quarta-feira, 10 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21990: Historiografia da presença portuguesa em África (255): Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura em "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África"; 1814 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
 
Nunca ouvira falar em António de Saldanha da Gama e li num só ápice este documento que terá sido produzido à volta de 1814 e editado em Paris em 1839. Os documentos foram apresentados aos eleitores do Círculo Eleitoral de Viana do Minho pelo Ajudante de Ordens de Saldanha da Gama, o Visconde da Carreira. 

No seu discurso preliminar, o antigo Governador do Reino de Angola procura sacudir quem o leia, dizendo coisas como esta:
 
"Qual será o português que não se envergonha, que não sinta uma nobre indignação, à vista da nossa inferioridade, da nossa nulidade, dos impropérios ignominiosos, do desprezo desdenhoso com que somos tratados pelas nações da Europa! Cuidemos sem demora de nos reabilitar, de sair de tão abjeto estado e de recuperar no grémio das nações o posto e consideração que nos competem".

E lança-se exultante num exórdio à industrialização, à liberdade de comércio. Saldanha da Gama estaria em campanha eleitoral. É admissível que tenha dado à estampa a sua Memória sobre as colónias de Portugal, tenho extrema dificuldade em vê-lo, em reuniões e comícios, a fazer apologia do comércio negreiro.
 
Sobre essa surpresa, completamente inusitada, falaremos a seguir.

Um abraço do
Mário




Libelo de António de Saldanha da Gama contra a abolição da escravatura (1)

Mário Beja Santos

António Saldanha da Gama não era um qualquer um: Conde de Porto Santo, Par do Reino, Grã-Cruz de várias Ordens, Chefe da Esquadra da Armada Real, Ministro Plenipotenciário e Embaixador em diversas Cortes. Foi ainda Governador e Capitão-General do Reino de Angola. 

Em 1839, consolidada a monarquia constitucional, Saldanha da Gama publica textos seus datados de 1814, "Memória sobre as colónias de Portugal situadas na Costa Ocidental de África", precedida de um discurso preliminar. É um documento que provocará um estado de choque junto daqueles que andam nos últimos tempos a adoçar a natureza do esclavagismo à portuguesa. No seu discurso preliminar, esse Saldanha da Gama se anda a ocupar sobre a importância da industrialização, contudo abre com um discurso acabrunhante:

“As colónias que ainda restam a Portugal dos velhos continentes e mares de África e Ásia são monumentos da nossa antiga glória, portentos espantosos da gigantesca força, diligência e perseverança da antiga gente portuguesa, que acabrunham a nossa pequenez e insultam a atual indolência”.
 
Deplora algumas fundações que se estavam a fazer em Angola, alerta para a necessidade de ter um bom governo, governo estável e não em perpétuo tirocínio. Exalta civilizações do passado e alerta para um novo quadro de desenvolvimento:

“A experiência mostra que as nações que se limitam a poucas espécies de trabalho de produção, ainda quando são fornecidas pela fertilidade e riqueza do seu território, permanecem sempre pobres, estacionárias e privadas de grande número dos confortos da civilização moderna”.
 
Exemplifica com Inglaterra e a sua prosperidade, o seu comércio interno e externo e lembra que as indústrias tinham passado a ser a principal fonte das riquezas. Para haver indústrias são indispensáveis as vias de escoamento, rios, canais, estradas, comunicações céleres, e faz a apologia das instituições constitucionais, dá exemplo do que ele está a ver em França, mas o seu azimute parece ser sempre em Inglaterra. E deste discurso preliminar entramos propriamente no texto da memória sobre as colónias de Portugal.

Parecendo irremediavelmente perdido o tráfico negreiro, haverá que melhorar a vida das colónias portuguesas na África Ocidental, são elas: Cabo Verde, Bissau e Cacheu, S. Tomé e Príncipe e Angola e Benguela. É muito útil o que ele diz sobre Cabo Verde, importa não esquecer que a desafetação da Guiné será cerca de 60 anos depois. A colheita e a venda da urzela parecia ser a principal riqueza. 

“A Fazenda Real compra toda a urzela por um preço fixo, e desta compra são encarregados os capitães-mor dos distritos. Não é fácil descrever as vexações que estes exercem naquele ato, negando-se a paga em dinheiro e fazendo-a em géneros, em que os miseráveis cultivadores perdem às vezes 100%. Seria sumamente útil isentar a urzela do estanco Real, e permitir a sua livre venda, impondo-lhe um módico tributo de exportação”

Mas outros ramos viam animar a economia das ilhas, segundo Saldanha da Gama, enuncia o amendoim, o gergelim, a palmeira de dendém, exalta a importância de pescarias e salgas de pescado. Conclui esta apresentação referindo uma manufatura de tecidos grosseiros de algodão que é artigo de comércio para os presídios de Bissau e Cacheu, conviria aperfeiçoar tal manufatura.
 
Chegou agora o momento de falar de Bissau e Cacheu, cita-se integralmente o que escreve:

“Abundam nestas colónias artigos de grande importância, que poderiam fazer a riqueza delas, como são muitas gomas, resinas, marfim, madeiras, etc. A goma arábica se encontra nestes países, e bem conhecido é o seu préstimo e o seu valor. Das outras gomas e resinas seria necessário averiguar o préstimo e fazê-las depois conhecidas na Europa.

Há aqui muitas terras próprias para o cultivo de arroz, e os habitantes com gosto se dão a esse trabalho. Ora se a América do Norte pôde por muitos anos abastecer a Europa daquele artigo, se o Maranhão, a Baía, etc., ainda hoje o fornecem a Portugal, por que razão o não poderão fazer Bissau e Cacheu, que além de terem as mesmas proporções, estão mais perto de nós? As pescarias também aqui se poderiam promover, tanto para as salgas, como para a extracção do azeite de peixe.

Não falecem aqui os vegetais de que se podem extrair óleos, como o rícino, o amendoim e a palmeira dendém. As madeiras de África são entre nós pouco conhecidas, e a experiência me tem mostrado que se a natureza não dotou abundantemente esta parte do mundo de grandes florestas, concedeu em compensação às árvores pequenas desta terra muita solidez e um delicado colorido que as faz próprias para obras primorosas de marcenaria e de embutido. Deverão portanto examinar-se cuidadosamente as árvores que crescem nestas possessões, para além das suas madeiras se tirarem o conveniente proveito. Creio que não me iludo persuadindo-me que os aromas da Ásia prosperariam facilmente em Bissau e Cacheu, e que a pimenta, hoje cultivada na Baía com tanto proveito, poderia também aclimatar-se nestas terras”.


Discreteia depois sobre S. Tomé e Príncipe, tendo sido Governador no Reino de Angola vai dedicar o essencial da sua memória às riquezas da terra, não esquecendo o carvão de pedra e o marfim. Findo o documento, apensa várias notas, a última serve exatamente para expor o que ele pensa sobre o tráfico da escravatura. Prepare-se o leitor para uma defesa que hoje, pelo menos no campo formal, não tem seguidores, a despeito, como é público e notório, que ainda há escravatura no mundo, e pensa-se que se trata de negócio chorudo.

Ele começa por dizer o seguinte:
 
“Não cremos que haja pessoa alguma dotada da faculdade de discorrer que se persuada que o zelo e pertinácia da Inglaterra para abolir o tráfico da escravatura proviesse simplesmente do amor da humanidade, ou de uma filantropia pura e desinteressada. Entretanto é certo que não foi sem proveito que aquela potência invocou em apoio da sua política as simpatias das almas verdadeiramente virtuosas e sensíveis.

Deslumbrados pelas descrições patéticas e ardilosas dos horrores do tráfico, descrições pelo menos exageradas, e calculadas para encobrir o verdadeiro motivo delas, correram a alistar-se sob as bandeiras da filantropia inglesa grande número de pessoas de boa-fé, que cuidavam fazer grande serviço à humanidade combatendo a favor dos projetos interesseiros, mas arteiramente apregoados como puramente filantrópicos da Grã-Bretanha. Uma simples reflexão bastaria, contudo, para desabusar esta crédula e com passiva falange”
.

Daremos conta do que falta desta litania na próxima oportunidade, sem descurar o contraditório, muito de rigoroso e altamente documentado sobre o tráfico negreiro se tem publicado em muitas línguas, aqui se fará referência a trabalhos portugueses.

(continua)

Tráfico negreiro praticado pelos árabes
Tráfico negreiro no século XIX
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21965: Historiografia da presença portuguesa em África (254): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (3) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

"mas o seu azimute parece ser sempre em Inglaterra".

Imitar os ingleses era de facto o que pretendiam em geral alguns velhos colonialistas portugueses, mesmo o próprio Norton de Matos que conhecia os ingleses da India de Moçambique e de Angola, admirava-os e temia-os.

É que nós, portugueses só conseguiamos colonizar à nossa maneira,comercializando, mercadejando, permutando, acasalando, e na única coisa que os imitámos foi, mas de longe, foi na escravatura para as américas.

Porque na exploração mineira só arranhámos superficialmente, e aí é que era o bom, e nas "pacificações" e questiunculas racistas eles resolveram com o apartheid, e nós só complicavamos até hoje.

Claro que os ingleses só agora tiveram uma "real"ovelha ranhosa.

antonio graca de abreu disse...

Pois é. Entender e analisar estes textos hoje, à luz de ideias do ano 2021, esquecendo deliberadamente os conceitos e modos de estar no mundo que prevaleciam em 1820, há dois séculos atrás.
O Mário Beja Santos sabe.

Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

A Sociedade de Geografia e outra Historiografia têm cada uma nos arquivos que são uma chatice.
Vá que bem podiam ficar-se pelos primeiros por mares nunca dantes navegados, do dar novos mundos ao mundo, de espalhar a civilização cristã (ocidental ainda não estavam pr'aí virados), colonizar à nossa maneira, comercializando, acasalando, e prontus foi assim que ensinaram à rapaziada da nossa idade.
Mas, a rapaziada que esteve na guerra da Guiné ficou com dúvidas quanto à civilização cristã, quanto ao comercializar e quanto ao acasalamento, bastava ter estado vinte meses na zona leste p.ex. e verificava que civilização cristã ka tem, comercialização ka tem, acasalamento ka tem, e passados mais de 450 anos reparou haver duas oui três igrejas, meia dúzia de comerciantes e acasalamentos só reparou nalguns cabo-verdianos mulatos.
E vem o Beja Santos com estas crónicas dos arquivos de séculos atrás, séculos não diria, nos dar conhecimento do que era proibido saber por causa das criancinhas.
Calhando, e como diria o Vinhal, ainda há mais.
Venham mais que já somos todos crescidotes.

Abracelos (convém não desconfinar)
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, essa do negociando e acasalando foi na realidade uma realidade que não chegaste a conhecer e nem te ensinaram na escola, nem a ti nem a mim que sou um pouco mais velho que tu.

Tirando o velho comerciante do mato, que tambem se chamava "FUNANTE", e que desapareceu como inicio das guerras dos anos 60 não só das colonias portuguesas, mas que todos os outros não conseguiram evitar, muito ou pouco, esses portugueses funantes (vai ao dicionário que é uma palavra velha e relha que talvez nunca tenhas descortinado)chegou e infiltrou-se em lugares onde nem chefes de posto, nem tropas, nem missionários tinham posto os pés.

Ainda conheci alguns em plena acção em Angola, que por fim o próprio governo de Angola foi proibindo, pois que fugia a qualquer controle e impostos.

Já actuavam clandestinamente, e para eles não havia fronteiras, e essa actividade, só acabou praticamente com a guerra das independências.

Vê bem a palavra Funante e compreenderás melhor o que foi a colonização portuguesa.

Valdemar Silva disse...

Rosinha, referi-me concretamente à Guiné e conheci muitas tabancas na zona leste. Aliás a Historiografia aqui apresentada é relacionada com a Guiné.
Sobre Angola não sei quase nada, a não ser o que aprendemos na escola e provavelmente o acasalamento foi mais evidente e até apareceu o 'os portugueses inventaram o mulato'.
Sobre o funante, interessante o que nós aprendemos aqui no blogue, já tinha ouvido falar. O meu compadre, já falecido, padrinho do meu filho esteve em Angola vários anos. Tivemos belas pernoitadas e acaloradas conversas sobre Angola ele e eu sobre a Guiné: não havia comparação possível.
Ele teve um restaurante próximo da fronteira com o Congo e era famoso o dia do 'Bife à Dongo (ou Dengo)' e recordo-me dele dizer que apareciam funantes de umas centenas de quilómetros.
Rosinha, estamos a falar sobre a colonização da Guiné, sobre o que vimos, aprendemos e sobre o que lemos, não fora estes testemunhos apresentados por Beja Santos ficava-mos apenas com ideias dos extraordinários feitos os portugueses.

Abraço
Valdemar Queiroz