sexta-feira, 12 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21997: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março de 2021:

Queridos amigos,
O homem põe e Deus dispõe, vai estar mau tempo nas férias da Páscoa, ir para as praias do Mar do Norte com aquela borrasca não é boa sina, o melhor será ficarem-se pelos passeios da proximidade, e Annette dá sugestões, conhecedora dos gostos e preferências do seu amado português. Não lhe disse, mas está a preparar um Domingo de Páscoa muito especial, virão os filhos e respetivas companhias, uma irmã, filha de sangue dos seus pais adotivos, Angelique Roubaix, está ansiosa por conhecer Paulo. Annette sofre com o que está a escrever na comissão da Guiné, muito estremeceu com toda aquela história no dia 15 de outubro de 1969, que culminou numa pequena desgraça, houve negligência e a fatura é muito pesada. Os problemas de visão são preocupantes, o médico e querido amigo David Payne manda-o ao hospital militar, em Bissau. Ainda ninguém sabe, mas vai nascer uma grande amizade com esse oftalmologista micaelense, José Luís Bettencourt Botelho de Melo, recentemente falecido.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (43): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon inoubliable Paulo, escrevo-te para te dar conta de que temos as férias na zona costeira e na ilha dos Países Baixos altamente comprometidas. Segundo a meteorologia, teremos borrasca, neblina, pesados aguaceiros quinta e sexta-feira. Sábado e domingo o tempo estará um pouco cinzento, temperatura amena, a chuva regressará domingo à noite e não dará descanso à Bélgica até tu partires. Na circunstância, acho que podíamos aproveitar a quinta-feira para visitarmos duas exposições, tu disseste que gostarias muito de haver os simbolistas belgas e franceses no Museu de Ixelles, podíamos aproveitar para ir ao Museu da Banda-Desenhada, está lá igualmente uma exposição que tem a ver com a banda-desenhada belga no período que precedeu a II Guerra Mundial. Como sempre faço, preparo um dossiê, e tu defines a ementa…

Para sábado, em que há uma certa movimentação cultural e nem todos os museus fecham, tudo depende da tua vontade de espreitarmos o mercado da Praça do Jeu de Balle, e haverá uma visita-guiada ao circuito da Muralha Medieval de Bruxelas, é evidente que tu conheces de vista os principais vestígios mas lembrei-me de que apreciarias os comentários de um perito, aquelas torres que restam, até mesmo as construções da 2ª muralha do século XIV temos vestígios, poucos, em Bruxelas, no sábado também se pode visitar a Porte de Hal. O circuito começa na Torre Anneessens, percorre várias muralhas, há depois a Torre Negra e esta pequena viagem termina na Torre do Palácio das Belas-Artes. Ou seja, podíamos começar de manhã cedo por ir ao Petit Sablon e fazer depois o circuito da muralha medieval. Descobri na Rue Montagne aux Herbes Potagères um pequeno restaurante que serve aos sábados a sopa tradicional flamenga, galinhola e tem uma receita especial de mexilhões, com estragão. Achas bem? Na edição do Mad (suplemento do Le Soir, que tu conheces bem) refere que sábado à tarde há uma digressão a Ixelles, também com guia para visitar os edifícios Arte-Nova, que tu tanto aprecias. Esqueci-me de te dizer que no Parque do Cinquentenário decorre uma exposição intitulada “Arte-Nova e Design 1830-1958”, é outra possibilidade. Tu conheces muito bem o Museu Horta, estará aberto no sábado, mas eu lembrei-me de certas casas como a Maison Cauchie ou o Hôtel Hannon. Não te rias, disseste-me que aprecias imenso os cemitérios ingleses pela sua envolvência serena, tens um cemitério cheio de Arte-Nova, o da comuna de Uccle, o cemitério do Dieweg, vê se te interessa. Se fossemos ao Parque do Cinquentenário, podíamos voltar ao Pavilhão das Paixões Humanas e ver a escultura de Jeff Lambeaux, pessoalmente gosto muito, aprecio aquela sensualidade sobre o pretexto da felicidade e dos pecados humanos. Tu escolhes.

Li todos os documentos que me mandaste. Já estamos em outubro de 1969. Ainda não te refizeste da dor que foi a perda do teu colaborador Luís Casanova, o médico de Bambadinca avisou-me de que será uma recuperação lenta. É admirável o aerograma que te enviou o comandante Teixeira da Mota, de Bissau, tudo a propósito de uma brochura que te ofereceu quando lá estiveste e tu me enviaste com a dedicatória dele, a obra intitula-se A Primeira Visita de um Governador das Ilhas de Cabo Verde à Guiné, António Velho Tinoco, 1575. Que bonito texto que ele te enviou:
“António Velho Tinoco foi o corregedor que condenou à morte o piloto açoriano trânsfuga Bartolomeu Baião, o qual lhe foi levado preso para a Ilha de Santiago por um lançado da Guiné. Sobre o Baião tenho reunidas dezenas de documentos em Lisboa, Madrid e Londres e que permitem reconstituir uma vida aventurosa, tipo capa e espada, de um piloto português – um entre muitos – que se valeu da sua arte náutica para roubar navios e intrujar ingleses e espanhóis (fugiu de uma prisão de Sevilha pelo telhado e depois andou a ludibriar em Londres o embaixador de Espanha). Um colaborador em Sevilha acaba de me enviar mais uma boa dose de documentos sobre o mesmo, catados no Arquivo das Índias, e onde se explica como, quando comandava uma frota de corsários ingleses que andava à caça de navios ingleses, foi apanhado pelo rei da ilha de Jeta, que depois o entregou ao lançado que levou à justiça de António Velho Tinoco”.
Obviamente que li esta viagem de Tinoco, é um texto belíssimo.

Arrumei já o episódio da destruição das embarcações do rio Geba e achei inacreditável aquele depoimento do teu amigo Queta Baldé sobre as cumplicidades familiares entre gente que estava no PAIGC e gente que se pôs do lado dos Portugueses. Apercebi-me que este período chamado da época das chuvas provoca imensa doença, tu falas de um soldado milícia, de nome Samba Embaló, vitimado pela malária, reduzido a pele e osso, houve que pedir uma evacuação de helicóptero, tal o depauperamento em que se encontrava. Falas numa folha à parte dos preparativos da presumível partida para Bambadinca, afinal tudo me parece complicado, com conferências de material, as limpezas, os chamados abates de coisas deterioradas, pacientemente tudo se foi arranjando para o ato da transferência.

E brutalmente segue-se a descrição da mina anticarro num sítio chamado Canturé, tu alegas que nesse período o cansaço era imenso, tinhas baixado as guardas, que sofrias muito pela falta de efetivos subtraídos para outras missões, foi um dia azafamado, foste buscar arroz a uma população qualquer, atrasaste-te, o próprio condutor pediu para ficar em Finete, que não, que tinhas no dia seguinte imenso que fazer. Não sei como consegues fazer este documento que tanto me arrepiou, o teu amigo Cherno Suane vai no guincho da viatura, a caixa desse Unimog 404 vai carregada de bidons e sacos de arroz, lá no alto o bazuqueiro Mamadu Djau. E tu explicas-me como viveste esse anoitecer, o fragor da explosão, os fios elétricos a morrerem, os urros do condutor, a tua saída em voo, felizmente com a espingarda na mão, uma emboscada que durou pouco, tu explicas que a noite não é boa companheira para ninguém, todo aquele fogo iria provocar matança entre companheiros. E como é possível que tu te sentisses agradecido só porque julgavas ter perdido o olho direito enquanto vais até Finete pedir auxílio, além de um moribundo há vários feridos, Paulo, Paulo adorado, lacrimejei enquanto via a fotografia e a interpretação que tu fizeste. Foste escrever tudo sobre a tua ida a Bambadinca e os apoios que tiveste, as dores físicas e as dores morais. Como os dias seguintes não foram fáceis, o olho a arder, a face queimada, o joelho direito inchadíssimo. Paro aqui, foi um dia exaustivo, e quanto me custa reproduzir-te o que escrevi e como me rendo ao teu argumento de que a misericórdia de Deus te enlaçou para a vida naquele que até à altura foi o momento mais dramático por que passaras. O que me alivia é que tu chegas amanhã à noite, haja trovoadas, céus plúmbeos, repentinas neblinas, chega a luz que me dá força, um amor chamado presente e futuro, impante pela confiança que me traz, por todos os prazeres que uma mulher sonha de ter a seu lado o perfeito e fiel companheiro. Bien à toi, Annette
A Torre Anneessens, restos da muralha medieval de Bruxelas
A Torre Negra, Bruxelas
Maison Ciamberlani Hankar, Rue Defacqz, Bruxelles
Hotel Hannon, Saint-Gilles, Bruxelles
Em pleno sofrimento, escultura no Cemitério de Dieweg, Uccle, Bruxelas
Pavilhão das Paixões Humanas, de Victor Horta, Parque do Cinquentenário
Emboscada de Canturé, Humberto Reis olha surpreso para os destroços: “Como é que ele saiu vivo disto?”
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21972: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (42): A funda que arremessa para o fundo da memória

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