segunda-feira, 16 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13296: Notas de leitura (601): O Estado-Maior do Exército apresenta a Guiné, em 1969 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2013:

Queridos amigos,
Durante uma escavação na Feira da Ladra encontrei esta brochura que tinha o grau de “reservado”, pode admitir-se que teria como destinatário certos níveis do oficialato. Quem a elaborou, teve acesso a dados fidedignos, romanceou com certa dose de caricatura ou, talvez, para intimidar. Há para ali inverdades que assombram, fala-se em extorsão de arroz em toda a Guiné mas marca-se um completo silêncio sobre a existência das bases do PAIGC e da sua população apoiante, em 1969 ainda se vendia o receituário que os guerrilheiros do PAIGC batiam e fugiam, não tinham qualquer controlo sobre o território.

Um abraço do
Mário


O Estado-Maior do Exército apresenta a Guiné, em 1969

Beja Santos

Queixei-me várias vezes que fui para a Guiné, em 1968, sem me ter sido disponibilizado qualquer informação sobre o teatro de operações. Ali chegado, nenhuma documentação me foi entregue, aprendi de ouvido, de ver mapas, a palmilhar, como todos escutei relatos, muitos deles de carácter fantasioso. Acontece que o SPEME (Serviço de Publicações do Estado-Maior do Exército) elaborava brochuras não sei para que destinatário apresentando um cenário com vários porquês sobre o conflito. Na brochura que acabo de adquirir, pode ler-se como explicação, datada de agosto de 1969: “Para podermos enfrentar o inimigo, é necessário conhecê-lo. E para isso não basta saber o que ele é atualmente. É preciso remontar ao início dos acontecimentos e recordar as suas causas, as primeiras manifestações, a evolução que se verificou, a doutrina adotada, a ideologia em que se filiou a ação subversiva, e os objetivos que ela pretende alcançar. É essa a finalidade deste trabalho: conhecer o problema da Guiné portuguesa para mais conscientemente o podermos enfrentar”.

A brochura arranca com os partidos políticos, e de imediato surge uma inverdade: “Os movimentos subversivos da Guiné portuguesa datam de 1952, ano em que foi criado na clandestinidade, por Amílcar Lopes Cabral, um Movimento para a Independência da Guiné”. Como é sabido, em finais de 1952, Cabral desembarca em Bissau para trabalhar, nunca pertenceu ao MING, os estudiosos mantêm-se céticos quanto ao MING. Sabe-se que Cabral quis fazer aprovar os estatutos de uma associação, que foram indeferidos. Não se lhe conhece qualquer atividade partidária, só participação em conciliábulos. Refere-se a seguir os acontecimentos que marcaram a independência da República da Guiné e do Senegal e com esses acontecimentos influíram na formação de partidos políticos. A relação enunciada é correta, incluindo o facto que a maioria destes movimentos de caráter independentista apostava numa Guiné para os guineenses. Outra inverdade é a tentativa de assassinato de Amílcar Cabral em 1957 em Koundara (República da Guiné), nessa altura Cabral trabalhava em Angola, nunca tinha ido a estas paragens africanas. Mas em 1967 houve de facto uma tentativa de assassinato na região de Madina do Boé. É também verdade que fracassaram todas as tentativas de união da FLING com o PAIGC.

Refere a brochura que a subversão se iniciou em 1956 entre as etnias Nalu e Balanta e, em 1958, registaram-se greves em Bafatá. Não houve subversão nenhuma neste tempo. Segue-se uma deturpação: Cabral seria um cabo-verdiano de mãe Manjaca, Cabral nasceu em Bafatá em 1924 e era filho de um casal de cabo-verdianos. Os elementos seguintes são fidedignos: Cabral transfere-se para Conacri em 1960, as sabotagens do PAIGC desencadeiam-se no Sul da Guiné na noite de 30 de junho para 1 de julho e o primeiro ataque a um aquartelamento foi em janeiro de 1963. É igualmente verdade que o PAIGC criou as FARP em 1964. Apresenta-se um dado interessante referente à subversão na região do Gabu, em 1965: “O assalto aos Fulas iniciou com ações no Boé, vindas da República da Guiné, ao mesmo tempo que o Nordeste era atacado por grupos vindos do Senegal. Béli e Madina do Boé, Pirada, Canquelifá e Copá são exemplos de povoações violentamente atacadas por fortes grupos armados infiltrados dos territórios vizinhos”.


O SPEME explica a diferença entre o PAIGC e os outros movimentos de libertação: o PAIGC fez uma preparação inicial dos espíritos, aliciou os mais evoluídos da área de Bissau, passando em seguida a várias etnias que se mostravam recetivas à subversão. Somente depois de ter conseguido a adesão de vários povos e de os ter preparado psicologicamente, se lançou na luta armada.

O PAIGC é apresentado como marxista-leninista, tem os seus campos de treino na República da Guiné, os armamentos que lhe são facultados chegam através dos portos de Conacri e Boké. E revelam-se as principais instalações na Guiné e no Senegal em que se apoia o PAIGC. Segue-se uma prosa delirante: “Os apoios dados ao PAIGC têm como é óbvio uma contrapartida. Assim, a República da Guiné pretende a península de Cacine; a China, instalação de chineses para exploração de petróleo e a instalação de uma base militar; a Rússia, exploração de minérios, facilidades para pesca na Guiné e em Cabo Verde e ainda a instalação de bases militares em ambas as Províncias, o que lhe permitia o controlo do Atlântico Sul”. É conhecido por todos que em 1969 o conflito sino-soviético atingira o não-retorno, era inconcebível que chineses e soviéticos estivessem a partilhar recursos no mesmo espaço.

É correta a apresentação feita sobre a organização e a atividade militar do PAIGC, está ali todo o armamento usado. Mas dá-se também explicações cómicas sobre os recursos alimentares do PAIGC: “A alimentação é obtida em grande parte na Província, por extorsão, das populações sob duplo controlo ou sob seu controlo, deixando ao agricultor uma parte mínima da colheita. As recolhas são feitas em armazéns do povo nos quais têm de montar guardas para evitar desvios. Os excedentes de arroz, alimento principal, são exportados para a República da Guiné onde parte é consumida pelos elementos do Partido ali instalados e o restante vendido para a obtenção de divisas”.


Segue-se um enquadramento da propaganda do PAIGC: participação de Cabral em conferências, entrevistas e declarações. A mentalização é caracterizadamente comunista, é levada a cabo pelos comissários políticos. E faz-se uma conclusão: “A guerra que o PAIGC nos move é uma guerra dura. No entanto, as tropas portuguesas – metropolitanas ou da própria Província – ocupam todo o território e embora com certas dificuldades em algumas zonas, movimentam-se em todo ele. Em todo o território continuam a existir populações fiéis às autoridades ou juntos dos quartéis ou isoladas, constituídas ou não em autodefesa, conforme as zonas”. E surge a mensagem final: “Muitos dos povos da Guiné compreenderam que as intensões do PAIGC mais não são do que separar a Guiné de Portugal e que dessa separação resultaria a sujeição a estrangeiros, sejam eles russos, chineses ou os países vizinhos mais poderosos. Por terem compreendido estas verdades, milhares de naturais da Guiné colaboram na defesa da Província, estabelecem guardas a quartéis, montam operações contra os terroristas, batem-se com heroísmo e abnegação não só nas unidades de milícia que abundam em toda a Província, como também nas unidades militares”.

Fico a cismar quem seriam os destinatários da brochura, que se visava com este tipo de informações, entremeando o verosímil com o anedótico e o francamente inverídico. Pode mesmo supor-se que o autor tinha boas bases factuais, uma imaginação fácil e provinha da escola em que uma boa mensagem sob a firmeza dos nossos propósitos devia vir acompanhada de uma certa propaganda para o exterior, em que nunca por nunca ser os guerrilheiros tinham poiso assente no interior da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13277: Notas de leitura (600): A africanização na guerra colonial: o caso da Guiné (Mário Beja Santos)

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Curiosa a braçadeira chinesa. Está lá escrito hong wei ping, ou seja,"guardas vermelhos.", esses energúmenos aos milhões que cometeram todo o tipo de crimes durante a famigerada Revolução Cultural chinesa, iniciada em 1966, afinal os amigos dos homens do PAIGC.

Um abraço,

António Graça de Abreu