Queridos amigos,
Desde o Amadu Djaló e do sargento Talhadas que não lia algo tão arrancado da alma. O coronel Calheiros é despretensioso, não veio à escrita comandado pelos veios literários mas por uma missão onde pesou o estrito sentido do dever: devolver às famílias os corpos de quem morreu em combate.
Um livro a juntar a outros muito bons que a guerra transforma em escrita de valor indiscutível.
Um abraço do
Mário
Uma memória admirável, pessoal e intransmissível:
“A Última Missão”
Beja Santos
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É um livro de memórias tocante por se sentir que se trata de alguém que se expõe completamente, alguém que se olha ao espelho sem flores de retórica ou à procura da última comenda. A missão é trazer os restos mortais dos soldados Vitoriano, Lourenço e Peixoto, mortos em combate na bolanha de Cufeu, tendo ficado sepultados no interior do aquartelamento. Alguém elaborou um croqui com a localização exacta das campas, dado providencial para o resultado desta última missão.
No acto de embarque, nesse dia 7 de Março de 2008, assalta-lhe à memória a primeira aproximação a África, dá-nos o registo da participação dos pára-quedistas e da sua chegada em Maio de 1963, relata o seu baptismo de fogo, entre outras memórias. A caminho de Bissau, fala-nos do programa “Conservação das Memórias”, criado pela Liga dos Combatentes no sentido de concentrar em alguns cemitérios os restos mortais dos nossos combatentes em África. Assegurado o financiamento para a operação de exumação que decorreu sob o impulso da UPP – União Portuguesa de Pára-quedistas, foram estabelecidos contactos com peritos para se formar a indispensável equipa técnica. Ainda a caminho de Bissau, o coronel Calheiros recorda a sua missão no Norte de Moçambique, entre 1967 e 1969, repertoria momentos de perigo, o sofrimento físico. Refere algo que vi em dois momentos de tormenta, o desespero da sede, militares a molhar os lábios com urina. Dá-nos a descrição de várias operações e é assim que a equipa de missão chega a Bissalanca, onde ficou a aguardar a chegada da equipa técnica.
Dá-nos um registo da sua ida a Bissau e recorda-se da Bissau de 1971, compara o estado da cidade e o viver das populações. De seguida começam os preparativos para a deslocação, a escolha da base para o cumprimento da missão em Guidage. Ponderadas as hipóteses (permanecer em Guidage todo o tempo, aceder a Guidage a partir do Senegal utilizando um hotel de caça próximo ou construir uma base em Farim) optou-se por Farim onde já se tinha alugado duas casas. De novo assistimos ao revolteio da memória, aqueles preparativos do deslocamento para Farim lembraram-lhe as preocupações com as do tempo de guerra em que o kit-bag (saco de bagagem utilizado pelos pára-quedistas) era o albergue com que se podia contar durante o ciclo operacional, a casa ambulante. A coluna segue para Farim, o autor lembra outras colunas, desde a via marítima até à deslocação em Berliet e Unimog, com todas as peripécias imagináveis. Tudo é comparável, buscam-se analogias, pontos de contacto entre o passado da outra missão e esta, apresentada como a derradeira. É um dos aspectos mais atractivos desta prosa eficiente, conduzida pelo olhar, sem sinuosidades nem piruetas líricas. É o que é, o que a recordação consente, como se vivia nas instalações do BCP 12 e que agora está à disposição da missão e assim se vai progredir até Farim, pelo caminho recordam-se minas e emboscadas, a travessia nos rios, assim se chega ao cais de Farim, na margem esquerda do rio Cacheu. Está constituída a equipa, militares, um jornalista e vários peritos indispensáveis para a exumação. A casa de Farim vai detonar memórias sobre o modo de viver dos pára-quedistas, há a nostalgia da base de operações e o repouso físico e psicológico que permitia, ali se jogava às cartas, escrevia os aerogramas, mas também se jogava à bola e até se praticavam os jogos tradicionais que se trazia das aldeias.
Iniciam-se os contactos com agentes de Farim, surgem antigos militares que combateram à sombra da bandeira portuguesa e antigos militares do PAIGC. São relatos humanos, muito humanos, quem escreve está aberto a ouvir e a perguntar, é alguém que toma notas do movimento das ruas e dos usos e costumes. Esse alguém recorda a sua chegada a Bissau, em 1971, a memória põe-no de novo à varanda e então passam em desfile os jovens combatentes, desde os jovens contestatários àqueles que trazem curiosidade e o sentido do dever. Será porventura um dos quadros de memórias mais preciosos e singelos que o autor nos oferece, esse e o das gentes de Farim, desvelando, a propósito, o drama (talvez insolúvel) das pensões de sangue, de invalidez e de reforma daqueles guineenses que combateram ao lado dos portugueses, acreditando ser portugueses. Em torno deste drama (que eu próprio verifiquei em 1991 e 2010) há propostas para desbloquear a situação, todas elas são altamente sensíveis e cheias de riscos se não forem praticadas com o máximo de equanimidade. No seguimento desta dura prova que é mostrar a chaga destes antigos camaradas que continuam a não entender a perda de direitos, o coronel Calheiros debruça-se sobre as famílias dos militares, o seu sofrimento à distância e aqui detém-se sobre aqueles três jovens ainda sepultados em Guidage.
É um relato que impressiona pela ausência de jactância, pelo ânimo da camaradagem e pela franqueza do desnudamento da alma. Já estamos a caminho de Guidage. A última missão, na sua plena acepção, vai agora começar.
(continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7797: Notas de leitura (203) Estudos Sobre o Tifo Murino na Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)
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