sábado, 6 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21975: Os nossos seres, saberes e lazeres (439): Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Tinha saudades de percorrer a pé Vila Franca, sentir o vetusto, passear junto do Tejo e visitar núcleos artísticos tão interessantes, impressiona-me imenso a arquitetura da Fábrica das Palavras e do Museu do Neorrealismo, que conheço desde a primeira hora, visitei-o de alto a baixo na companhia de David Santos, um museólogo de gabarito, em qualquer parte do mundo. Perguntei pela atual diretora, Raquel Henriques da Silva, uma investigadora de truz, não estava, fica para a próxima. Sentei-me num jardim como igualmente me espequei numa varanda na Fábrica das Palavras, sempre com textos de Alves Redol e a literatura da guerra da Guiné do Álvaro Guerra a fazerem-me companhia. Deste pensei num romance posterior, Café Central, vou revê-lo antes de preparar o próximo passeio, sempre em segurança, ditame máximo da pandemia.

Um abraço do
Mário


Fui visitar Alves Redol e Álvaro Guerra, Vila Franca de Xira recebeu-me em festa

Mário Beja Santos

Na roda da fortuna, aconteceu ter relido dois romances de Álvaro Guerra relacionados com a ambiência vilafranquense, li igualmente Avieiros, de Alves Redol, se bem que o seu livro que eu mais revisito é Barranco de Cegos, por minha conta e risco a sua obra-prima. Agora que sou portador de um cartão em que pago 20€ e posso visitar 19 concelhos da área metropolitana de Lisboa, ponderei uma visita segura a Vila Franca de Xira, estudei o que me interessava ver, almocei ao meio-dia, apanhei comboio em Roma-Areeiro, transbordo para o comboio do Carregado, entrei neste santuário de campinos ainda muita gente amesendava. A estação da CP é mais do que bonita, espelha aquela linha arquitetónica concebida pelo arquiteto Raúl Lino que acreditava na existência de uma casa portuguesa, com mansardas muito nossas, arrebiques nos telhados, varandas quase medievais. Ali fiquei especado a dimensionar o todo, e fui bisbilhotar a azulejaria de Jorge Colaço, um primor que se vai estendendo por muitas estações, havia o cuidado de azulejar tendo em consideração o local, veja-se a tipicidade do que ele forjou para esta estação, e digam lá se não é um regalo para os olhos.
Preparava-me para visitar o Núcleo de Arte Sacra que dá pelo nome de Núcleo do Mártir Santo, na Igreja de S. Sebastião, fundada em 1576 pelo dito jovem monarca, por voto à Peste Grande de 1569. Veio o Terramoto e foi reconstruída. Entre a estação e o templo religioso já passei por ruas de boa escala, vivendas familiares, outras rés-do-chão e primeiro andar, aqui e acolá a arquitetura dos anos 1950 e 1960, com todo o desengonço da escala. Não vi a Arte Sacra porque era terça-feira e só abre de quarta a domingo, postei o olhar na pedra de armas de D. João VI proveniente do antigo Palácio dos Sousas (Palácio da Vilafrancada, terá sido aqui que D. Miguel preparou o seu primeiro golpe que D. João VI ainda pôde travar).
O Museu do Neorrealismo tem farta história, evoluiu a partir de um centro de documentação, tive a dita de ir conhecendo o desenvolvimento graças a um companheiro de colégio, o António Mota Redol, a quem a cultura portuguesa muito deve. É um edifício inspirador, tem a assinatura de Alcino Soutinho, e o seu interior é todo do século XXI, percorrem-se aquelas linhas perfeitas, sobe-se ao terceiro andar e é sempre um gosto rever a exposição permanente intitulada “Batalha pelo conteúdo”, está ali o elementar de como nasceu este movimento de Artes Plásticas, influente entre as décadas 1930 e até ao final da década e 1950, abarcando todos os géneros literários, diferentes artes plásticas, ali se registam o que mais determinante se escreveu e se faz justiça a nomes como Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Virgílio Ferreira, Júlio Pomar, Manuel Ribeiro de Pavia, Vespeira, Rogério Ribeiro, Querubim Lapa ou Alice Jorge. Por ali andarilhei, estava a ser montada uma exposição, desci ao rés-do-chão para visitar uma exposição alusiva à Biblioteca Cosmos, passei de raspão pelo auditório, tomei um café e fui namorar o recheio da livraria. Abençoada visita!
Museu do Neorrealismo, pormenor da fachada
Fachada lateral com fotografias de expoentes literários neorrealistas: Alves Redol, Carlos Oliveira, Manuel da Fonseca e Mário Dionísio
As linhas puras do interior do Museu do Neorrealismo, concebidas por Alcino Soutinho
Uma homenagem a um dos maiores artistas plásticos do século XX, que andou no neorrealismo, Júlio Pomar
A beleza da organização dos interiores do Museu

Chegou a hora de ir visitar o Museu Municipal, sedeado numa casa apalaçada setecentista, que não foi concluída, marcada por algum barroquismo. Consta que já foi tribunal, cadeia, escola, coletividade e agora é um museu. A pandemia alterou a vida cultural, vinha à espera de me deliciar com as coleções de pintura e gravura, altamente interessantes e com peças de mérito, vinha para ver uma exposição sobre o Oculista Nunes, uma das mais emblemáticas lojas de ótica do concelho, os herdeiros doaram esses objetos de trabalho que podemos agora admirar desde focómetros passando por óculos de ensaio para lentes astigmáticas, esferómetros e cravadeiras de ourives e ótica. Mas a grande surpresa foi a de que quando o imóvel foi recuperado e adaptado a espaço museológico convidou-se o pintor João Ribeiro a pintar 44 telas que foram colocadas junto ao arco da antiga igreja dedicada a Nossa Senhora do Monte do Carmo. Tirei imagem desta bela porta vista do interior do museu. Olhei para o relógio, quero regressar no sentido inverso ao tráfego, hesito se não devo ir ao Celeiro da Patriarcal ver uma exposição de desenho de humor ou se devo ir diretamente para a Fábrica das Palavras, decidi prontamente por este itinerário porque a nova biblioteca, inaugurada em 2014, está junto do Passeio Ribeirinho, beija o Tejo e sugere que se volte em breve para ir a passear pelo menos até Alhandra, sempre com a campina exuberante, terreno fértil ali não falta. E fui maravilhar-me com a obra do arquiteto Miguel Arruda. Ora vejam.
Pus-me à varanda a ver o Tejo correr para o oceano, já congemino novo passeio, ainda tenho uma exposição do desenhador de humor António para ir visitar, chama-se entrelinhas. Como escreveu Arnaldo Saraiva a propósito deste desenhador que é presença permanente do Expresso: “As produções de António mostram bem que nenhum rosto é o que julgávamos ver ou desejávamos ver; há sempre um desconhecido ou um estranho onde julgávamos encontrar o familiar e o ‘normal’. E o que surpreendemos nos outros talvez seja o que ainda não surpreendemos em nós”. Saio da Fábrica das Palavras e contemplo este Álvaro Guerra de quem não me importaria vir um dia aqui falar da sua literatura da Guerra da Guiné, de que foi mestre e esteve entre os primeiros dos primeiros a descrever a tragédia que nós vivemos e que não esquecemos.
A luz começa a empalidecer, está na hora de regressar, desta feita despego-me do lado do Tejo, e o comboio depois inflete para Roma-Areeiro, sei que vou voltar depressa, e com muito prazer.
Fernando Pessoa
Álvaro Guerra
Álvaro Guerra a contemplar o Tejo, sempre com um sorriso
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21952: Os nossos seres, saberes e lazeres (438): De Manteigas para o Vale Glaciário do Zêzere (2): (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Mário

Por norma acompanho os teus escritos, principalmente para "ver" locais e espaços onde penso que já não tenho possibilidade de visitar, mas raramente comentei.
Aliás, essa "literatura de viagem" e/ou de locais, também serve para intervalar com as "histórias de guerra" e completar a formação/informação que nos faz "crescer" culturalmente.
E isso é válido também para as "viagens de cruzeiro" do Graça de Abreu, para o que o Tony Borié nos relatou nas suas viagens pela América (USA), nos "frescos" que o Francisco Batista nos contempla sobre o Brunhoso e coisas semelhantes.

Mas hoje, porque se trata de Vila Franca (assim por assim seria suficiente, mas vou acrescentar "de Xira"), terra onde cresci e me formei "nas suas diversas Universidades", como escrevi quando me apresentei aqui no Blogue, sinto-me impulsionado a comentar.

E começo por te dizer que naquela parte onde escreves que foste visitar o "Museu Municipal" e depois temos uma foto que referes "Tirei imagem desta bela porta vista do interior do museu." e pode ser corrigida para "vista do exterior", já que a vista é de fora.
E depois escreves que "Consta que já foi tribunal, cadeia, escola, coletividade e agora é um museu".
Ora bem, é mais do que "constar". Foi mesmo isso tudo.
Entrava-se pela porta da foto e subia-se ao 1º andar onde funcionava o Tribunal, por uma escadaria de pedra que se desenvolvia pelo lado direito do átrio da entrada.
Portanto, Tribunal, sim!
E lembro-me de algumas vezes a rapaziada da Escola Técnica, com alguma falta de professor, assistir a "julgamentos de 1ª instância".
Uma vez era réu uma figura típica da terra, o "Feijoca", que era acusado pelo armazenista de ferro que havia junto à Ponte (salvo erro onde agora está a "Polux"), o "Vassalo", de ter roubado um rolo de arame. O Juiz, após formular a acusação/queixa do lesado, perguntou ao "Feijoca" o que tinha a alegar em sua defesa, ao que ele, homem da borda d'água e habituado a ouvir falar em "salvados" disse logo: "saiba Vossa Xlência, sô dotôr Juiz que não roubei o arame, ele vinha a boiar ao d'cima dáuga".
Na parte de baixo, do lado esquerdo do átrio de entrada acedia-se à cadeia.
Portanto, Cadeia, sim!
E até te digo que beneficiando do facto do filho do carcereiro, meu colega de escola, o Zézé, também participar em brincadeiras de "cobóis e índios", algumas vezes aconteceu, quando havia "vagas", que os "bandidos" que eram presos pelo "xerife", iam mesmo para uma cela verdadeira. Pouco, pouquíssimo tempo, claro.
Quando esses serviços, Tribunal e Cadeia, foram mudados, os espaços foram aproveitados para utilização pela EICVFXira.
Portanto, Escola, sim!
Não uma Escola em si mesma, mas no aproveitamento dos espaços para aulas da Escola. Isso já foi posterior ao "meu tempo", em que para além da Sede (edifício do antigo Externato Afonso de Albuquerque) cheguei a ter aulas teóricas nos "Combatentes", ou seja, aproveitando salas do edifício da Liga dos Combatentes, e no "Matadouro", aproveitando as instalações reconvertidas do anterior matadouro, funcionando principalmente as Oficinas de Serralharia e de Eletricidade.
Já depois do 25 Abril de 1974 e aproveitando o facto de ter sido construída a "Escola Alves Redol", essas instalações foram usadas por uma "coletividade".
Portanto, coletividade, sim!
A "UDV" (União Desportiva Vilafranquense, a coletividade em causa) utilizou-as temporariamente enquanto se construíam as instalações da nova Sede e Pavilhão junto ao rio.
Desde há algum tempo, não sei precisar desde quando, até porque já faz muitos anos que não estou a viver em Vila Franca, passou a funcionar como Museu Municipal.
Já lá visitei uma exposição, por sinal muito interessante, sobre a 1ª Grande Guerra.
Portanto, Museu, sim!

..... continua....

Hélder Valério disse...

.... continuação....

Ainda mais uns apontamentos.
Esse "David Santos, um museólogo de gabarito" que referes e que "arrancou" com o Museu do NeoRealismo e que é agora o Diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea, é filho de um colega e amigo desde a escola primária, a "Escola do Bacalhau" e onde "ganhou" a carinhosa alcunha de "arregaça". Nesses tempos quase todos tinham alcunhas....

Quanto ao Álvaro Guerra, antes ser escritor (e embaixador), foi guarda-redes da equipa de hóquei em patins da UDV. Uma equipa muito boa que se batia de igual para igual com as equipas que mais pontuavam na modalidade na região, o Benfica, o CACO (Clube Atlético de Campo de Ourique), os Salesianos, o Sporting, o Paço de Arcos, etc.. Era o meu ídolo na modalidade e lá na terra. Era realmente muito bom. Os ferimentos sofridos na Guiné impediram.no de continuar na modalidade.
Dos livros que escreveu ressalto "Capitão Nemo e eu" e da trilogia tendo "Vila Velha" como pano de fundo e observando criticamente o passar dos anos gosto bastante do "Café República" onde são referidos os acontecimentos após a implantação da República e as diversas convulsões que foram acontecendo mas sempre observadas pelos olhos dos utentes do "Café" em causa. Temos depois o "Café Central" que percorre o tempo (e os acontecimentos) até ao dealbar do 25 de Abril, sendo que também tive algum papel secundário, secundaríssimo, em alguma parte dessas memórias. Já o terceiro livro dessa trilogia, que gosto menos, é o "Café 25 de Abril".
O café imaginário é inspirado no atual posto de turismo "Café Central" e que ao tempo era o Café Arcada. No meu tempo de adolescente e de estudante, a uns escassos metros, ficava "O Maioral". Este último era muito frequentado pelos "possidentes e terratenentes" da região, os abastados proprietários rurais e ganadeiros, mas também por jovens estudantes que frequentavam as Escolas de Lisboa que ali também tinham por hábito assentar arraiais, principalmente à noite, após o jantar. Tenho orgulho em ter proposto, e ter sido aceite por mais dois amigos, entretanto já falecidos, a nossa saída daquele local equívoco para a "Leitaria Lezíria", local mais pacato, normalmente frequentado durante o dia por "mães de família" e onde se podia estar a estudar e a conviver até para lá da meia-noite.
Aos poucos foi-se formando uma espécie de "tertúlia" na "Lezíria", onde se discutiam filmes, livros, a vida.
Lembro-me que quando ingressei no serviço militar a "Lezíria" era conhecida na gíria pelo "Kremlin". Infelizmente, quando 3 anos e meio mais tarde, após o regresso da Guiné, procurei reviver os tempos anteriores, já local tinha mudado de nome, era mais conhecido por "Mesoputâmia", assim com "u", embora considere esses conceitos injustos e incorretos.

Hoje por hoje, sinto com tristeza que Vila Franca perdeu o dinamismo, apesar de tanta boa oferta cultural, perdeu a energia que a caracterizava ao longo dos anos que o Álvaro Guerra retratou. Há, haverá, certamente, explicações para tal mas não cabem aqui.

Hélder Sousa