sábado, 13 de março de 2021

Guiné 61/74 - P22001: Os nossos seres, saberes e lazeres (440): Voltei a Abrantes e nem tudo está como dantes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Tomem este conjunto de imagens e apreciações como um aperitivo, uma viagem de reconhecimento, há muito congeminada e desejada e por razões espúrias adiada. Feita em tempo de pandemia, com a generalidade dos edifícios fechados, levava-se bússola e houve que aproveitar entre o castelo-fortaleza, o centro histórico e o Tejo o tempo outonal com o seu anoitecer precoce. Tomaram-se notas, o regresso é muito mais do que uma promessa, há aqui património edificado e natural a chamar a nossa atenção. Ir-se-á corresponder ao apelo.

Um abraço do
Mário


Voltei a Abrantes e nem tudo está como dantes

Mário Beja Santos

Registo com mágoa que passara por Abrantes duas vezes, a chamada visita de médico, sair de um transporte, alimentar o estômago, perorar e responder a perguntas, voltar ao transporte e regressar a casa, guardara-se a recordação de uma cidade com um derramado centro histórico entre o castelo-fortaleza e as fímbrias do rio Tejo, que aqui corre ondulante e em largueza. Esta é, pois, a primeira visita com o título de preparatória, pego em literatura institucional, obra da Câmara Municipal de Abrantes de 2009, arruma-se o carro junto à Igreja de S. Vicente e adverte-se o leitor que Abrantes tem história remota e desenvolveu-se na nossa pátria graças à política de defesa territorial da linha do Tejo, muito provavelmente em meados do século XII, é seguro que Afonso Henriques doou o castelo à Ordem de Santiago da Espada. Há muito para ver: a arquitetura militar é relevante, lá nos altos da fortaleza subsistem elementos do Palácio dos Governadores, há a imponência dos baluartes, dentro deste espaço defensivo incrustou-se a Igreja de Santa Maria do Castelo, Panteão dos Almeidas e daqui passamos para a arquitetura religiosa. É princípio da tarde, estamos em tempos de pandemia, não há portas abertas para percorrer o interior. S. Vicente vem do século XIII, não faltam remodelações, as do período filipino deixaram marcas indeléveis, só tem uma torre sineira. Contempla-se com imenso prazer a fachada onde se destaca um interessante pórtico-retábulo. Lê-se no seu interior que está marcado pelo barroco, tem azulejaria de meados de Seiscentos. Deliciei-me a percorrer as estruturas entre os arcobotantes, a igreja é contrafortada e mesmo assim não fica com aquele ar de templo acastelado.
Antes de me lançar no centro histórico, não resisti a contemplar o Cineteatro S. Pedro, edifício de meados do século XX, modernista, é uma bela arquitetura, vê-se sem dificuldade que é merecedor de restauro e que lhe deem bom uso. Num passeio a Castelo Branco dei com a transformação do respetivo cineteatro numa sala pluriusos, desde fados e guitarradas, passando pela música de câmara e sessões de cineclube, a agenda é farta, oxalá que depois de o vírus se ir embora embelezem este belo edifício e o tornem um agradável espaço cultural, gostei também muito dos elementos escultóricos da parede lateral, também a pedir limpeza.
Dói um tanto ver estas fachadas escalavradas na velha Abrantes que irei percorrer até ao mercado, gosto do nome das ruas, e sinto-me enternecido por muitos se terem esquecido de uma abrantina dileta, Maria de Lurdes Pintasilgo, de quem tive o privilégio de ser amigo, acompanhei-a, entusiasmado, na sua jornada presidencial, o seu pensamento continua no topo da contemporaneidade, lê-la agora, nestes tempos de maior corrosão de caráter, de campanhas de ódio, de falsificação de notícias, de patrões dos média pretenderem manter-nos aterrorizados, é uma festa para o espírito rever as suas predições e o seu feminismo retemperado, o seu permanente convite ao aprofundamento da democracia na malha dos cidadãos ativos. Ainda bem, estimada Lurdes, que o teu berço não te esqueceu.
Lá vou a caminho do mercado, e a salivar numa paragem para comer uma tigelada e levar um pouco de palha de Abrantes. Regresso ao livro que despoletou esta visita: “Em Abrantes, as construções são em alvenaria de pedra, sobretudo a calcária, mas também, pontualmente, se observa o granito e o xisto. Relativamente à forma, as casas apresentam uma volumetria variável e estreita, moldando-se organicamente à morfologia do terreno. Na sua maioria, têm mais do que um piso, atentando o nível de urbanidade de Abrantes no Antigo Regime”. E sempre a mirar este casario, em muitos casos a pedir obras, passa-se pela fachada da igreja de S. João Baptista, mais outra que resolveu merecer consideração no período filipino. Merece bem a nossa atenção, é uma fachada de erudição admirável, de configuração sóbria e desornamentada, tem algo de palácio, provoca equívoco na tipologia e organização do espaço, podia ser tomada como um palácio, repito. Estava fechada, consta que o seu acervo é merecedor da nossa atenção, pois bem, ficará para um dia de visita quando Abrantes puder estar de portas abertas.
A Igreja da Misericórdia, segundo consta nesta obra, tem um património notável. À igreja adossou-se um edifício de dois andares, parece que num pequeno claustro há uma extraordinária cisterna e as fotografias que vi da sala de reunião dos mesários provoca deslumbramento. Postei-me em frente da fachada, pois claro, e tomo nota do que consta deste livro sobre o centro histórico de Abrantes: “Destaca-se o pórtico em trabalho de pedra calcária de modelação renascentista, desde logo no perfil em verga reta e nas pilastras que o delimitam. No remate da porta evidencia-se um tondo (composição de pintura ou escultura em forma redonda) onde temos um dos temas mais caros à irmandade, a Mãe Universal. Trata-se da Virgem da Misericórdia, ladeada por anjos que seguram o seu manto, símbolo de amparo”. O seu interior tem riqueza profusa e muito boa azulejaria, conserva mobiliário muito raro, enfim, templo de visita obrigatória. Saciado o estômago, retoma-se o passeio para uma quota mais elevada, a fortaleza-castelo, sabe-se que não há circunstância de visitar galerias ou a biblioteca, já se passou por um belo jardim, e há a promessa de que o jardim do castelo seja um regalo para os olhos.
A Igreja de Santa Maria do Castelo estava fechada, nada de mirar as preciosidades arqueológicas e o Panteão dos Almeidas. Lê-se num folheto que esta torre de menagem vem dos tempos provectos e há até mesmo uma lápide que recorda a visita D’El-Rei D. Pedro V. Cá em cima dá bem para perceber como no passado se moldaram duas Abrantes, a circunvizinha deste espaço tutelar e defensivo e aquela que vivia da azáfama do Tejo. Falou-se do período filipino, a Restauração veio reafirmar a relevância do castelo na estratégia militar no espaço da antiga província da Estremadura, não foi ao acaso que por aqui passou uma tumultuosa invasão napoleónica. No século XVIII, o Marquês de Abrantes iniciou a reconstrução do paço pertencente à sua família, como acontece frequentemente entre nós o que se começou não se concluiu e o tal majestoso palácio foi parcialmente destruído devido às obras de fortificação. O general Junot também permaneceu aqui uma boa temporada. Tudo somado e multiplicado, passeamos entre vestígios, só a torre de menagem está conforme, sabemos que é medieval e tem baluartes do século XVIII. Da tal magnificência do Palácio do Marquês restam onze arcos de volta perfeita, preenchendo o paramento de uma das muralhas.
A vista da torre de menagem é deslumbrante, vê-se à vista desarmada o Tejo a serpentear entre terras férteis, passeia-se entre baluartes, percebe-se agora com mais clareza a urbana Abrantes e a circunvizinhança, o jardim do castelo é aquilo que vemos. Para visita de reconhecimento, damo-nos por esclarecidos, há que preparar com mais critério para, pelo menos um dia inteiro aqui se deambular pelo centro histórico, entre maravilhas de arquitetura militar, religiosa e civil, e encontrar os vestígios do passado e do presente, quanto ao mais o Tejo parece uma espinha dorsal e lá de cima, da torre de menagem, sente-se perfeitamente o que é a marca de água das terras ribatejanas. Até à próxima!
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21975: Os nossos seres, saberes e lazeres (439): Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa (Mário Beja Santos)

Sem comentários: