quarta-feira, 3 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21963: Antologia (76): Os Homens Lobos, um conto por Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912 - Bissau, 1983), da coletânea "O Cativeiro dos Bichos" (cortesia de João Scharz da Silva)



Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, "O Cativeiro dos Bichos", Bissau, 2006 (Edição de autor).


Trata-se de uma  colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966, outros em Lisboa, entre essa data e 1973.

Preso em 26 de agosto de 1966, à chegada ao aeroporto de Lisboa, por motivos políticos ["actividades contra a segurança do Estado"], libertado quatro meses depois, sem culpa formada, foi-lhe fixada residência em Lisboa, ficando assim impedido de voltar à Guiné onde residia e exercia a advocacia desde 1948 e onde a esposa era professora do ensino liceal. A decisão só foi revogada em 1970, por ordem de Marcelo Caetano, seu antigo professor. Montou escritório de advogado na baixa lisboeta, e só voltou à Guiné-Bissau em 1977. 

Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983) foi um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade. Falava as línguas fulas e mandinga. Era casado com Clara Schwarz da Silva (1915-2016). descendente de judeus polacos, e durante largos anos a decana da  nossaTabanca Grande. De entre os seus filhos, Pepito e João são membros da nossa Tabanca Grande. O Pepito, infelizmente, também já falecido, em 18 de fevereiro de 2014. Teria hoje 72 anos, se fosse vivo.

A esta colectânea de contos pertence este, "Os Homenns Lobos", que vamos  agora reproduzir,  por cortesia do filho João Schwarz da Silva. Outros dois já aqui foram divulgados em tempos no nosso blogue (*)

1. Mensagem, com data de ontem, 2 de março, 10:58,  de João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, desde 2018, irmão do nosso querido e saudoso amigo Pepito, que nos deixou no dia 18 de fevereiro de 2014, prematuramente aos 63 anos:
Olá, Luís:

Espero que esteja tudo bem consigo e que tenha conseguido superar a Covid. Junto envio um pequeno conto que o meu pai escreveu em Maio de 1973 e que relata as desventuras de um homem num tribunal de Bissau. Pode publicá-lo se achar que ele se enquadra no seu site.

Um grande abraço

Joao Schwarz da silva

Os Homens Lobos, 

por Artur Augusto silva

(Maio 1973)

PRIMEIRO QUADRO

O juiz ordenou:

— Senhor oficial, recolha as testemunhas !

E o oficial de diligências começou encaminhando-as para a sala contígua à dos julgamentos, com certa dificuldade.

As testemunhas, incluindo o réu e o ofendido, eram da raça balanta e no seu ar bisonho e desconfiado denotavam logo pouco convívio com o branco.

— Levante-se o réu — disse o juiz — e o intérprete traduziu, o que provocou por parte do arguido um salto brusco, não fosse o branco pensar que não queria obedecer.

— Nome?

— Uaná Nhante.

— Casado ou solteiro?

— Tem mulher.

— Em que se emprega? Em que trabalha?

— Lavrador.

— Nome dos pais?

— Bidjane e Najá.

— Já alguma vez respondeu ou esteve preso?

— Esteve preso na Administração de Mansoa, por ter morto um homem.

— Há quantos anos?

— Não sabe.

—Então não sabe há quantos anos esteve preso?

Aqui o homem embaraçou-se, começou contando pelos dedos, repartia três de uma das mãos e três da outra e ia falando para o intérprete que, a espaços, aprovava com um aceno de cabeça.
Por fim traduziu:

— Ele diz que há mais de seis chuvas.

O juiz, voltando-se para o delegado, observou:

— Não consta do certificado...

O agente do Ministério Público depois de uma leve hesitação, explicou :

— Dantes, as administrações não mandavam os boletins. A justiça lá feita lá morria.

Dirigindo-se ao intérprete. o juiz informou:

— Diga-lhe que até aqui ele era obrigado a responder sob pena de desobediência. Daqui por diante só responde se quiser. Pode delegar a defesa no seu advogado oficioso. Quer responder?

— Quer.

— É verdade que ele quis matar o irmão com uma catana?

— É verdade.

— É porque estava bêbado?

— Não, não estava bêbado.

— Então, porquê?

Repetida a pergunta ao réu, este falou, fazendo gestos estranhos, avançando com os braços estendidos e as mãos encurvadas, agachando-se e abrindo os olhos desmedidamente, emitindonsons guturais, como se estivesse representando uma pantomima.

No final da cena, o intérprete explicou:

— Ele diz que o irmão, ao anoitecer, se vira em lobo e vem perseguir as pessoas da tabanca que se atrasam nos trabalhos do campo.

O juiz deu um salto na cadeira e, com ar severo, de quem não admite graças, disse:

— Advirta o réu de que neste tribunal não se brinca.

Nessa altura o advogado oficioso, mais filósofo do que advogado e que a filosofia levara a exilar-se em Africa havia mais de vinte anos, pediu a palavra para explicar que não havia, por parte do réu a mais pequena intenção de falta de respeito ao tribunal. Era assim: ele acreditava e todos os nativos acreditavam. Desconhecia S. Exa que nas aldeias, lá na Metrópole, o povo também acreditava em lobisomens?

O juiz, mais sereno, só comentava:

—É estranho! É estranho ! E isto em pleno século vinte! !...

— E tem V. Exa, Sr. Dr. Juiz, a certeza de que um homem não se pode transformar em lobo?!

— Mas há quaisquer dúvidas a esse respeito? — inquiriu o juiz, pasmado.

— Tenho-as eu, e grandes mas são contos largos que não vêm ao caso... Se V. Exa perguntar lá no seu íntimo o que é a realidade, talvez encontre um princípio de resposta para esta questão.

— Então o Sr. Dr. acredita...?

— Eu não disse que acreditava; eu conjecturei, quando muito.

— É o mesmo!

— Talvez...

E o advogado filósofo sorria, com um sorriso miudinho que mal lhe aflorava ao canto dos lábios, e parecia conferir-lhe um ar de superioridade e desdém.

O juiz suspendeu a audiência por um quarto de hora e, já no seu gabinete, mandou chamar o advogado. Este apareceu, ainda de toga, uma toga velha, a tornar-se ruça, atestando idade e má qualidade da fazenda. Sem mais preâmbulos, abertamente, o magistrado disse-lhe,

— Sou novato nestes casos de África. Estive quatro anos, como delegado, em Luanda, e lá, mal contactamos com os indígenas. Nunca vi nem ouvi falar destas superstições. O que mais me espanta é que o doutor, com a sólida cultura que me dizem ter, acredite nestas balelas populares...

Ia a continuar, mas o filósofo interrompeu-o:

—Perdão, Sr. Dr. Juiz. Eu não disse que acreditava. Pois, se nunca sei em que hei-de acreditar; se não consegui uma revelação que me afirme «isto é», como posso acreditar? Aceito as coisas, procuro encontrar a sua razão profunda e, até hoje, não a encontrei. O que existe é tudo o que vemos, sentimos e cheiramos, e só isso, ou antes: o que vemos, sentimos e cheiramos, não será uma ilusão dos nossos sentidos? A ciência com «c» pequeno. Bom arrimo para os que só gostam de trilhar os caminhos já percorridos...

E voltando-se de frente para o juiz:

— O que interessa neste caso é sabermos se o réu acreditava ou não que seu irmão se transformava em lobo e vinha comer as pessoas da tabanca. Se isso era uma realidade para ele,
tão real como a sua presença neste julgamento. Se, psicologicamente, ele agiu nessa convicção,
agiu em legitima defesa própria e colectiva ou então é juridicamente um inimputável: um caso de psicopatia a definir pelos médicos.

E acrescentou:

— Sr. Dr. Juiz: para mim, neste caso interessa a certeza da verdade do réu, desde que ela coincida com a certeza da verdade das testemunhas.

— Mas, então, vamos comtemporizar com a barbária?

—Dois mundos paralelos que, por mais que se prolonguem, não se encontram. — comentou o filósofo.

A audiência reiniciou-se passados momentos, com a audição do ofendido. Este explicou que
havia muitos anos, já, seu irmão o via com maus olhos, que o mataria porque era feiticeiro. Que o homem que o irmão matara fora grande amigo e companheiro dele, ofendido. Que não existia qualquer razão de inimizade entre ambos.

As testemunhas afinaram pelo mesmo diapasão, acrescentando que o réu era pacato, bom pai
de família e trabalhador. Matara um homem há anos, mas esse homem transformava-se em lobo e fazia mal à tabanca.

A instâncias do advogado declararam, ainda, que não havia dúvida de que o homem que ele
matara se transformava em lobo. Quanto ao irmão, não podiam afirmar, mas era voz corrente que também se transformava em lobo. Um pouco mais apertadas, vieram a confessar que toda a gente sabia que o homem se transformava em lobo e era um elemento perigoso na povoação.

Perguntados como é que um homem se podia transformar em lobo, foram unânimes em dizer
que bastava que ele fosse inteligente e tivesse nascido no primeiro tornado depois da primeira
chuva do ano.

O delegado e o advogado limitaram-se a pedir justiça. Um porque “crime era evidente”, outro,
porque era impossível refazer as consciências. O réu foi condenado em três anos de prisão maior.


SEGUNDO QUADRO

Na tabanca, à hora em que o Sol se esconde no horizonte e as pessoas velhas, de autoridade e
conselho, se reúnem para comentar os acontecimentos do dia. E nesse dia havia acontecimentos graves a comentar, porque tinham regressado as testemunhas do julgamento do Uaná. Mesmo aqueles mais velhos, que pela sua extrema idade já mal andavam, tinham vindo para se inteirarem de como tudo correra e saber da justiça do branco.

Taná, que fora como testemunha e, no consenso geral, era o mais avisado dos presentes, encarregou-se de contar o feito. Taná preparou o ambiente, mandando que os circunstantes se sentassem em círculo, por forma a que, no meio, pudesse falar para todos. Acenderam-se uns molhos de palha sobre os quais puseram uns troncos de árvores e Taná começou:

— Casa onde branco faz justiça é grande e bonita. Tem muitos bancos mas ninguém se senta neles. Numa mesa veio sentar-se um branco velho, de boa cara, mas vestia um fato com saias, como as mulheres deles, e pôs-se a escrever. Depois entraram dois brancos — com uma capa preta e logo a seguir outros dois brancos novos, também com saias de mulher. Todos se
levantaram : um deles era o dono da justiça dos brancos. O dono da justiça falou e nós fomos
levados para outra casa. Eu fui o primeiro a sair dessa casa e a voltar para onde estava Uaná. O
dono da justiça falava para um balanta que eles lá tinham e este perguntava-nos o que ele queria. Nós respondíamos. O dono da justiça não acreditava que um homem se pudesse transformar em lobo e perguntou-me multas vezes se era verdade. O tal branco que entrou primeiro, esse acreditava. Perguntou-me como era e eu dei uma resposta qualquer. Depois vi que o branco falava balanta — falava mal, mas eu percebi-o. O diabo até conhecia a nossa tabanca. Disse-me que já caçara um cavalo marinho na bolanha das palmeiras. Vocês lembram-se?

Houve uma pausa e um velho recordou que há muito tempo estivera ali um branco a caçar. Assim alto e forte, com uns vidros no nariz, até lhes tinha dado a carne do cavalo marinho...

— Já me lembro, já me lembro! — comentaram diversas vozes.

— Pois devia ser esse — aquiesceu Taná, que continuou contando as diversas cenas do julgamento, procurando imitar a voz e os gestos das pessoas.

Por fim, contou que Uaná, iria ficar preso durante três anos. Fez-se um silêncio geral em que se poderia ouvir um zumbido de um mosquito. Então o mais velho dos presentes comentou:

— Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?

E a pergunta ficou em suspenso porque ninguém podia imaginar o que o dono da justiça dos
brancos pensava.

Artur Augusto Silva (***)

[Originalmente publicado na separata Artes e Letras do "Diário de Noticias", de 24 de Maio de 1973: Sobre o autor, ver aqui a belíssima e exaustiva evocação feita pelo seu filho, João Schwarz da Silva, no seu sítio, Des Gens Intéressants]

2. Relembrando o Pepito (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012)

Lisboa, campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 7 de setembro de 2007 > 

Neste rosto luminoso e fraterno, havia carisma, afabilidade, determinação, coragem física e moral, visão estratégica e capacidade de liderança, seis qualidades pessoais que eu identificava e admirava no engº agrº Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), mais conhecido por Pepito ("nickname" que vem dos tempos da meninice: segundo o irmão João, o Carlos tinha um herói, uma das figuras de banda desenhada do "Cavaleiro Andante", o Agapito, um nome com 4 sílabas, difíceis de pronunciar por uma criança, e que ele abreviava, chamando-lhe "Pepito"). A foto foi tirada em 2006, sob uma pequena palmeira, que foi crescendo junto à fachada do edifício da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa, na Av Padre Cruz, onde então trabalhava.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > 

A palmeira cresceu, cresceu até gaklgar o segundo piso, estava vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... 

Sempre que passava por ela, lembrava-me do Pepito e da sua face luminosa, e continuava a sentir o vazio da sua ausência. Há uns meses atrás, em plena pandemia de  Coiviod-19, voltei lá e, para grande desgosto meu, tinham cortado a palmeira, possivelmente com o argumento de que, quando foi desenhado o edifício (pelo arquiteto Pardal Monteiro), ele não quis lá pôr nenhuma palmeira. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O Edifício da Escola Nacional de Saúde Pública, integrado no conjunto das instalações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. 

O projecto do edifício inicial foi desenvolvido pelo Arq António Pardal Monteiro e ficou concluído em 1972. Teve uma ampliação em 1985. Como se vê não há nemhuma palmeira. Foto s/d.

Foto: cortesia do sítio Pardal Monteiro Arquitectos



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido)  e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(***) Último poste da série > 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?"...

Um história com...mural ao fundo.