sábado, 17 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22110: Os nossos seres, saberes e lazeres (448): Quando vi nascer a Avenida de Roma (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2021:

Queridos amigos,
Não vos vou inquietar com os conteúdos da instrução primária, é certo e sabido que tivemos todos a obrigação de conhecer a história gloriosa, os povos que passaram por esta península, Ceuta, o Infante D. Henrique, o Cabo Bojador, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, e tudo o mais que retivemos de memória. Circunscrevo-me à topografia do mundo circundante: Rua de Entrecampos, a vivência do bairro, o nascimento da Avenida dos Estados Unidos da América, o maravilhamento da miudagem com a chegada de novas gentes, os passeios pelo Bairro de São Miguel, as tardes na Biblioteca das Galveias, mais cedo as idas até Telheiras para jogar num pelado de futebol com os nossos companheiros que aqui viviam, passávamos ao lado do Estádio do Sporting, que tinha igualmente um campo pelado, e depois de uma azinhaga esburacada, onde despontavam figueiras e casas em ruínas tínhamos um espaço para o jogo, ala morena que se faz tarde, impunha-se regressar a casa, fazer a higiene, mudar de roupa e estudar até à hora do jantar. Eu fazia o possível, sobretudo no outono e inverno, para acompanhar a minha mãe às aulas na Campanha Nacional de Educação de Adultos, não vivi outra experiência emocionante como aquela, ver um analfabeto feliz por saber soletrar, folhear um dicionário, escrever palavra atrás de palavra, no ditado da Sr.ª Professora, a minha adorada mãe.

Um abraço do
Mário


Quando vi nascer a Avenida de Roma (4)

Mário Beja Santos

Há as obrigações de trazer as vitualhas para a cozinha. A minha mãe, de segunda a sexta-feira, faz compras no Mercado do Saldanha, eu espero-a na paragem do autocarro, seja a carreira 44, seja a carreira 45, um pouco mais adiante da Esquadra do Campo Grande, na Avenida, atravessamos a linha do elétrico e entramos na Rua Aboim Ascensão e rumamos para casa, durante o percurso dá-se o interrogatório sobre as aulas da manhã, à hora do almoço define-se o que poderei fazer da parte da tarde depois das aulas, com o passar dos anos fico autorizado a estar cerca de duas horas à tarde na Biblioteca das Galveias, no Campo Pequeno. Tenho responsabilidades no abastecimento. Há uma padaria dois edifícios à frente da esquadra, a seguir à esquadra segue-se uma vivenda que mais tarde será alugada pela UNITA, a seguir à independência, depois há umas fabriquetas, segue-se a padaria entalada entre um café e uma drogaria. Atravesso o estradão do que virá a ser a Avenida dos Estados Unidos da América e na esquina da Rua de Entrecampos, num prédio que foi demolido e deu depois lugar ao Centro Nacional de Pensões, fica uma mercearia. Comprava-se quase tudo a granel, as leguminosas secas estavam entulhas, havia medidas em madeira e rasoiras, faziam-se cartuchos com meio litro de grão ou meio litro de feijão-manteiga, na lista podia constar uma quarta de banha, meio quilo de açúcar, enchia-se numa maquineta uma garrafa de azeite, por detrás do balcão empedrado havia mobília imponente, armários até ao teto, alguns envidraçados, o plástico ainda não entrara no mundo dos negócios. Mas convém falar da Rua de Entrecampos como sede dos nossos abastecimentos, só com o aparecimento dos prédios verdes na Avenida dos Estados Unidos é que esta artéria comercial perdeu o seu fulgor.
Campo Grande, 22. Começou por ser escola primária, mais tarde aqui funcionou a Esquadra do Campo Grande até à demolição do edifício, a esquadra ficou bem perto, na Rua Afonso Lopes Vieira, frontal à Clínica S. João de Deus
Quando nasceu a Avenida dos Estados Unidos da América. Vê-se perfeitamente a Quinta do Visconde de Alvalade, não se distingue o muro da quinta do lado esquerdo, aí fica a Rua António Patrício, para onde fui viver em 1952. Não há comércio no Bairro, é preciso descer ao Campo Grande e fazer o abastecimento na Rua de Entrecampos
A Avenida da República do meu tempo, distingue-se claramente a linha do elétrico e do lado esquerdo vê-se o contorno da Rua de Entrecampos que acabava exatamente na ligação com a Avenida dos Estados Unidos da América, à esquerda, pode ver-se que a Avenida não passava de um estradão, nem macadamizada estava.

Era uma rua imponente, acolhia o comércio e serviços de primeira linha, como a zona habitacional estava em franca evolução, e mesmo sob o impacto da Avenida dos Estados Unidos da América, com aqueles prédios altos rapidamente arrendados, encontrava-se aqui quase tudo: livraria e tabacaria, retrosaria, barbeiro e cabeleireira, sapateiro remendão, ferrador com as carroças à porta, aqui chegou uma loja de eletrodomésticos e mais tarde uma peixaria de peixe congelado; havia taberna junto da linha, é hoje o restaurante Entre Copos, restavam ainda vivendas, algumas delas com uma certa imponência, falava-se num roceiro de São Tomé que aqui mandara construir casa apalaçada com entrada marmoreada, não faltava um talho de carne de cavalo e até uma carvoaria. O comércio no Campo Grande, no seguimento deste, e até à Igreja dos Santos Reis Magos também era variado, um pouco mais popular na medida em que ainda havia muita habitação operária e pátios ocupados por famílias altamente modestas, daí as oficinas de reparação de automóveis e de bicicletas, tascas com carvoarias (não faltavam belos azulejos com cachos de uvas), lojas de adubos e rações. Do lado oposto, o comércio era praticamente inexistente.
Pormenor da Rua de Entrecampos em 1946
Desenho publicado no jornal Público reconstituindo os negócios saloios que atravessavam a Rua de Entrecampos, os muares bebericando água no fontanário, não esquecer que era praticamente uma linha vertical que passava pelo Campo Pequeno, Arco do Cego, Estefânia, Campo dos Mártires da Pátria, descendo para o centro da cidade seja pelo Desterro e o Martim Moniz, seja pela Calçada de Santana. Havia outro itinerário para os negócios saloios que tinha a ver com o Rossio, Rua das Portas de Santo Antão, Rua de São José, São Sebastião e Estrada de Benfica.
Antiga Ponte de Entrecampos, com a linha ferroviária

Frequento quatro anos, a instrução primária, na Escola N.º 151, e a minha mãe conseguiu uma bolsa de estudo no Colégio Moderno, irei frequentá-lo durante quatro anos. Já referi que saio de casa pelas 8:10, na companhia do Luís Filipe Salgado de Matos, recentemente falecido. Irei fazer amizades e estimas inquebrantáveis. Não resisto a contar uma história. Durante dois anos, creio que no terceiro e quarto anos, fui companheiro de carteira do Pedro Chorão, um artista plástico que muito aprecio. Aí pelos anos 1990 adquiri um quadro dele a prestações na Galeria Colares. Andava a pensar em oferecê-lo à minha filha, mandei um mail ao Pedro, se ele queria confirmar a assinatura, a tela por detrás tem a referência ao seu nome. Respondeu-me encantado com o reencontro, há bem 60 anos que não púnhamos os olhos em cima, que não, que eu não me desfaria do meu quadro, tu vens ao meu ateliê, e vais ver que tenho uma surpresa para a tua filha. Passámos uma tarde de feliz convívio, trocámos livros, inevitavelmente falámos do colégio, as memórias dele traçam-se com alguma amargura, mas rimos a bom rir de várias peripécias, uma delas do nosso professor de físico-química, capitão Figueiredo, combatente na Flandres, houvesse, como aconteceu connosco, aula no dia 9 de abril, e no início o chefe de turma pediu ao Sr. Professor se tinha a amabilidade de nos narrar o que acontecera em La Lys, e nesse dia nem nada de física nem de química, ouvíamos os canhões alemães, a tentativa de reorganização do Corpo Expedicionário Português, os feitos do soldado Milhões, o herói que nos ficou. Anos mais tarde, tudo isto confirmei quando li as Memórias da Grande Guerra, de Jaime Cortesão.
Era assim a entrada e o edifício principal do Colégio Moderno do meu tempo, na Estrada de Malpique (hoje Rua Dr. João Soares, diretor do colégio). A imagem é um tanto anterior à minha frequência no Colégio.
Entrada no pátio principal para o edifício onde funcionavam as aulas. À esquerda, com as portadas entreabertas, estava o Dr. João Soares, ereto, empunhando a sua bengala, e recriminando os atrasados, era de toda a conveniência entrarmos às 8:25 para não haver advertências…
Fábrica Nally no Campo Grande

Tínhamos pausas de dez minutos, como em toda a parte, havia chuto na bola, correrias, jogos de curta duração. Se faltava um professor, vinha um perfeito, olhos nos livros, era proibido conversar, a não ser ir até ao pé do Sr. Perfeito e procurar esclarecer uma dúvida. Depois das aulas da tarde, formavam-se para dar passeios à volta do colégio. Há vivendas e casas apalaçadas no Campo Grande, aos fins de semana alugam-se bicicletas, há descampados, mas também vielas. Foi assim que descobrimos com a entrada por uma azinhaga a fábrica dos produtos Nally, linha cosmética, falei deles à minha mãe, mas ela disse-me que preferia o creme da Madame Campos. Lembro-me perfeitamente, bem adolescente, de ir à Rua Alexandre Herculano fazer-lhe compras na filial ali existente. O Campo Grande oferece boas oportunidades para passear, o lago e os seus barcos são a forte atração, o jardim é formoso, tem uma grande equipa de jardinagem que o trata primorosamente. Irá mais tarde articular-se com a Avenida da Universidade e os novos edifícios das Faculdades de Direito e de Letras e a Reitoria, não esquecendo igualmente a Biblioteca Nacional e as livrarias que funcionavam entre a Estrada de Malpique e o Campo Grande, no tempo de vida universitária eram de visita obrigatória. Resta desse mundo um ícone, a Galeria 111, fica a memória de grandes exposições que tive a dita de ali visitar. Ah, não podemos esquecer que para além do lago há uns campos de ténis, ali ficávamos especados a ver os tenistas em ação. O que é hoje o Museu de Lisboa, no Palácio Pimenta, estava fechado, mas era possível visitar o Museu Rafael Bordalo Pinheiro, guardo saudade das visitas com a minha mãe que o tratou sempre como o grande génio artístico do século XIX. Fiz esta deriva para o Campo Grande por ser o complemento da minha vida de bairro e de se ter articulado perfeitamente com aquela Avenida de Roma, também tão importante na minha vida.
Produtos da Fábrica Nally que continuam a ser comercializados
Dr.ª Nelly Campos, mais conhecida por Madame Campos, proprietária da Academia Científica de Beleza Madame Campos
Lago do Campo Grande, o Restaurante Casa do Lago continua a funcionar e a bela obra de cerâmica azulejar de Júlio Pomar continua lá
Obra de Júlio Pomar no Restaurante Casa do Lago

(continua)
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Nota do editor

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1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Beja Santos
Muito interessante, até por muitos lisboetas não conhecerem bem esta zona da cidade.
Também interessante e, por ao longo dos anos, fazer confusão a muita gente é o caso do '... Av. Estados Unidos da América esquina com a Rua de Entrecampos num prédio que foi demolido e deu lugar o Centro Nacional de Pensões..', pois muita gente faz confusão e até o google informa como sendo 6, Av. Estados Unidos da América, mas atravessando a Rua de Entrecampos informa que o prédio é 139, Av. Estados Unidos da América (Pastelaria "Granfina").
Mas, a Av. EUA começa na Av. Gago Coutinho e acaba no lado direito no Campo Grande e no lado esquerdo na Rua de Entrecampos e esse prédio nº. 6 pertence ao Campo Grande, como se vê na foto 3.
O Campo Grande começa no fim da Av. da República, que toda a gente diz ser a Rotunda de Entrecampos.
Imagino as vezes que os taxistas deixam os clientes ao nº. 6 próximo da Av. Gago Coutinho.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz