quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Guiné 63774 - P7296: Blogpoesia (87): As consoantes e vogais do nosso livro de estilo (Luís Graça)



Aviso à navegação: Amigos e camaradas, camarigos: Nunca levem a sério os poetas... que são uns fingidores (garante o Fernando Pessoa). Neste acaso, este blogpoema é uma pura diversão. Não tem código postal. Leia-se: não há recados para ninguém. Espero, em todo o caso, que consigam lê-lo e cheguem ao fim... Não quero outra recompensa, senão o reforço da nossa camarigagem, como dirá o Jaquim... Darei por bem gasto o meu tempo, se o conseguir... (LG).




Contra o ponto (.) a vírgula (,)
Contra o ponto de exclamação (!) as reticências (…)
CONTRA OS TíTULOS DE CAIXA ALTA,
o ponto de interrogação (?)


Ou então abram alas, camaradas,
parênteses,
curvos (   )
ou rectos [  ],
e parem só aos sinais de proibição.
E ao Não!,  digam Não!...
E aqui carreguem nos sinais de interjeição:
Ai! ei! ii! oi! ui!
Que, com a vida sem pica, 
a gente fica
sem palavras nem (lo)comoção!

Ao sinal verde, toca a arrancar 
e a marchar
contra os OOO da arrogância,
os UUU da flatulência,
e os RRR do arroto,
mais os ÇÇÇ da doença, 
e, pior, os acen(t)os da demência.
Cuidado, ao final das escadas,
com o cano de esgoto.

War is over, baby,
bela bajuda de mama firme,
tira o chapéu de abas largas 
e atira flores aos que morreram,
em terra, no ar e no mar:
não os deixes morrer duas vezes,
agora de abandono
e de olvido.

Cuidado, camarigo,
trânsfuga,
refractário,
desertor,
prisioneiro,
inimigo,
comissário,
capelão,
comandante,
detractor,
miliciano,
agente duplo,
escriturário, 
artilheiro,
melec,
grumete,
xico,
cadete,
capitão,
crente ou ateu,
tanto faz,
e até tu, Maria Turra,
que no fim da picada,
podes ser cuspido, zás!, 
pela força centrífuga
do silvo da cobra cuspideira
que se mordeu
a si própria.

Quanto ao macaréu,
já não é o que era,
garantiram-me no Xime...
Deixaram assorear o Geba Estreito,
que crime!,
os administradores das águas fluviais
e braços de mar
e canais de irrigação 
da liberdade criativa.
Dizer que o trabalho é bom p'ró preto
não é politicamente correcto.
Corta.
Nem vocês já não se afoitam, pessoal,
de peito feito,
aberto,
contra os jagudis imperiais
do Corubal
que comeram as últimas letras do alfabeto.

Há que pôr os pontos nos ii,
no semáforo intermitente,
arrumar as botas,
brunir os colarinhos,
pensar na vida,
e no povo que está tolo, 
e abrir aspas
entre as falas em crioulo.
Enquanto o corpo está quente.

Até o  barqueiro, coitado,
perdeu o k da kanoa,
varada no tarrafo do Mato Cao.
Sem o til,
que o levaram p’ra Lisboa.

Há agora um fantasma de um quarteleiro
à procura das estrias, frias,
do morteiro...
Triste  samurai,
aquele que não encontra o fio da espada.
E, ai!
do pobre (a)tirador,
aquele que se mata a (a)tirar
o acento circunflexo da bala na câmara.

Encontrei um djubi,
numa escola do mato,
exercitando o seu estilo caligráfico,
em caderno de duas linhas,
de acordo com a norma do acordo
ortográfico.

Resta o  humorista,
o velhaco,
que é sempre o último a perder
os quatros humores,
já no  fundo da pista
onde acabam todas as peugadas:
Sangue, pouco e fraco,
fleuma, de mal a pior,
bílis amarela, q.b.,
e bílis negra, às carradas.
Que o último a morrer,
nem sempre é o que morre melhor.


Que o que faz bem ao braço,
faz mal ao baço.
E não há coração que aguente
a pressão hiperbárica
do pulmão.
O fígado, esse, mesmo de aço 
e de inox,
é um passador crivado
de balas etilicamente correctas.

Não sei o que é que faz mais urticária,
ao tabanqueiro viril,
se a  inveja do pobre em hidratos de carbono
ou a pesporrência do rico em sais minerais.
Resta a gramática da guerra de mil
e troca o passo,
e os seus heróis,
todos diferentes,
todos iguais.

Quanto à vida, baby,
no fundo,  é tudo tretas:
Sangue, suor e lágrimas...
é quando se tem 20 anos,
força nas canetas,
e muito esperma 
para dar e vender.
Agora já se não usam palavras com trema.
Nem eu sei o que farei
com  este poema.

De qualquer modo,
quando eu morrer
por falta de imaginação,
quero que  seja numa cama fofa,
de consoantes e vogais.
Sem travessão.
E mais: 
dispenso a notícia nos jornais.


 Luís Graça

Fonte: Excerto do "Livro de estilo do  membro (viril) da Tabanca Grande
quando  anda em guerras de baixa intensidade (de que Deus nos livre!)" (em preparação)

3 comentários:

Anónimo disse...

Ao ler-se,a esta hora matinal,o teu "Excerto", vem à memória a paz,o bem estar e o sorriso,contidos na frase de Ruy Belo:"As minhas manhäs säo feitas em curvas suaves". Um grande abraco.

Luís Graça disse...

Este é um dos meus preferidos (e mal de um povo e de um país sem poetas nem utopias: cidades perfeitas que não existem)



O Portugal Futuro
Ruy Belo


o portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Luís Graça disse...

Queria eu dizer: lugares, lugares perfeitos que não existem. Do grego, "utopos" (lugar que não existe) e "eutopia" (lugar bom, perfeito).

Um um abraço, fraterno, José belo, daqui do sul até ao teu norte. Luís