segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12671: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (8): Tempos de Bissau - Estórias opostas

1. Em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2014, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga eBissau, 1972/74), enviou-nos mais um Pedaço do seu tempo.

Amigo Carlos
Votos de boa saúde, é o que te deseja este teu camarigo.
Hoje envio-te um retrato… daquele que foi o nosso tempo de Bissau, com o fim da comissão a parecer cada vez mais distante. Se no mato foi difícil, na cidade para nós também não foi nada agradável.

Um abraço.
António Eduardo Ferreira


PEDAÇOS DE UM TEMPO

8 - TEMPOS DE BISSAU - ESTÓRIAS OPOSTAS

Nos últimos dias de Janeiro de 72, acabado de chegar a Bissau, e de me ter “instalado” nos Adidos, passou pouco tempo sem me arranjarem serviço, Cabo da Guarda, à movimentada porta de armas.

Autêntico corrupio de militares e viaturas a entrar e sair.
Na Metrópole nunca tal serviço tinha feito.
Um pouco atrapalhado mas lá me fui desenrascando. Ao início da tarde apareceu um casal e duas crianças num carro civil para entrar, pedi ao senhor para se identificar, ele mostrou-me o bilhete de identidade, onde se via alguém fardado com uma boina como usavam os sargentos e oficiais, quando vestiam aquela farda cinzenta… não cheguei a ler as informações que constavam no cartão, imediatamente fiquei com a ideia que era um sargento, pessoa que aparentava ter aí quarenta anos, bati-lhe a pala e mandei-o entrar.

Só depois comecei a pensar no disparate que tinha feito, seria mesmo militar? Seria polícia… Quem era não cheguei a saber, mas ninguém me exigiu qualquer explicação, tudo correu bem.
Já durante a noite, o furriel que estava de serviço chamou-me para ir com ele fazer a ronda, a arma que me tinham distribuído naquele dia era uma pistola com o carregador quase do tamanho do cano, a coronha, ou lá o que era aquilo era uma verguinha dobrada, eu nunca tinha pegado em tal coisa. Estava ali um militar bem preparado se tivesse que a utilizar, mas tal não foi necessário, tudo correu bem, depois de passarmos por dois postos de sentinela, o furriel disse-me que não era preciso continuar a ronda e voltamos para a porta de armas.

Porte de Armas dos Adidos
Foto: Rumo a Fulacunda, com a devida vénia

Se no início de setenta e dois a guerra ainda era “fora” de Bissau, já não era bem assim no início de setenta e quatro, quando a nossa companhia já se encontrava na cidade. O rebentamento de um engenho explosivo nas casas de banho do Quartel-General e um outro que rebentou no Café Ronda, onde fui algumas vezes.
Certa noite no Pilão houve tiroteio durante algumas horas, ao ponto da nossa companhia ter sido mobilizada com todo o pessoal disponível nas viaturas pronto a sair. Cerca da uma hora da noite a “festa" acabou e o nosso pessoal desmobilizou.

A insegurança e o medo teimavam em não nos deixar. Foi com esse ambiente que vivemos o resto da comissão em Bissau, onde foram vários os serviços que a nossa companhia teve de fazer: Guarda ao Palácio do Governo (à data o general Bettencourt Rodrigues era o Governador), patrulhamento apeado em grupos de três, de noite, nos arredores da cidade, serviço ao cais quando chegava algum barco da Metrópole, uma coluna a Farim, (o único serviço que os nossos condutores fizeram de condução durante o tempo que estivemos em Bissau), serviço no paiol, guarda aos depósitos de onde era feito o abastecimento de água, serviço ao arame que circundava alguns sítios da cidade, onde tivemos uma baixa por acidente, o furriel Trindade, etc.

Só os criptos e um ou dois elementos da secretaria continuavam o serviço normal, o resto do pessoal passou a fazer os mesmos serviços.
A nossa companhia, depois de vir de Cobumba, teve como prémio fazer todos estes serviços e, dois ou três dias antes de regressarmos à Metrópole ainda fomos escalados para fazer mais uma coluna a Farim. Depois de termos a coluna preparada para sair, onde iam todos os condutores que tivessem viatura, por volta da meia-noite fomos informados que afinal tínhamos sido dispensados. 

Certo dia calhou-me estar de Cabo da Guarda à entrada do paiol, onde existiam umas pequenas instalações para nos recolhermos quando não estávamos de serviço. Para além de um telefone interno havia também uma lista com os nomes das pessoas que estavam autorizadas a entrar.
A certa altura chega à entrada um jipe da PM com um furriel e três soldados, o furriel sai em passo acelerado e diz-me que ia falar com o furriel que estava de serviço no paiol. Mandei-o parar e perguntei-lhe se o nome dele contava da lista das pessoas que podiam entrar, disse-me que não.
- Então não entra sem eu falar com o furriel.
- Mas é costume eu entrar.
- Pois, mas hoje não entra.

Enquanto não recebi ordens para deixar entrar, o camarada da PM, visivelmente contrariado, esperou à porta.
Não sei se seria consequência de quase vinte e seis meses de Guiné ou por recordar ainda a situação que vivera há cerca dois anos, quando nos Adidos deixei entrar alguém só porque supus ser um sargento, ou então se foi mesmo por ser da PM.

Não tinha nada contra a PM, de que fazia parte um vizinho e meu amigo.
Numa das vezes que vim de férias à Metrópole andei duas horas no jipe com eles em patrulha, quem me visse no meio daquele pessoal, talvez pensasse que tinha sido apanhado a infringir as regras militares, mas não, andava a passear.

Alguns, talvez por desconhecerem o que era de facto viver a guerra no mato, tinham atitudes que os homens chegados do interior não apreciavam mesmo nada. Mas era também a missão que alguém lhes exigia, ainda que alguma vaidade por vezes os tornasse pessoas pouco recomendáveis.
Mas nem todos eram assim…

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12606: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (7): Estórias de Mansambo onde a guerra foi outra

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