sábado, 21 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21563: Notas de leitura (1324): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos, 

O autor, um tenente-general piloto aviador, com largos conhecimentos da Guiné, dá-nos, não um romance, não um ensaio, não assumidamente um registo memorial, escolheu uma via muito áspera de exercício de ficção de elevado grau de improbabilidade, nele convergiram o pensamento oficial do regime de Salazar face à ascensão dos nacionalismos, há um oficial aviador que rebusca uma tese de abertura ao diálogo totalmente negada pelas partes e no termo da obra um grupo de amigos resmungões distribui tarefas sobre a guerra que cada um experimentou, passando-a a escrito. O autor sugere que aquela guerra era sustentável se houvesse vontade e recursos, não fica margem para discussão e debate sereno porque nunca deixa antever, ao longo da obra, onde no essencial faltou vontade e qual foi a natureza da falta de recursos, para tudo ter acabado num Império estilhaçado.

Um abraço do
Mário


Colonialismo e descolonização num espelho estilhaçado (2)

Beja Santos

“A Armadilha da Guerra, Um exercício ficção, em retrospetiva” por António de Jesus Bispo, DG edições, 2017, é um contributo de um Tenente-General Piloto Aviador que cumpriu duas comissões de serviço na Guiné e vem a terreiro com o relato memorial ficcionado (ainda que com o concurso de longas referências a acontecimentos históricos, muitas vezes por si interpretados) para procurar esclarecer o processo colonizador, a guerra em África e o confronto entre contendores, a descolonização e sequelas, sobretudo tendo como referência central os acontecimentos da Guiné.

Como se disse anteriormente, o autor entendeu criar uma atmosfera em que dois amigos vão criar oportunidades de encontros singularíssimos, um deles com Salazar e outro com Amílcar Cabral em Paris, o oficial da Força Aérea Victor Silveira participa num festival em Le Bourget, leva uma encomenda que entrega ao fundador e líder incontestado do PAIGC. O que era suposto ser uma simples entrega sem outras consequências relacionais, salda-se num vibrante debate, todo ele impensável, mas que o autor ajustou para revelar ao leitor que tem opinião própria sobre o pensamento de Cabral, Victor está completamente descontraído e equipado de informação, entra a matar na conversa:

“ – O senhor engenheiro criou uma organização mais pesada com o passar do tempo, mais burocratizada, com controlo apertadíssimo de comissários políticos. Esta burocracia está a criar discriminação entre os combatentes de dentro, os de fora, os que às vezes estão dentro e os burocratas sempre fora. O senhor engenheiro não tem medo do monstro que está a criar?
- A sua provocação não merece resposta. Nós insistimos na diversidade quando falamos em unidade.
- Em todo o caso, acho ser inviável conciliar uma sociedade horizontal, sem chefes, como é o caso da população Balanta, e não só, com uma sociedade estratificada com uma hierarquia muito rígida, como é o caso da população Fula e de outras. São conceitos de liberdade completamente distintos. Se tudo corresse bem seria uma tarefa para várias gerações, com várias ruturas e vários momentos violentos. A maioria das gentes da Guiné pretende muito mais a soberania portuguesa do que a quimera do vosso Partido, por uma razão: é a solução que tem dado maior autonomia ao nível étnico.”


E vão esgrimindo, falam do tráfico de escravos, sobre o processo colonizador, Victor Silveira usa o discurso do regime mas diz representar-se a si próprio, com alguns matizes com o discurso que usou para Salazar, volta a falar em reuniões, na procura de entendimento, diz a Amílcar Cabral: 

“Se os senhores querem de facto o desenvolvimento da Guiné e do seu povo deixem o Governo efetuar também essa tarefa, em vez de impedir e destruir aquilo de bom feito por ele. Podem partilhar os resultados. Digam, por exemplo, serão vocês a proporcionar esse resultado”. 

O tom dialético cresce em agressividade a tal ponto que o oficial da Força Aérea pergunta a Amílcar Cabral: 

“Quando o senhor fala em colonialista parece esquecer que são os cabo-verdianos os verdadeiros colonos, no terreno. Como é que imagina a relação entre guineenses e cabo-verdianos após uma suposta independência?”.

Despedem-se. Victor Silveira vai construindo de si para si uma proposta para a paz na Guiné: a primeira ação seria uma declaração da parte portuguesa relativa ao colonialismo à qual responderia o PAIGC apelando à liberdade das pessoas, aos direitos humanos, à garantia da propriedade privada e a seguir a estas declarações seguir-se-ia uma fase de negociações, a Guiné Portuguesa deveria constituir-se em região autónoma, haveria cessar-fogo. Construída a sua proposta, enviou-a ao cuidado de Amílcar Cabral, via Marrocos, Cabral não lhe deu importância. A guerra intensificou-se.

O regime político em Portugal não encontrava saída para o problema do Ultramar. E chegou-se ao 25 de abril. 

“A guerra terminou, não em consequência da derrota militar em África, mas por força da mudança de regime político em Portugal. O novo regime impôs o fim da guerra.”. Victor Silveira é procurado pelo antigo colega que pretende obter a sua opinião para uma independência em Angola, discutem os prós e os contras. E chegou-se à descolonização.

Os dois amigos que se tinham conhecido na Pastelaria Mexicana reencontram-se e permutam as suas preocupações sobre a descolonização. A vida corre, reatam gradualmente as relações entre Portugal e as suas ex-colónias.

No restaurante da Associação encontram-se velhos camaradas de guerra, come-se bem e fala-se das calamidades que assolam Portugal, um especialista em frases apocalíticas verbera:

“Isto bateu no fundo. Agora só há um caminho, o da subida ou então a morte do nosso país enquanto entidade própria, sede de valores. Se isto continuar por este caminho o português vai desaparecer, vai-se transformando num ser descaracterizado, sem alma nacional. Desconstruíram o Estado, desconstruíram a Instituição Militar, desconstruíram a família, desconstruíram a História. Estamos no mais puro individualismo materialista e o fim só pode ser o caos. Isto é uma réplica do Sodoma e Gomorra”

Um outro reponta, qual Cassandra ainda mais desgraçada: 

“Está tudo invertido. O que está na moda é ser gay, é quase obrigatório. A malta jovem está na droga e culpa a sociedade. Agora há para aí uma hepatite qualquer adquirida por prática sexual aberrante e isto diz-se na televisão com a maior das calmas, como se fosse generalizado. O facto é que a doença está a tornar-se epidémica, e há vacinas só dadas aos praticantes de tal sexo. Se calhar têm de provar isso, para o médico ou o serviço lhes prescrever o medicamento”

É um cenáculo de lamúrias, até que alguém se lembra de que o Sabrosa quer que a malta daquele grupo escreva um livro sobre a guerra. Continua-se a falar num tom passadista, alguém mesmo diz que a guerra está bem ganha em Angola, desanca-se na historiografia, sobretudo internacional, sobre o relevo dado aos movimentos independentistas, alguém que se arvora em líder do grupo diz que vai fazer o esboço da introdução e os demais intervenientes enchem com a parte que lhes compete, tudo circunscrito aos aspetos militares.

Nas reuniões subsequentes, foi-se fazendo o ponto da situação, recapitulou-se uma série de elementos históricos após a II Guerra Mundial e a origem das hostilidades nos três teatros de guerra, Victor Silveira conta o que se passou na Guiné e outros o que se passou em Angola e Moçambique. O tom geral do discurso era de que a paz em Angola estava a ser conseguida, quem escreveu sobre Moçambique refere em dado momento: 

“Surgem as ZPU-4 e por último o míssil Strella que apenas abate dois aviões ligeiros rodesianos e atinge um C47 danificando um motor. Em termos militares nenhuma área da Província estava controlada pelo inimigo. O grande objetivo da guerrilha de impedir ou destruir a barragem de Cahora-Bassa saiu completamente frustrado. Depois da operação Nó Górdio o inimigo reduz as suas atividades em Cabo Delgado e Niassa e concentra-se no Oeste e em Tete”

E tira-se uma conclusão muito redonda, e muito a contento daqueles que defendem intransigentemente a sustentabilidade da guerra colonial: 

“Em termos de guerra de guerrilha não havia vencedores definitivos; as autoridades portuguesas continuavam a exercer soberania nas zonas onde a população era mais concentrada, a guerrilha estava nas suas bases e daí ia lançando ataques esporádicos contra as forças militares e contra a população. Poderíamos continuar a trocar tiros por um prazo indeterminado se houvesse vontade e recursos”.

É pena que o autor não se debruce sobre o que aconteceu à vontade e aos recursos para que o Império se volatizasse em tempo meteórico.

Se todo este livro é um perfeito enigma quanto à razão essencial da escrita, o mistério adensa-se com o propósito anunciado pelo autor na contracapa: 

“A obra pretende transmitir a mensagem de que os decisores políticos, as sociedades, os estados, podem colocar-se em determinadas situações onde a guerra se apresenta como possibilidade, num quadro de valores e interesses, de risco e também de capacidades. Por outro lado, a paz ‘conquista-se’ em permanência, pela deteção, análise e neutralização das armadilhas que a interação pode suscitar, com a utilização do poder de persuasão e de influência, no pressuposto de que a guerra pode ser evitável”.
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21551: Notas de leitura (1323): "A Armadilha da Guerra, Um exercício de ficção, em retrospetiva”, por António de Jesus Bispo; DG edições, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

É SÓ UM "SUPOR"

Suponhamos que o Sr. Engenheiro queria negociar pretendendo que a Guiné fosse uma região autónoma presidida pela potência colonial com um longo período de transição.
Quem é que não gostaria nada da ideia ?
Porque é que foi morto pelo comandante da sua guarda pessoal ?
Porque é que ao ser atingido no abdómen , devido ao nervosismo do atirador, disse "vamos conversar".
Porque é que teve várias vezes o desabafo de "ainda sou morto pela minha gente".
A pide nunca conseguiu infiltrar-se na cúpula do paig.

AB
C.Martins