sexta-feira, 12 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4514: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (12): O embaixador Manuel Amante, com saudades do Geba, fala da onça e do irã-cego

1. Mensagem de Luís Graça com data de 9 de Junho de 2009, enviada a Manuel Amante

Camarada Manuel Amante:
Diz à Carla que fui ao blogue dela recuperar uma pequena preciosidade... Um texto (belíssimo) sobre o Irã-cego... Está incluído num poste, nosso recente, sobre cobras... na Série Fauna & flora... (**) Qualquer dia vou lá recuperar um texto teu (fantástico), sobre os Bijagós, e me deres autorização... É uma pena o blogue da Clara estar agora inactivo...

Mantenhas. Aparece.
Luís Graça
(Bambadinca, Xime, Mato Cão, Ponta Varela, Ponta do Inglês, Enxalé, Porto Gole, Finete, Missirá, Fá, Santa Helena, Mero... CCAÇ 12, 1969/71...
Estive lá em Março de 2008, mas infelizmente não matei saudades do Rio Geba, do trajecto Bissau-Xime-Bambadinca, este último agora muito assoreado...).


2. Mensagem de Manuel Amante (*), em Macau, com data de 9 de Junho de 2009:

Caro Luís,
Acredita que é raro o dia que não visito a Tabanca Grande. E sempre que posso faço a sua divulgação junto de pessoas amigas.
O nosso blogue tornou-se referência para alguns estudiosos e interessados em saber o que foi a guerra na Guiné-Bissau.

Talvez uma tentativa de se procurar saber o porquê de tanta violência que assola este país que nos é muito caro e do qual nos lembramos com carinho e alguma nostalgia todos os dias. Custa-nos a todos entender esta situação absurda e de como a eliminação voraz de oponentes acabou por fazer doutrina.

Estou em Macau faz um ano. Represento os Países de Língua Portuguesa, enquanto Secretário Geral Adjunto, no Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (http://www.blogger.com/www.forumchinaplp.org.mo).

Passei os primeiros anos da minha infância, no sul da Guiné, perto da estrada entre Empada e Dersalame, mais propriamente em Binhal, onde havia uma única casa comercial, que era do meu Pai. O trecho escrito pela minha filha, curiosa pelas coisas da terra que lhe viu nascer, foram factos aflorados pela minha mãe, desterrada, por força do casamento, ainda jovem, nesse lugar ermo e cheio de animais próprios da fauna do sul da Guiné. Era normal escutar e sentir, após o escurecer, as onças e lobos em certas noites perto da varanda. Tudo leva a crer que o animal que abocanhou de um salto, vindo da mata, o meu cão que estava comigo na varanda da casa, no crespúsculo, terá sido uma das onças que andavam nos arredores. Até hoje pergunto porque terá escolhido o cão e não a mim que era do mesmo tamanho. Ainda conservo ténues imagens de Binhal, do longo acesso, ladeado de árvores, que dava para a estrada, da tabanca distante a cerca de um quilómetro, das grandes árvores, dos tambores desta em noites de festa, dos animais domésticos, de obrigatoriamente se trancar as portas e janelas com o escuro de breu.

Na realidade a minha Mãe diz que vivemos todo o tempo em Binhal com uma grande jibóia, possivelmente albina, pelas discrições, no tecto da casa. Nesta não havia tecto falso pelo que se viam as estruturas de madeira das traves e as telhas. Mas devia ser uma jibóia discreta porque raras vezes se via ou se fazia sentir. Sempre se sabendo que estava lá. Era voz corrente dos empregados que era o irã cego que guardava os moradores da casa. No dia em que nos abandonou o homem grande, de porte sábio, alvitrou de que era altura de irmos embora porque algo de muito sério e triste iria acontecer naquela região que a tornaria deserta e desesperaria os seus habitantes. A família transferiu-se para Empada a nove quilómetros e algum tempo depois, por força das circuntâncias, para Bissau. A luta de libertação tinha-se iniciado e essa região foi onde ela teve um arremedo de grande intensidade. Onde a mobilização das populações foi a maior.

A Carla deixou de poder manter o blogue porque não lhe restava tempo entre o trabalho, estudos e vida familiar. Espero que após o Curso possa retomar o que deixou.

Estive há dois anos e meio em Bissau. Mas não deu para ir aos lugares que tanto queria. Acabei por ficar dois dias com o meu Primo Manuel Simões, em Jugudul. O assoreamento do Geba a partir de Bambadinca era inevitável. A intensa circulação das lanchas pelo Geba acima sempre ia ajudando a desassorear essa via de abastecimento e evacuação de produtos agrícolas e de gado. A circulação de passageiros era considerável. Quase toda a movimentação de população civil e militar se fazia por Bambadinca ou então pelo Xime depois da abertura da estrada alcatroada. A duração era de 5 a 7 horas, dependendo da hora em que se partia por força da maré ou aproveitando-se dela ou ainda de alguma paragem no Xime. Os Bijágos eram um lugar que conhecia bem desde miúdo e navegava por lá sem problemas de maior. Navegação, dependendo das marés e dos canais e do mar às vezes bem encapelado. Mas, mais tarde, gostava mesmo era de navegar no Geba, apesar de alguns sustos e percalços de uma avaria à noite, sem máquina, em pleno Mato Cão em que fomos bordejando ora uma margem ora outra levados pela corrente. Numa outra vez, ainda em Mato Cão, à tarde, um incêndio na casa das máquinas.

Estarei em Portugal a partir de 15 de Junho. Espero poder estar convosco desta vez.

Aceita um forte abraço
Manuel Amante


3. Comentário de CV:

Caro Manuel Amante, uma vez que estará já em Portugal, não quer participar no nosso IV Encontro em Ortigosa? Veja pormenores no Poste > Guiné 63/74 - P4482: O Nosso IV Encontro Nacional, Ortigosa, Monte Real, 20 de Junho de 2009 (6): As inscrições terminam a 15 de Junho (A Organização).

Se não puder estar presente no Almoço, apareça pela tarde e passará uns momentos de convívio connosco até ao fim do dia. Teremos muito gosto na sua presença.
__________

Notas dos Editores:

(*) No poste com data de 27 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima..., podemos ler esta mensagem de Manuel Amante:
Caro Luís Graça,
Há muitos meses que venho acessando, diariamente, por vezes mais do que uma vez, o que se tornou recanto de milhares de militares que passaram pelo TO da Guiné.

Também fui militar (73/74), de recrutamento local, no CIM de
Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau.

No momento de ser incorporado, tal como muitos da minha geração, estava relativamente familiarizado com as questões de foro castrenses. Não se podia viver na Guiné e ficar alheio ao que se passava e à inutilidade que essa guerra significava em termos de vidas humanas.


- Nota de Luís Graça, no mesmo poste, sobre o Embaixador Manuel Amante:

Entre outros cargos e funções, foi conselheiro do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Cabo Verde (2005), embaixador de Cabo Verde no Brasil (1992/2002) e em Angola (1995/99), observador internacional da OUA no processo de democratização da África do Sul (1993/94), diplomata em Moscovo, colocado na embaixada de Cabo Verde (1986/90) bem como na missão permanente de Cabo Verde nas Nações Unidas, em Nova Iorque... Enfim, um invejável currículo para quem, tendo nascido na Guiné, ainda em 1973/74 estava nas fileiras do Exército Português, mas já era, muito provavelmente, simpatizante ou militante do PAIGC... (LG)

(**) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4484: Fauna & flora (20): Histórias de grandes serpentes: da jibóia de 7 metros (Paulo Raposo) ao irã-cego (Clara Amante)

Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2009 >
Guiné 63/74 - P4483: O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande (11): Macau: A. Graça Abreu com José Martins, ex-Cap CCAÇ 16 (Bachile, 1971)

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