quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21557: Historiografia da presença portuguesa em África (239): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

É bem interessante a analogia usada com outros povos imperialistas que se serviram do comércio para ir ocupando posições, preparar o terreno para ocupações efetivas. Foi assim que trabalharam os alemães e os holandeses. Os franceses não escaparam à tentação de se assenhorear da costa ocidental, só tinham receio de entrar em conflito com os ingleses, presentes na Gâmbia e na Serra Leoa. Tentarão dominar o coração do continente, nessa altura o governo de Londres irá humilhá-los, obrigando-os a retirar de toda a região do Nilo. 

Max Astrié, a fazer fé neste relato, é o primeira branco a ir à Ilha de Orango. Não terá sido o primeiro, houvera pouco tempo antes um naufrágio de um navio austríaco, tudo terá acabado num certo morticínio e roubo, como se verá no próximo texto. 

É uma peça finíssima de literatura de viagens, com o maior dos interesses para as literaturas portuguesa e guineense. Peço imensa desculpa por quaisquer erros de tradução, sinto-me feliz por fazer reaparecer este belo documento que refere acontecimentos passados em 1879. 

Na década seguinte, com a Convenção Luso-Francesa, nenhum outro Max Astrié poderia voltar a escrever um relato como este, seria entendido como pura ingerência numa colónia oficialmente portuguesa.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (2)

Beja Santos

Confesso a minha total surpresa e satisfação em descobrir este documento digno de emparceirar no que há de melhor da literatura de viagens à Guiné. Max Astrié assina como vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau e a sua insólita viagem à Ilha de Orango, carregada de peripécias e dos maiores riscos, foi publicada no Boletim da Sociedade de Geografia, 6.º Série, N.º1, 1886. 

Atenda-se que a viagem ocorreu na década anterior, a França, de modo sub-reptício, ensaiava todas as diligências para se instalar para cima do rio Nuno, estreitando o campo de manobra da presença portuguesa na Senegâmbia. 

Como se viu no texto anterior, a convite do visconde de Sanderval, e seguramente sob os auspícios do governo francês, Max Astrié é convidado a viajar até à ilha de Orango, a maior dos Bijagós, onde até então não chegara a influência dos portugueses. Desembarca e é apresentado ao rei, um verdadeiro déspota, um tirano sanguinário. Propõe-lhe um contrato comercial, o rei exige a prática de um sacrifício, degolar uma galinha e perceber da bondade desse mesmo contrato, a galinha a estrebuchar deveria cair aos pés do francês, seria uma boa sina. É neste ponto que retomamos o relato.

Enquanto se preparava o sacrifício, escreve Max Astrié:

"Trouxeram de todos os lados laranjas, ananases e vinho de palma. Reparei na presteza com que uma jovem negra depusera a meus pés dois soberbos ananases e colocou-se atrás de mim e com as pontas dos dedos procurou tocar no meu pescoço. Ela completou esta pantomima manifestando-me o desejo de me ver o peito. Cedi à sua curiosidade e abri a camisa e o colete de flanela. A multidão, atenta a todos os meus movimentos, deixou escapar um imenso clamor devido sem dúvida ao espanto que lhe causava a brancura da minha pele. Eu também não quis ficar sem resposta.

É uso e costume em algumas tribos da costa africana manifestar a galantaria diante das mulheres afagando com delicadeza os seios e a extremidade superior do fémur e o maior elogio que se poderá fazer à beleza da mulher acariciada é exprimir a admiração que causa a firmeza destas partes do corpo. 

Nós, parisienses, ficaremos certamente surpreendidos que se proceda de tal modo. Aproximei-me da negra e senti-me no dever de corresponder à sua delicadeza. Entretanto, o rei Oumpâné apareceu no limiar da porta da sua casa e lançou-me um olhar que não tinha nada de convidativo…

Tudo se aprestou para o sacrifício. A uma centena de metros do telheiro onde fôramos recebidos estendia-se uma espécie de lugar público cercado de bananeiras e laranjeiras. Tinham trazido todos os ídolos da ilha. Eram estátuas grotescas em madeira, grosseiramente esculpidas e que tinham no alto um género de cartola, que é o emblema do poder real. Quanto às divindades secundárias, tinham a representação de grandes senhoras negras que ostentavam em cima dois cornos de cabra. Como se vê, todos os povos têm uma inclinação para pôr cornos nos seres sobrenaturais.

O povo formava um imenso círculo à volta destes ídolos e esperava com impaciência a chegada do rei que devia presidir ao sacrifício. E o rei apareceu.

Colocou-se a meu lado, sempre acompanhado por dois ministros. Ao sinal do rei, o grande sacerdote, após alguns salamaleques, apresentou um galo que segurava vigorosamente pela cabeça e o ministro da justiça pelas patas. Uma faca caiu sobre o pescoço do galo, que tombou decapitado e caiu por terra nas convulsões da agonia. O rei explicou-me através do intérprete que se o corpo do animal que se debatia se aproximasse de mim o sacrifício tinha agradado aos deuses. Pelo contrário, se o animal tomasse a direcção oposta, os deuses não me seriam favoráveis. Por fatalidade, o galo afastou-se de mim, a assistência parecia ter ficado em estado de choque e o rei levantou-se e foi para sua casa, sem proferir palavra.

Os deuses tinham-me abandonado! O ministro da guerra enviado por Sua Majestade Oumpâné informou-me que eu estava detido. Ao mesmo tempo, uma centena de Bijagós dirigiu-se para a minha embarcação e em menos de uma hora desembarcaram tudo o que nela vinha.
Fiquei aterrado.

Não sabendo o que me ia acontecer, deplorei a funesta temeridade que me tinha levado a estas costas tão hostis. A ideia de resistir assaltou-me o espírito. Mas em presença de tanta população servindo às ordens deste déspota, compreendi que qualquer tentativa desse género acabaria terrivelmente mal, quer para mim quer para a minha tripulação.


O meu cozinheiro preparou a galinha com arroz tradicional. A minha refeição foi interrompida com a chegada de um grupo de nativos que traziam um touro que foi degolado na minha presença. Foi esquartejado sem ser esfolado e o ministro da guerra veio anunciar-me que o rei mandara matar o touro em minha honra e contava com a minha generosidade para lhe oferecer um quarto do animal.

Respondi prontamente que sim, e ofereci também 38 litros de aguardente. Oumpâné ficou tão satisfeito que me veio agradecer pessoalmente. Através do meu intérprete, deu-me a saber que eu era livre de percorrer toda a ilha e que em minha honra autorizara festejos públicos.

Sentia-me totalmente confuso. Um rei que me mantinha prisioneiro e que ao mesmo tempo me oferecia presentes e festejos públicos era a coisa mais incompreensível do mundo.
Floresta guineense, imagem do site Algarve Selvagem, com a devida vénia
Vista geral da Ilha de Orango

No dia seguinte, dirigi-me para o interior da ilha. Após ter atravessado muitos milheirais, campos de inhames e de batatas, entrámos numa floresta que cobria uma grande parte da ponta oeste de Orango. É-me difícil traduzir em palavras a impressão que me causou. Já tinha visto muitas florestas e lido numerosas descrições; mas em parte alguma vi algo que me desse a ideia de semelhante natureza.

Encontrávamo-nos debaixo de uma abóbada imensa, formada principalmente por árvores de bombax [procurei em vários dicionários, surfei no Google, estou em crer que Max Astrié está a falar de poilões gigantescos, é a maior de todas as árvores, na Guiné], uma das árvores gigantes da costa africana cujo tronco serve para fazer as pirogas. Lianas com as formas mais bizarras e variadas enrolavam-se à volta dos troncos vigorosos, subindo muitas vezes até às copas. Estas árvores, cuja altura ultrapassa os carvalhos, são coroladas por uma folhagem de tal modo espessa que os raios de sol não a conseguem atravessar. À sua volta reina uma sombra eterna; daí a ausência de toda a vegetação sobre o solo. Andávamos através de uma clareira que me parecia interminável e que tinha ao alto uma vasta cúpula de verdura onde ressoavam os gritos, os cantos, os miados e os uivos na mais variada fauna.

De longe em longe, numa nesga de luz, apareciam goiabeiras curvadas sob o peso dos frutos maduros [tenho sérias dúvidas que se tratava de goiabas, mas sim de mangas]. Estes frutos, da grossura de batatas, têm um gosto saboroso que dá ao vinho um perfume requintado [a frase parece-me desconexa, mas é o que Max Astrié escreveu].

Via-se a esmo o caju [impossível, o caju chegou à Guiné na década de 40 do século XX, talvez ele se refira ao amendoim], o bambu e a palmeira. Sobre esta última, observarei que não há nada de mais útil para mil usos possíveis; com as suas folhas os negros fabricam vestuário e cordoaria; do seu tronco extrai-se o vinho de palma e do seu fruto retira-se o óleo de palma e nas plantas da palmeira temos uma noz de um gosto agradável designada por palmiste. O ruído dos nossos passos e as nossas vozes punham toda aquela fauna em movimento, gritando e fugindo nas ramagens".

(continua)
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Nota do editor:

Último poste da série de 11 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, encontrei na Wikipedi uma entrada sobre a Bombax [, bombácea]... Pode ser que o Cherno Baldé nos ajude... Não será a "cabaceira" ou "embondeiro" ?


Bombax L. é um género botânico pertencente à família bombacaceae.(...)

Compreende várias espécies de árvores, nativas do sul tropical da Ásia, norte da Austrália e África tropical.

(...) As árvores do género Bombax são das árvores maiores que se encontram nas respectivas regiões, alcançando de 30 a 40 metros de altura com troncos de 3 metros de diâmetro. As folhas são caducas, caindo na época seca, de 30 a 50 cm de diâmetro, palmeadas, com 5 a 9 divisões de folhas menores . Produzem flores vermelhas entre janeiro e março. (...)

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bombax

https://en.wikipedia.org/wiki/Bombax


2. Vd. o Dicionário Priberam:

bombácea | s. f. | s. f. pl.

bom·bá·ce·a
(latim medieval bombax, -acis, algodão + -ácea)
nome feminino
1. [Botânica] O mesmo que bombacácea.


"bombáceas", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/bomb%C3%A1ceas [consultado em 18-11-2020].

Tabanca Grande Luís Graça disse...


18 DE JULHO DE 2007
Guiné 63/74 - P1965: Cusa di nos terra (1): Emdondeiro (cabaceira) e poilão (Paulo Santigo / Leopoldo Amado)



(...) 2. Comentário do Leopoldo Amado:

Caros amigos: Embondeiro (cabaceira) e poilão são duas coisas diferentes, pese embora serem ambas árvores milenares e gigantescas (sobretudo o primeiro).

Embondeiro dá fruto, denominado cabaceira na Guiné e múcua em Angola.

No caso da Guiné, tanto a árvore como o fruto possuem o mesmo nome. Actualmente, a maior quantidade do sumo que se faz da Guiné é justamente do fruto do embondeiro, ou seja, da cabaceira.

Guiné-Bissau exporta muita cabaceira, seja para o Senegal, seja para Cabo-Verde, países esses onde é sobretudo utilizado como ingrediente principal para sumos e sorvetes.

Curiosamente, no Senegal, embondeiro denomina-se baobab e o seu sumo bissap de baobab. Em Cabo-Verde, onde essa árvore rareia ou é mesmo inexistente, é chamado sumo de fresquinha ou gelado de fresquinha, no caso de sorvete. (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camarada Marreiros, és bem vindo!... Não percas o contacto connosco... Vamos escrever-te para o teu email, constante do teu perfil no Blogger.

Infelizmente, temos apenas duas referências à tua primeira companhia, a CCAÇ 3544. Por exemplo, será que viste este poste ?

Pelo teu apelido, pareces-me ser algarvio... Quando escreveres a tua história, em inglês, para a tua neta canadiana, manda-nos um "cheirinho", ou até uma cópia... Na parte relativa à Guiné, tens aqui uma "montra" para divulgares a tua história...

Um alfabravo, Luís Graça


23 DE FEVEREIRO DE 2012
Guiné 63/74 - P9520: Facebook...ando (16): Em busca de camaradas da minha companhia, CCAÇ 3544/BCAÇ 3883, "OS Roncos de Buruntuma", Buruntuma, mar 72 / jan 74 (Francisco Alves, Torres Vedras)