quarta-feira, 21 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18441: Bibliografia de uma guerra (86): “África, Quatro Ases e uma Dama”, por Fernando Farinha, Daniel Gouveia, Conde Falcão, Pedro Cunha e Maria Morais; Programa Fim do Império, Âncora Editora, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
Projeto bem esgalhado, este, imagens da guerra e da paz, da extrema tensão e violência à transbordante atitude do cuidado e registo da ternura. É só de lamentar não aparecerem imagens da guerra e da paz na Guiné onde se combateu, o mais surpreendente é que imagens não faltam. E o projeto é bem coroado com aquela dama que nos explica o porquê de uma escultura em pedra para homenagear que lá longe combateu, e que podemos venerar em Oeiras.
Um acervo de imagens onde há relicários como as fotografias de Fernando Farinha ou o constante olhar deslumbrado de Daniel Gouveia.
Um livro que vale muitíssimo a pena por isso.

Um abraço do
Mário


África, quatro ases e uma dama

Beja Santos

O título do livro, tratando-se de uma coleção que se prende com testemunhos da presença portuguesa no espaço imperial português, não deixa de ser intrigante. No introito, é referido que dos quatro ases de um baralho de cartas, dois são negros, cor fria (ou ausência de cor), “espadas” e “paus”, e podem ser relacionados com violência, guerra; os outros dois são vermelhos, cor quente, “copas” e “ouros”, podendo lembrar afetos e riqueza. Terá havido de tudo isto nessa errância portuguesa; e quando à dama, acolhe-se o testemunho de uma escultora que talhou na pedra uma homenagem ao militar português. É um livro de imagens selecionadas de diferentes títulos. Logo o ás de espadas, a figura central é o grande repórter de guerra Fernando Farinha, um nome obrigatório da guerra de Angola.

Fernando Farinha, ex-sargento miliciano do Grupo de Dragões de Angola, foi jornalista e fotojornalista em Angola e Lisboa. O ás de ouros cabe por inteiro a Daniel Gouveia, que foi alferes miliciano no Norte de Angola e que publicou nesta mesma coleção dois livros primorosos, um dos quais integra um cd com 198 fotografias. Não se admirará o leitor de ver nestas imagens o feitiço africano, a comoção muitas vezes contida no encontro de culturas, no registo da solicitude ou pelo deslumbramento da natureza. O ás de paus coube ao Coronel de Cavalaria Conde Falcão, deixa-nos fundamentalmente lembranças de Nancatári, Norte de Moçambique, com ligações a Mueda e Montepuez. E se até agora tínhamos o registo da guerra, o ás de copas é atribuído a Pedro Cunha que fotografou em Moçambique e Guiné, afetos e valores no pós-guerra, são imagens que devemos associar a países independentes. A dama de copas é a escultora Maria Morais que nos irá falar e mostrar um conjunto escultórico que homenageia os combatentes que morreram em África e fala-nos demoradamente do embondeiro.
É este, em síntese, o aliciante de “África, Quatro Ases e uma Dama”, por Fernando Farinha, Daniel Gouveia, Conde Falcão, Pedro Cunha e Maria Morais, Programa Fim do Império, Âncora Editora, 2017.

O acervo de Fernando Farinha, insista-se, fala do vendaval angolano, logo uma fotografia no rio Lifune, cenário de dramática jornada integrada na operação Viriato, da reconquista de Nambuangongo, assistimos igualmente a trabalhadores bailundos a abandonarem fazendas, registos épicos das tropas a retomar posições quando a guerrilha debandou, os grupos especiais preparados para o combate, e também os Dragões de Angola e os seus cavalos.

Daniel Gouveia tem outro registo. Aliás, basta ler o que aqui escreve a preludiar as suas sugestivas imagens: “Ideias estereotipadas eram destruídas num simples relance. Por exemplo, que os nativos eram pouco asseados. Mentira. A dada altura, transplantou-se uma população de 700 almas que estava sendo incomodada pelos grupos independentistas e forçada a apoiá-los em logística e recrutamento de jovens para futuros guerrilheiros. Foram trazidos para junto do nosso quartel, até aí deserto de população civil. As instalações militares situavam-se no alto de uma colina. No fundo do vale, 200 metros abaixo, passava um ribeiro. Pois as mulheres, todas as manhãs, faziam essa viagem de ida e volta duas vezes. A primeira, para trazer água para dar banho às crianças. Só depois disso voltavam, para ir buscar água para a comida”.

Conde Falcão entremeia viaturas nas picadas, cenas de aldeamento, somos confrontados com uma árvore enorme envolvida por planta parasita, muitas crianças. Com Pedro Cunha temos testemunhos do quotidiano, é de uma enorme beleza a imagem que nos deixa de pescadores no rio Cacheu.

Monumento 'Presença do Soldado Português em África' - inaugurado em 21 de Junho de 1997 . Localizado no Jardim do Ultramar, em Oeiras.
Foto: Com a devida vénia a Maria Morais

E chegamos a Maria Morais que nos conta com enorme delicadeza a evolução do seu projeto, a sua matéria-prima foram três grandes blocos de pedra semi-rijo que vieram de uma pedreira de Porto Mós. Trabalho de fôlego, como ela descreve: “O material eleito foi a pedra; cinzelar a pedra requer, para além de força de braços, a utilização de máquinas rebarbadoras pesadas, martelos pneumáticos, retificadoras, freses diamantadas, escopros e macetas, um local sujeito ao ruído provado pelo rasgo desferido na pedra pelo movimento mecânico, assim como requeria igualmente um local arejado que permitisse evacuar as constantes de nuvens de pó que me cobriram”.
E quanto ao resultado, a escultura que hoje podemos contemplar em Oeiras, dá uma explicação: “Procurei transmutar para a escultura em pedra as memórias de África, através das minhas memórias. No fundo, este conjunto escultórico é uma colagem tridimensional dessas memórias perpetuadas naquele material nobre – a pedra. O embondeiro aparece numa atitude tutelar, pela sua grandeza, magnificência. As pedras verticais e oblíquas representam capim, tantas vezes trilhado pelos nossos homens e quem sabe se, por entre esse capim, não terá ficado para sempre o murmúrio do adeus sem regresso de muitos deles”.
Espraia-se pelo assombro com que olha o embondeiro, conhecido pelos nomes de adansónia, calabaceira, bombácea, imbondeiro e mais, e dá-nos informações úteis, vale a pena registar algumas: “Dependendo da sua idade, esta árvore pode atingir entre 5 a 25/30 metros de altura; o seu diâmetro pode alcançar até 7/11 metros. No Zimbabué existe um embondeiro cujo diâmetro corresponde ao abraço estendido de 30 homens. O tronco é oco e resistente ao fogo. Nos meses de maior pluviosidade serve de reservatório de água. Algumas espécies podem armazenar até 120 mil litros de água, constituindo assim uma fonte de subsistência rural para as povoações limítrofes. Abriga inúmeros seres vivos nos buracos dos seus longos e esguios troncos, mas é o morcego que poliniza a sua única flor anual. Uma flor de rara beleza formal, grande e pesada, com vistosos pedúnculos, pétalas brancas sedosas e com estames aglomerados esfericamente, que nas extremidades terminam num pompom de cor púrpura”.

Grupos especiais em operação

O engenho das crianças não tem limites

Netinha conduzindo a sua avó cega

O Programa Fim do Império foi coordenado até há pouco tempo pelo Coronel Manuel Barão da Cunha e teve a ele associado a Liga dos Combatentes, a Comissão Portuguesa de História Militar e a Câmara Municipal de Oeiras.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18271: Bibliografia de uma guerra (85): “O céu não pode esperar”, por António Brito; Sextante Editora, 2009 (Mário Beja Santos)

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