segunda-feira, 1 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17301: Notas de leitura (952): Guerra da Guiné: Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes - Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2017:

Queridos amigos,
Assim se põe termo à comunicação que apresentei, por convite do senhor Chefe do Estado-Maior do Exército, dos três volumes referentes a aspetos da atividade operacional da guerra da Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África.
Encontram-se aqui revelações surpreendentes, saliento que se possui finalmente referências oficiais ao que seria o plano de retração, decidido em 1973 e que Bethencourt Rodrigues iria executar ainda em 1974. Este Comandante-Chefe escreve alarmado em 20 de Abril a Costa Gomes, sente que o esgotamento de meios, a desmotivação das tropas e a capacidade ofensiva do PAIGC prenunciam momentos duríssimos.
É uma leitura bastante recomendável àquele conjunto de nostálgicos que ainda acreditam e professam que a guerra da Guiné era sustentável e estava muito longe de se considerar perdida.

Um abraço do
Mário


Mário Beja Santos durante a sua alocução


Guerra da Guiné: 
Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes (3)

(Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974), Academia Militar, 18 de Abril de 2017)

Mário Beja Santos

Em 15 de Maio de 1973, Spínola preside a uma reunião de Comandos, entrara-se numa nova fase da evolução da guerra. O Comandante-Chefe disserta um rol de preocupações: não pretende enfraquecer o apoio económico-social às populações, estas não entenderiam economia de meios, recorda que na conceção inicial, em 1968, desguarnecera-se áreas desabitadas em ordem a recuperar meios em proveito do esforço que se impunha realizar nas zonas Oeste e Leste para deter o alastramento da guerrilha; assistia-se agora ao crescente potencial do IN. Ponderadas as análises, setor a setor, considerava-se essencial satisfazer um conjunto de necessidades em mais Companhias, mais Comandos de Agrupamento e de Batalhões, Companhias de Engenharia, armas de maior alcance para contrabater os fogos inimigos (morteiros 120 mm, canhões sem recuo e lança-granadas foguete), pelotões de artilharia, etc. E diz expressamente:
“Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas que permitam enfrentar o inimigo atual, julga-se que será necessário remodelar o dispositivo. Mas neste caso, as missões atualmente dadas às nossas forças, em termos de proteção das populações e apoio ao esforço principal da manobra, teriam de ser revistas. Ficariam também altamente prejudicadas as missões de contrapenetração e de detenção do alastramento da subversão, comprometendo-se desta maneira a missão das forças armadas no teatro de operações”.

Na sequência desta reunião, o Secretariado-Geral da Defesa Nacional produziu em 28 de Maio um memorando onde se argumenta parecer estar-se numa altura em que uma revisão estratégica ter de ser feita na componente política, já que a componente militar, com os atuais meios, atingira um limite a partir do qual podia vir-se a não cumprir a missão. Não havia mais meios para oferecer à Guiné, mas não deixava de se propor medidas de caráter militar, a começar pela Força Aérea e nas medidas de política interna sugeria-se explicitamente contactos com os movimentos de guerrilha, à semelhança da operação “Madeira” (acordo com a UNITA). O Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, Costa Gomes, desloca-se a Bissau em Junho, entre os assuntos tratados, Spínola referiu que o inimigo podia estabelecer no Boé uma base territorial com concentração de poderosos meios, mas não estava muito convicto dessa possibilidade. É nessa reunião que Costa Gomes e Spínola se entendem numa manobra de retraimento do dispositivo, com as seguintes linhas: rio Cacheu – Farim – Fajonquito – Paunca – Nova Lamego – Aldeia Formosa – Catió. Este retraimento, insista-se, era o resultado da inexistência de meios, e trazia um preço elevadíssimo, o abandono de quartéis, a transferência dos efetivos para dentro destas linhas, a migração de populações em grande volume, dentro deste dispositivo, acreditava-se, seria possível resistir mais concentradamente ao PAIGC.

Em Agosto de 1973, Spínola regressa definitivamente a Lisboa, é substituído pelo General Bethencourt Rodrigues, um reconhecido cabo-de-guerra. A Resenha documenta o que se passou em 1974, antes e depois do 25 de Abril. A situação militar era agora diferente: o PAIGC fazia prego maciço de meios de fogo sobre objetivos mais vulneráveis, parecia dominar regras do jogo, escolhia à carta onde atacar, concretamente no Norte e no Sul, no Cubucaré. Conduziu fortes flagelações a Nordeste da província sobre as guarnições de Canquelifá, Buruntuma e Copá e no Sul, sobre o itinerário Cadique – Jemberém. Escreve-se na resenha:  
“Em Abril, dado o esgotamento das reservas do Comando-Chefe, previa-se o relançamento da ofensiva inimiga na região do Nordeste com incidência em Canquelifá e Buruntuma, o que, a concretizar-se com êxito, daria ao inimigo a possibilidade de ligar essa área com duas outras situadas a Sul, sobre as quais exercia já um controlo efetivo, o corredor de Guileje e a vasta área a Norte desta, o Boé, desocupado desde 1969. No Sul do território, a atividade inimiga provocou claro desequilíbrio nalgumas guarnições das nossas tropas, particularmente em Bedanda e em Jemberém e, nalguns casos, as nossas guarnições sofreram forte depressão, com ataques que duraram dias consecutivos. O inimigo reforçou os seus efetivos e passou a instalar bases de fogo com observadores avançados, que faziam a regulação do tiro, assim melhorando de forma significativa a eficiências das suas ações de fogo. Face a esta ameaça sobre as posições do nosso dispositivo implantado no terreno próximo das fronteiras, o Comando-Chefe estava ciente de que o governo de Lisboa não dispunha de meios para reforçar o dispositivo atempadamente e suficientemente para uma oposição eficaz às intenções inimigas. Por isso, tinha previsto a retração do dispositivo das nossas tropas, passando a linha geral mais avançada a ser definida pelos seguintes pontos: rio Cacheu – Farim – Fajonquito – Paunca – Nova Lamego – Aldeia Formosa – Catió”.

Tudo se complicava. Em 20 de Abril, Bethencourt Rodrigues envia a Costa Gomes uma nota em que confessava:  
“ […] são motivo de grande preocupação para este Comando-Chefe, cumprindo-lhe assinalar as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das forças armadas da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares porventura sejam atacadas, quer quanto às capacidades de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos”.

E assim chegamos ao 25 de Abril, o que a seguir se passou é história bem conhecida. A Resenha aborda pormenorizadamente este período pós-25 de Abril e os seus múltiplos intervenientes, o comando militar fez deslocar cerca de 23.800 militares portugueses da Guiné para Lisboa e desmobilizar cerca de 15.100 militares e milícias guineenses. A obra destaca as decisões do Comandante-Chefe bem como a atividade operacional durante estes meses de 1974.

Na Mesa, da esquerda para a direita: Dr. Mário Beja Santos; Chefe do Estado-Maior do Exército, General Rovisco Duarte  e o Coronel Cav Henrique de Sousa.


Senhor Chefe do Estado-Maior do Exército,
Distintíssimos Oficiais,
Minhas senhoras e meus senhores,

Compete agora aos historiadores considerar a documentação existente e pesquisar a dispersa. Esta Resenha tem o seu valor insubstituível, foi aqui várias vezes referido a sequência cronológica que até agora não se fizera da guerra, desmonta as falácias de que durante os períodos de Louro de Sousa e Arnaldo Schulz não se usara, à luz dos meios existentes, nenhum esforço de guerra suficientemente dissuasor e de apoio às populações. Lembro que ainda hoje não existe um inventário do que foi a deslocação de populações, por perseguições, por terror, por opção, os primeiros dois comandantes-chefes procuraram apagar os fogos e dispuseram no terreno os efetivos segundo critérios discutíveis, é certo, numa tentativa de travar o alastramento de influência e dando confiança às populações; leem-se as diretivas, o rol de operações, e ficamos cientes de que não se fez uma guerra a medo, o inimigo ia-se qualificando, dotando de armamento mais qualificado, até que um dia passou a possuir o poder de decidir de e como atacar. Com morteiro 120 mm, foguetões, entrando no território com viaturas, dificultando o apoio aéreo graças ao Strela, do lado português não se encontrava a correspondente contrapartida. Não havia solução política, do lado português. A Guiné-Bissau fora reconhecida como país independente por um número elevadíssimo de Estados, a Organização da Unidade Africana propunha a organização de um exército que pusesse termo à presença colonizadora. Marcello Caetano dispunha de todas estas informações, agiu de modo dúplice: tinha um discurso interno de que se iria resistir a todo o transe e entretanto dera luz verde à realização de negociações secretas com o PAIGC, o governo britânico foi intermediário, o diplomata José Manuel Villas-Boas encontrou-se com uma delegação do PAICG em Londres. No seu primeiro livro escrito no exílio brasileiro, o ex-primeiro-ministro alude à reunião havida no Conselho Superior de Defesa Nacional onde o assunto da Guiné foi frontalmente abordado e escreveu que pôs a hipótese de retirar e deixar um general em Bissau, caso a Guiné não fosse comprovadamente defensável.

É neste cenário que os militares agiram, era bem clara a perspetiva de um descalabro militar, o espectro da Índia pairava no ar. A Guiné estava militarmente perdida. Faz bem a Resenha em destacar o admirável esforço dos militares no apoio à população da sua defesa, educação, saúde, construção de aldeamentos e vias de comunicação e prestar homenagem aos oficiais, sargentos e praças que combateram com a inexcedível dignidade e valor as suas missões.

Bem haja o Estado-Maior do Exército por dar meios a estas investigações, só espero que a partir de agora a Comissão para o Estudo das Campanhas de África se venha a abrir a um trabalho cooperativo com as instâncias universitárias e os investigadores independentes, para bem da verdade histórica e do melhor conhecimento deste período da nossa vida contemporânea que alterou o rumo da História de Portugal.

A todos, muito obrigado.
(Mário Beja Santos)



Mário Beja Santos em conversa com Oficiais Generais

Aspecto da assistência

O Coronel Carlos Matos Gomes entre a assistência

O nosso confrade Carlos Silva e a esposa Germana.

Actuação da Banda Sinfónica do Exército
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Nota do editor

Postes anteriores de:

24 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17277: Notas de leitura (950): Guerra da Guiné: Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes - Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974 (1) (Mário Beja Santos)
e
28 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17293: Notas de leitura (951): Guerra da Guiné: Os atores, a evolução político-militar do conflito, as revelações surpreendentes - Apresentação dos três volumes alusivos aos aspetos operacionais na Guiné, da responsabilidade da Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974 (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Ah, grande Mário Beja Santos! Ninguém como tu faz afirmações mais sérias e bem fundamentadas, diante de uma audiência de generais, quase todos caquéticos e adormecidos. Uma brigada do reumático, agora voltada os novos tempos, tudo ao contrário. É só olhar a fotografia do coronel Carlos Matos Gomes, um oficial Comando de élite, rodeado de dorminhocos, circunspecto diante de tanta sabedoria explanada por algumas sumidades sobre os últimos dias da nossa guerra na Guiné!
Dizes, Mário Beja Santos, diante dos generais, e agora repetes no blogue:
"Era bem clara a perspetiva de um descalabro militar, o espectro da Índia pairava no ar. A Guiné estava militarmente perdida."
Tão conhecedor, tão bem informado, tão sábio, ainda um dia, Mário Beja Santos, me hás-de explicar porque é que a retração do dispositivo militar nunca se veio a concretizar, como é que 4 a 5 mil guerrilheiros (bem armados, é verdade! mas muito cansados por onze anos de guerra) sobretudo acantonados na Guiné-Conacry, estavam a conseguir derrotar 40 mil militares portugueses e guineenses, espalhados por toda a Guiné, como é que iam conseguir derrotar militarmente as NT, Nossas Tropas, que (com força aérea, com marinha, com viaturas, tudo difícil, eu sei!) como é que iam conseguir derrotar as NT que em 25 de Abril de 1974 controlavam 225 aquartelamentos e destacamentos, de norte a sul, de leste a oeste da Guiné. São factos reais, não análises eivadas de paixão política. Se não explicas a derrota militar, vamos continuar a debitar infindáveis mentiras que, de tão repetidas, se transformam em verdades.
Claro que a guerra na Guiné, e as outras em Angola, e Moçambique, estavam politicamente perdidas desde o primeiro dia.
Mas eu escrevo estes comentários e há sempre gente que acha que eu estou falar do sexo dos anjos.
Se falar do sexo dos anjos é defender a dignidade, o sacrifício, até da própria vida, a honra dos últimos guerreiros do nosso estranho império, que em terras na Guiné não conheceram derrota militar nenhuma(eu estava lá e fui porventura o mais humilde de todos os combatentes, em 1972/74!), peço-vos apenas, meus caros camaradas, o respeito que merecemos.

Abraço,


António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Mais uma vez confirmo aquilo que já suspeitava na altura...as informações que os "ALTOS COMANDOS" tinham sobre o PAIGC eram nulas ou quase...é que se nós estávamos mal o então IN não estava muito melhor..que confirmei pessoalmente após o 25A.

Estou apenas a falar de factos e situações estritamente militares, porque em termos políticos a "guerra" estava perdida antes de ter começado como muito bem diz o A.G.ABREU.

Gostava que alguém me explicasse o seguinte, porque é que quando fui à GUINÉ-CONAKRY, após as primeiras conversações, vi poucos guerrilheiros, e quando foi da retracção e passagem da soberania para o PAIGC a grande maioria eram elementos do exército da G.KONAKRY.

Estou a saber pela primeira vez que Gadamael iria ser desactivado, apesar de não ser um aquartelamento com grande valor estratégico, tinha o seguinte dispositivo: 3 companhias,1 pelart de obus 14,1 pelotão de canhões S/R,1 pelotão de morteiros 81,2 pelotões de milícias...com um total de mais ou menos 700 homens.
Tinha muitos abrigos feitos pela engenharia com caixa de ar,para as "perfurantes"sendo de realçar a enfermaria e as transmissões,os postos de sentinela estavam dotados de metralhadoras pesadas browning, havia campos de minas em volta do aquartelamento e a seguir ao arame farpado havia minas "calmory" com disparo eléctrico.

Psicologicamente o pessoal não estava lá muito bem o que era perfeitamente compreensível devido principalmente às condições quase infra-humanas em que vivíamos, mas ia-se aguentando, sem casos de indisciplina e muito menos de insubordinação.

Pessoalmente não estava lá para ganhar "porra" de guerra nenhuma..era contra o "regime" e contra aquela "guerra".

O 25A foi uma grande alegria para mim e confesso que há muito tempo esperava o fim do regime e daquela guerra estúpida...MAS TAMBÉM SINTO ORGULHO EM TER SIDO COMBATENTE E É COM MÁGOA QUE LEIO DETERMINADAS AFIRMAÇÕES QUE FEREM A MINHA DIGNIDADE.

C.Martins

antonio graça de abreu disse...

"TamBÉM SINTO ORGULHO EM TER SIDO COMBATENTE E É COM MÁGOA QUE LEIO DETERMINADAS AFIRMAÇÕES QUE FEREM A MINHA DIGNIDADE."
Diz o C.Martins, alferes em Gadamael, 73/74.

Numa Academia Militar, a Escola onde há mais de duzentos anos se formam os oficiais do quadro permanente lançados, por opção, por destino de vida, na nossa gesta militar pelos quatro cantos do mundo,lançados, para o bem e para o mal, em estranhas guerras, continuam a ter lugar destacado nessa mesma Academia Militar, o espaço supremo de formação de Oficiais Superiores, continuam a ter lugar os falsificadores da nossa história, com uma resma de generais a baixar a cerviz. E não digo mais. Que instituições são estas?
E no blogue, onde estão o Luís Graça, o Carlos Vinhal, o Magalhães Ribeiro, e os outros?
Sem nenhum patriotismo serôdio e anquilosado, apenas, Viva Portugal!

Abraço.

António Graça de Abreu

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Não tive conhecimento prévio da sessão desta apresentação dos livros sobre a Guiné, ocorrida recentemente. Tenho que adquirir os respectivos exemplares e apenas depois poderei opinar sobre os mesmos.
Agora a discussão já feita há anos neste blogue julgo que não terá levado à conclusão de que a guerra estava perdida, mas apenas perspectivas de "talvez" se viesse a agravar face aos meios disponíveis utilizados pelos militares da Guiné e os do PAIGC.
Assim considero que mais uma vez Beja Santos se meteu por caminhos estranhos e com pouca credibilidade.