nossos emigrantes em África são autênticos missionários da solidariedade”.

É uma conversa longuíssima, o capitão não gosta dos sinais de indiferença que apresenta a sociedade civil, urge encontrar um dispositivo militar ágil que enfrente resolutamente os guerrilheiros, e discreteia sobre o significado da vitória política: “Podemos dizer: quando houver livre circulação das pessoas a guerra estará ganha; então vamos trabalhar nesse sentido, sabendo obviamente que isso envolverá muitos riscos em certas zonas. Saber assumi-los é uma condição primeira para se agir; às vezes, estando passivos também corremos riscos e é bom que se tenha consciência deste diferencial. Teremos de estar dentro do Oio, à vontade. O Oio é uma região entre Mansoa, Bula, Bissorã e Olossato, é um refúgio permanente da guerrilha. Teremos de fazer como eles fazem, com forças muito ágeis. Nós temos de lá estar, com prazos aleatórios, entramos, ficamos uns tempos, vamos à fala com a população. Não podemos fazer uma ocupação plena, como é óbvio, mas devemos criar uma grande insegurança ao inimigo e desconstruir o seu trabalho de doutrinação”.

Se todo este debate já excede a pura ficção e a verdade dos factos históricos, o que se segue aproxima-se do burlesco: Amílcar foi convidado para uma festa íntima dada por Salazar e leva o amigo, o protocolo é de que tudo o que ali se disser jamais em tempo algum poderá circular na via pública. E vamos ter, na magnitude, um frente-a-frente entre Salazar e o capitão piloto-aviador. Salazar é pedagógico, fala da Carta do Atlântico, da incapacidade do Ocidente em resistir à ofensiva soviética, de dedo em riste recorda que o domínio europeu em África constituiria um dique contra o comunismo, o que se passa na ONU é lamentável, o capitão, neste debate, tem o mesmo papel que Amílcar teve no debate anterior, cola as frases, a peroração arrasta-se, temos aqui o Salazar como ele foi, o nosso capitão insiste com o Chefe do Estado Novo de que é absolutamente necessário militarizar a Guiné e avança com a proposta de que se devia aceitar um processo de negociação com os terroristas, para os integrar num novo processo civilizacional, Salazar encrespa-se, o capitão clarifica o que queria dizer com negociação: “Era simplesmente mandar-lhe mensagens para ir enquadrando os termos de uma situação final e publicitar os factos que mostrassem, de forma inequívoca, que os objectivos da cidadania, do desenvolvimento, estavam a ser atingidos” e quando pergunta a Salazar se os terroristas decidissem cessar as hostilidades, o dirigente responde perentoriamente: “Seriam julgados por traição à Pátria, e por todos os crimes praticados sob sua direcção. Esses senhores são cidadãos portugueses, muitos deles com passaportes portugueses, ainda sem forma de os fazer caducar, que decidiram fugir do País, sublevar pessoas, incitar à violência, pegar em armas e lutar contra a autoridade legítima”.

Assim foi o encontro com Salazar, o ardoroso capitão saiu do almoço de convívio ciente de que seria muito difícil sair desta guerra, as posições estavam extremadas. E se o improvável deste encontro assim decorreu não menos improvável é um encontro que vai ter lugar em Paris entre Victor Silveira e Amílcar Cabral.

Como explica que o autor é tenente-general piloto aviador na reforma, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Geografia e com longo currículo na Guiné. Na contracapa escreve algo de enigmático face ao conteúdo do livro, tal qual: “A obra pretende transmitir a mensagem de que os decisores políticos, as sociedades, os estados, podem colocar-se em determinadas situações onde a guerra se apresenta como possibilidade, num quadro de valores e interesses, de risco e também de capacidades. Por outro lado, a paz ‘conquista-se’ em permanência, pela detecção, análise e neutralização das armadilhas que a interacção pode suscitar, com a utilização do poder de persuasão e de influência, no pressuposto de que a guerra pode ser evitável”.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21528: Notas de leitura (1322): "Biambe e os Biambenses", por Manuel Costa Lobo; 5livros.pt, 2019 - Um levantamento ímpar: toda a história de Biambe (1966/1974), sítio de coragem e martírio (2) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: