sexta-feira, 23 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18451: Notas de leitura (1051): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (27) (Mário Beja Santos)

Uma das plantas para o futuro edifício do BNU Bissau, concebida pelo arquiteto Fernando Schiappa de Campos em Março de 1973 mas que não chegou a ser construído.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Estamos no auge da guerra, convém não esquecer, é compreensível que os relatos insistam nos entraves económicos postos pelos ingleses às colónias francesas, pontualmente território inimigo dos britânicos.
O gerente de Bissau não perde oportunidade para expender os seus pontos de vista sobre as potencialidades agrícolas da colónia, deplora a falta de arroz e as importações de milho, tudo produto da desorganização de uma terra tão rica.
Está a chegar muito ouro à Guiné graças aos negócios com estes territórios da África Ocidental francesa de resto a vida da praça não sai da rotina, veja-se a informação sobre o comércio local: "Abriram dois pequenos estabelecimentos de quinquilharias sem valor que mereça especial referência. Um do empregado da Casa Gouveia e outro de Carlos Machado, comerciante de pouco valor que se transferiu de Bolama para aqui".
É por esta altura que se dá uma importante migração de Balantas para a região de Catió, vão para a cultura do arroz. Foram e ficaram, laboriosos, estes Balantas contribuíram para mudar o rosto do Sul da colónia.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (27)

Beja Santos

São merecedores da melhor atenção todos estes relatórios elaborados em plena Segunda Guerra Mundial, todos juntos dão-nos um quadro da vida económica social e financeira da colónia. Logo o relatório da agência de Bissau de 1942, no seu primeiro semestre, começa por dizer que a situação da praça é pouco mais ou menos a que já se registava no fim do último semestre de 1941. Há especulação:  
“O comércio nacional tem mostrado uma actividade interessante, animado, talvez, pelos preços exorbitantes que está conseguindo mercê de uma acção fiscalizadora de fraca intensidade, por parte do competente organismo regulador de preços. Daqui resulta o registo de um aumento de custo de vida pouco compatível com os vencimentos do funcionalismo e da classe comercial”.
Aborda o comércio sírio:
“Pela natureza especial dos seus componentes e até pela sua localização por essa colónia toda, são os comerciantes sírios quem está em condições de melhor trabalhar às claras ou em regime de contrabando com as vizinhas colónias francesas”.
Estas vendas de mercadorias feitas pelos comerciantes portugueses e sírios saldam-se em bom dinheiro, o relatório refere quase 9 mil contos em entradas de euro. E deixa uma observação: “Atingiria este comércio proporções dignas de registo não fora o entrave feroz que lhe opõe o consulado inglês. O comerciante português ou sírio que viva apenas da compra dentro da colónia e não importe directamente, não era até há pouco grandemente afectado pelas acções dos ingleses. Porém, a rede de espionagem destes é grande em toda a colónia e vai apanhando todos os que vendem para o chão francês e apanhados ficam pouco menos que liquidados pois que é imposta ao comerciante grande fornecedor daquele, que não lhe forneça mais e este, seja português ou sírio, tem que se subordinar prontamente. Não se subordinando, nem obtém licenças de importação nem de exportação e vê os seus negócios locais paralisarem também, visto que os outros comerciantes querem fugir à mesma direcção do consulado britânico contra si. E se algum dos renitentes precisa de embarcar para fora da colónia, mesmo que seja português e mesmo que tenha todas as licenças do nosso governo para embarque, este é terminantemente proibido pelo consulado britânico”.

O relatório aponta agora, e uma vez mais, para os problemas da agricultura, o gerente não escusa as suas considerações pessoais:
“Como sempre, a colónia vive da sua agricultura. Mas vive da colheita do que o indígena semeia e não da cultura que resulta de trabalho de europeus, nem da orientação que estes dêem àquele. Assim, o indígena vai suprindo com o viático que lhe fornece a experiência e a rotina aquilo que o europeu não lhe fornece em ciência, e este vai-se limitando à função única de comprador do que aquele lhe vende. Cultura organizada é coisa que não existe na colónia. Em nosso modesto entender, esta falta pode resultar, talvez e pelo menos pelos seguintes factores:
- Nada há estudado sobre climas e sobre terra para melhor se ver o que mais convém aos produtos e aos sistemas de produção e mesmo quando a defesa das culturas contra os seus principais inimigos. Se há, não conhecemos, nem vemos que se pratica;
- Não há mão-de-obra fácil, na educação do preto, por meio de uma sábia política indígena, para este a fornecer no sentido de uma maior valorização económica da colónia que automaticamente lhe traria a ele próprio um enriquecimento de que poderia resultar até, como consequência imediata, a elevação do seu nível de vida;
- Não aparece capital a fomentar qualquer empreendimento que surja, já pelas duas razões atrás indicadas, já pelos insucessos de experiências anteriores em que o arrojo sobrelevou as outras características desses insucessos.

Remediando-se este males, e não vemos que seja impossível dar-lhe remédio, tanto mais que, o maior deles, em nosso modesto entender, é o disciplinar o indígena quanto a sistema de trabalho orientado por europeus, e o indígena é o factor supremo, poderia Guiné vir a ser uma das mais ricas colónias de Portugal.
Fala-se em civilizar o indígena e está bem. Mas civilizá-lo fora do seu conceito de civilização sem lhe dar a necessária riqueza e esta só ele a poder tirar do seu trabalho, não será apenas uma ideia vaga, imprecisa de que não resultarão finalidades práticas?
Não carecemos exemplos de ninguém. Não nos precisa interessar o sistema inglês de passagem da função colonizadora à função administrativa dos povos que submeteu.
Menos nos pode interessar o sistema alemão que faz arrancar em poucos anos 5 mil toneladas de cacau aos Camarões ou 20 mil toneladas de fibras ao Este Africano (é provável que o relator estivesse a pensar no império alemão da África Oriental constituído pelo Tanganica, Ruanda e Burundi, que se extinguiu com o Tratado de Versalhes).

Temos os nossos próprios métodos que servem de sobejo para o caso em questão e temos aqui ao lado uma colónia onde se morre de fome de vez em quando e cujo excesso populacional talvez visse até com agrado a sua transferência para aqui, onde a terra lhe daria tudo e onde eles criariam riqueza que não existem agora (…) 
Temos tido sempre em mira o fito de criar riquezas melhorando a condição de tantos milhares de homens que nos estão sujeitos, livrando-os daquela inferioridade económica que fatalmente arrasta a inferioridade moral.
Com esta autoridade, que é preciso reforçar na Guiné, trabalhando mais e melhor, temos fé em merecer o respeito alheio, no apuro final a que vai dar lugar o fim da guerra quando chegar”.

E postas estas cogitações sobre o modelo de colonização que se deve instituir na Guiné, o relator passa aos aspetos práticos:
“A cultura do arroz, intensificada, é certo de alguns anos a esta parte, mostrou-se este ano insuficiente e Bissau tem assistido ao espectáculo degradante de ver massas de indígenas, até de baixo de chuvas torrenciais, dias e dias à espera de comprarem um quilo de arroz, base essencial da sua alimentação. E, a maior parte, não o obtém.
Registou-se fome. Teve de se recorrer a Angola para mandar milho que cobrisse um pouco esta miséria.
Dois factos positivamente anormais e filhos de uma desorganização de coisas que se repetirá todos os anos se não se lhe acudir.
A falta de arroz atribui-se à falta de chuvas. Mas atribui-se sem elementos sérios.
Diz-se que foi falta de chuvas e tudo fica bem.
Mas, porque não se diz que não se semeou mais para mais se colher?
Mas, porque não se diz que há terrenos e terrenos bons para a cultura do arroz e não são encaminhadas para eles as populações indígenas que os podem cultivar?
Vir milho de Angola para a Guiné!!!

Outra irrisão. A Guiné pode dar todo o milho que se queira. Quando se reconheceu que viria a haver fome por falta de arroz, era altura boa de se fazer semear milho.
Porque assim não se fez?
Porque não se cultiva a mandioca em larga escala se ela fornece uma excelente alimentação ao indígena e pode ser, devidamente seca, um produto importante de exportação?
Tudo interrogações sem fácil resposta e que deixam de estar em equação no dia em que, na colónia, apareçam homens cujo valor real, zelo, senso e boa vontade ofereçam as suas aptidões para a realização que urge fazer da valorização económica da colónia.
Existem serviços agrícolas, dir-se-á.
Existem mas é preciso reorganiza-los para lhes dar eficiência precisa para valorizarem a colónia”.

Retirado do livro “Bijagós: Património Arquitetónico”, por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia

Esta imagem situada na ilha de Canhabaque, foi retirada do livro “Bijagós: Património Arquitetónico”, por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia

No relatório completo de 1942 retomam-se matérias do primeiro semestre e adiantam-se novas informações.
Não se esquecem os entraves postos pelas autoridades consulares inglesas e dá-se um esclarecimento:
“Todos os que trabalham com o Senegal estão na lista negra inglesa porque os agentes consulares britânicos enquanto não entraram as tropas americanas no continente africano tinham a convicção – não sabemos se com fundamento ou sem ele – de que alguma parte dos nossos tecidos ia beneficiar as tropas germano-italianas. Mas se não era assim, iam com certeza beneficiar as colónias francesas, ao tempo em regime de franca hostilidade aos ingleses e esta agravada depois do ataque a Dakar.
Apesar de tudo isto, o negócio não parou.
Directa ou indirectamente, o ex-guarda-livros da Sociedade Comercial Ultramarina, Henrique de Oliveira, a quem a inclusão na lista negra não produziu abalo nenhum, passou a ser como que o agente directo dos negócios para o território francês, ganhando, ao que se diz, uns 3 a 4 mil contos, em comissões, transportes, etc.

Presentemente, o governo francês deve ao comércio local cerca de 18 mil contos e procura fazer o pagamento em francos, por nosso intermédio, o que não temos aceitado por ser inconveniente aos nossos interesses, aos interesses dos comerciantes e aos da própria colónia”.

Relata que está a entrar muito ouro em barra, argolas e mesmo em pó. “Particularmente, sabemos que algum desse ouro em pó já foi vendido em Lisboa a cerca de 30 escudos por grama de ouro bruto. Se o ouro que temos comprado por peso de ouro fino, a preço até mais baixo que a cotação que a sede nos dá, pudesse ver vendido àquele preço e por peso bruto, importantíssimo seria o lucro que esta filial teria obtido a favor dos interesses gerais do banco”.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 16 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18423: Notas de leitura (1049): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (26) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18434: Notas de leitura (1050): “Guiné-Bolama, História e Memórias”, por Fernando Tabanez Ribeiro; Âncora Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

Muito interessantes estas Crónicas do BNU na Guiné, aqui trazidas por Beja Santos.

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Estas crónicas sobre o BNU Bolama/Bissau só confirmam o ambiente que se vivia na Guiné durante a primeira metade do Séc. XX. Por mim desejaria que fossem crónicas de "escárnio e mal-dizer". Mas não são! E isso é que é mau. Por mais voltas que se pretenda dar, o que seria estranho é que aquilo não acabasse assim.
Criámos condições e depois culpa é do "comunismo internacional", dos "estudantes do Império", e de outros "traidores à Pátria"...
E não adiantava avisar e propor soluções ou fazer estudos. Tudo estava bem como estava.
"Aquilo" estava mesmo a saque, mas era um saque saloio, pequenino, de vistas curtas, enfim, à portuguesa curta.

Um Ab. e bom fds
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

É um retrato perfeito, (resumido)que António J.P. da Costa faz do que falavam os estudantes do império, antes de 1961 e muitos anos antes da guerra.

"Aquilo" estava mesmo a saque, mas era um saque saloio, pequenino, de vistas curtas, enfim, à portuguesa curta".

Ouvi e pessoalmente e acreditava quando no meu CSM 1959, e acredito hoje, quando "aturava" os meus colegas de pelotão, metade/metade, metropolitanos e brancos, pretos e mulatos de Angola.

Achincalhavam eles: atrasados, entreguem-nos isto que nós governamos melhor, ficai lá na vossa terrinha que nós vamos fazer de Luanda uma Nova York, quadrados, nem conseguem saltar o plinto...enfim, ainda hei-de recordar outros mimos.

AJPCosta, perfeito o raciocínio.

Até que...aí é que a porca torce o rabo, o terrorismo da UPA, em 1961, o terrorismo da UPA abriu-lhe os olhos para uma realidade tal, que a maioria destes estudantes do império, (Estudantes do Império era tudo o que em África tinha a 4ª classe até Coimbra), os fui encontrar a todos em Abril re-fardados ao meu lado no Regimento, dispostos a combater a UPA no norte de Angola.

É que os velhos africanos, indígenas não acreditavam em nada daquelas conversas de grandezas.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Olá Camaradas

Como já disse, para mim, a guerra na Guiné terminou a 10 de Setembro de 1974.
Só muito vagamente me interessa o que hoje por lá se passa. Não tenho nem quero ter o direito de nisso intervir. Os tais estudantes do Império que hoje já nem existem, foram criados para provar que os pretos também tinham oportunidades e, como era de calcular, o feitiço virou-se contra o feiticeiro.
As consequências da luta armada para os (novos) países e respectivas populações só a eles dizem respeito.
Era o que faltava: levar com a guerra e agora andar a lamentar-em que aqueles pobrezinhos coitadinhos vivem muito mal e passam fome!
Só faltava considerar-me culpado das dificuldades e problemas de um país independente e onde nem sequer se fala português.
Numa perspectiva do estudo da História do meu país interessa-me tudo o que ficou para trás e conduziu à situação que eu, metropolitano, tive que enfrentar devido ao amontoado de bojardas feitas ao longo de 5 séculos.
E mais nada...

Um Ab.
António J. P. Costa