terça-feira, 12 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14603: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (4): Segunda semana de campo

1. Em mensagem do dia 28 de Abril de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

[Recapitulando o anterior poste: 27-03-1973 – Reunião de graduados com o Gen. Spínola; 09-04-1973: Início da 1ª semana de campo; 15-04-1973: Fim-de-semana em Bolama]

4 - 2.ª SEMANA DE CAMPO

16 de Abril de 1973 (segunda-feira) – 2.ª semana de campo 

Desta vez deslocámo-nos para uma zona do interior mais próxima da cidade de Bolama, mas menos aprazível que a anterior. Montaram-se as tendas bem dentro da mata agreste, não muito longe da picada, mas ficámos amontoados. Demasiada tropa para a área designada. Isso fez-se sentir no ambiente, mais tenso e opressivo, muito diferente do primeiro acampamento. Constante, como antes, foi a mosquitada e a mosquinha do capim. Prosseguiram as manobras militares nas manhãs frias e tardes tórridas. Logo na primeira noite deu-se um caso insólito: todo o acampamento dormia em aparente tranquilidade e eis que, aos berros e em pânico, um soldado pôs fora das tendas a maioria do pessoal, de armas aperradas mas sem entender os porquês nem os azimutes da hipotética ameaça. Ainda mais, em completa escuridão. Confuso, passou-me pela cabeça que alguém tinha sido apanhado à mão... Entretanto, alguns correram para a tenda do aflito e saíram depois a explicar que não havia ameaça nenhuma, não era nada: o pobre do soldado, muito perturbado, sonhara com uma cobra!...

Foi durante a estadia neste acampamento que, num dia de descanso, fiz com o meu amigo Furriel J. R. uma deslocação à anterior povoação à procura das nossas saudosas bajudas da fonte, caso que aflorei no poste anterior e que descrevo agora, assumindo o risco de me expor desnecessariamente, e de maçar quem me leia. Só pelo grotesco da situação...

Estávamos de descanso e enfadados daquela pequena clareira no meio do mato. Pedimos autorização ao Comandante de Companhia para sair, com o pretexto de fazermos uma visita aos camaradas que ocupavam agora o nosso primeiro acampamento. Autorizados, fizemos uma longa caminhada a pé e armados de G3. Passámos pelo referido acampamento (não recordo se contactámos alguém) e descemos para a fonte. Cumpríamos a nossa palavra de que voltaríamos para fazer felizes as nossas bajudas. E elas prometeram-nos o céu, muito divertidas com as expectativas. Pelo menos era o que nos parecia. Estivemos com elas muito tempo e, como sempre, ajudámos nas suas higienes. Encheram os alguidares de água e disseram-nos que teriam primeiro de levar a água e as pequenas bajudas à tabanca, depois voltariam sós, que aguardássemos...

Pessoalmente arrefeci logo um pouco, céptico. Esperámos. Voltámos a esperar.
- Ó J. R., chega! Vamos embora.
- É pá, espera aí, aguentamos mais dez minutos!.

Apetecia-me concordar com ele, mas começava a fazer-se tarde e tínhamos um longo caminho para o regresso. De passo acelerado metemos pela estrada de terra batida a caminho do acampamento, dizendo mal da vida e de tanta parvoeira. Íamos alvitrando impedimentos para o regresso das bajudas, que nos salvasse a face, enfim..., entrámos numa recta longa e com declive que nos ajudou a estugar o passo. Arborizada de ambos os lados, a estrada tinha do lado direito uma pequena rampa depois da berma, talvez com metro e meio. Caminhávamos desse lado. No fundo da recta, de uma curva que surgia à esquerda, apareceu, quase indistinto, um jipe militar. Demos um salto para a valeta e ficámos breves instantes a observar, indecisos quanto à atitude a tomar.
- Só nos faltava mais esta... É, quase de certeza, o jipe do Comando - disse eu, já a preparar-me para grandes justificações.

O J. R., sem hesitar, sobe a rampa a partir da valeta e diz-me lá de cima:
- Não nos viram. Sobe aí, rápido!
- Não faças isso! Não nos reconheceram, mas viram-nos de certeza. Vai dar merda, porque fugir é pior.

Tudo se passou muito de repente e, enquanto o jipe tardava em se aproximar, o J.R. dá uma corrida e mete-se na mata densa. Fiquei numa situação ainda mais delicada pois, ficando na estrada, para além de ter de justificar a nossa presença ali, ainda tinha de explicar a atitude dele. Se entrasse na mata e fossemos apanhados, criava uma situação deveras grave. Vinha ainda a meio da recta o jipe, saltei a lomba e corri também para a mata, furioso e desapontado com o J. R.
Mesmo em situações limite sempre assumi as minhas atitudes de cara levantada. Ficámos a aguardar uns instantes, pois já se ouvia o motor do jipe e disse eu para o J. R.:
- Se pararem, saímos imediatamente para eu explicar tudo! - E teria de ser eu a explicar, por ser o mais graduado.
- Não saímos nada! Metemo-nos por aí a baixo a corta-mato! - respondeu-me ele com ligeireza e nada assustado.
- Não, não! Já fiz mal em seguir-te e como sou eu a ter de assumir esta garotice, agora és tu que fazes como te estou a dizer!.

Entretanto já se ouvia o jipe em marcha lenta – vinham à procura das nossas pegadas – até que parou mesmo frente ao sítio por onde nos metemos. Mal parou, ainda antes de desligarem o motor, em passadas largas apareci ao cimo da lomba da berma e, fingindo surpresa, exclamei:
- Oh! É o nosso Major!

Na verdade não estava certo de quem fosse -, ele olhou para cima e só então percebi que também ele desconhecia que se tratava de mim. Desci para a berma com o J. R. atrás de mim, fizemos a continência devida. O Major D. M. estava na nossa frente sem sinais de exaltação e, sentado no jipe, assistindo, o Cap. J.A.C. (Oficial de Operações).

Antecipando-me à primeira reacção do Major pedi desculpa pela atitude de sair da estrada, mas que a primeira coisa que nos ocorreu à vista do jipe, é que fosse alguém do Comando da Unidade de Bolama, que talvez não aceitasse as razões da nossa estada ali, etc. etc.
O Major nem olhava para mim, concentrado a olhar o chão com as mãos na cintura. Depois disse:
- Se fôssemos turras, vocês estavam apanhados, porque bastava pôr os olhos nas marcas que vocês deixaram no chão!
- Tem razão, meu Major. Foi de facto uma precipitação irresponsável que nunca aconteceria se imaginássemos que era alguém do nosso Comando - menti.

Perguntou, ainda, o que fazíamos por ali estando a nossa Companhia lá em baixo, respondi-lhe com a história da nossa visita aos camaradas de cima, enfim..., foi entrando no jipe e dizendo:
- Quando chegarmos a Bolama, apresente-se no meu gabinete.

Partiram, estrada acima. Nunca tinha passado por um vexame assim.
- Ora aí tens o resultado da tua atitude! - disse eu para o J. R. que caminhava a meu lado sem abrir a boca.

Apesar da minha apreensão, nunca ouvi comentários a este respeito, nem a camaradas nem ao Capitão da nossa Companhia que nos autorizou a saída e que podia muito bem ter sido abordado pelo Major. A verdade é que chegados a Bolama me apresentei no seu gabinete e, com toda a sinceridade, expliquei melhor a situação, reconheci a minha inqualificável falta, pedi desculpa e submeti-me ao seu julgamento. Ouviu-me com atenção e depois mandou-me embora em paz, sem qualquer comentário que eu tivesse retido. Ao longo da comissão outras situações surgiram entre nós, do foro militar, mas todas se resolveram sem problemas. Parecia-me que lhe merecia uma consideração especial, mas nunca entendi porquê. Na verdade, eu tentava corresponder com igual consideração.

As novidades que nos vão chegando do desenrolar da guerra no interior da Guiné não são nada animadoras. Mesmo na cidade de Bolama é possível ouvir o ribombar dos canhões lá longe, fala-se em Guilege e Gadamel, bem no sul da colónia. Os “velhinhos” do quartel de Bolama dizem “a embrulharem”! Guilege está a “embrulhar”! Gadamael está “a embrulhar!”
Vou tomando nota.


21-04-1973 – (sábado) – Primeiras mortes. 

Soube hoje – fim da 2.ª semana de campo – que um alferes que viajou comigo no Uíge, mas que não recordo, e que estava a fazer a IAO no interior da província e não em Bolama, morreu acidentalmente com uma rajada na cabeça. Era de noite e levantou-se para ir urinar. Ao regressar, uma das sentinelas, seu soldado, não o reconheceu. É a versão que corre. Ontem, aqui no porto de Bolama, estava também num caixão, dentro de um barco da Marinha, o corpo de um rapaz que morreu nas mesmas circunstâncias. É o medo e a inexperiência a fazerem das suas.

Aqui em Bolama continuamos a estranhar a ausência de um ataque com mísseis do PAIGC a partir de S. João, ali no continente, mesmo em frente a esta parte da ilha. Todos os Batalhões que nos antecederam foram atacados, quase sempre logo após a chegada, com objectivos evidentes. [Viria a saber, mais tarde, que também o Batalhão que nos sucedeu foi atacado, tendo havido várias vítimas]. Talvez gostem de nós... Há oito dias foram presos aqui em Bolama nove elementos do PAIGC e devem ter informado os seus camaradas a nosso respeito. (Sabem sempre quando parte um Batalhão e chega outro, e também sabem o efeito que tem nos novatos um susto logo nos primeiros dias, marca a fogo que não os vai largar mais). Eram indivíduos que nos viam diariamente. Já tinha ouvido falar que aqui numa tipografia local havia elementos suspeitos, mas a PIDE, que obviamente nunca vi nem sei onde tem a sua sede, não deixa “passar” nada.

Quase no fim da IAO tivemos ainda uma tarde de manobras com helicópteros, (durante a espera destes ocorreu o “meu” incidente dos cajueiros que talvez calhe, lá para a frente, relatar), e a visita do Alf. Marcelino da Mata com alguns homens do seu Grupo para uma demonstração de fogo com armas do PAIGC.


Bolama, Abril de 1973 – Capitão B. D. (1.ª CCAÇ do BCAÇ 4513) observa uma granada de RPG 7 (ou 3?). A seu lado, um dos elementos do Grupo de Combate do Marcelino da Mata.


Creio que esta demonstração se desenrolou na pista de aviação de Bolama. Uma das acções que mais me impressionou foi o Marcelino ter feito um disparo com RPG apontado para o chão a pouco mais de dez metros da nossa posição. Fê-lo de pé, com o tubo à altura da cintura e demonstrando total confiança. Deduzi que estas granadas, tal como as nossas anticarro da bazuca, só podiam ser de carga-de-efeito-dirigido, portanto, perfurantes. Caso contrário, ter-nos-iam atingido na retaguarda do impacto. Contudo, lançadas sobre o pessoal, são muito perigosas por se desintegrarem em pequenas lâminas cortantes.


27-04-1973 – (sexta-feira) – Calha a todos

Faz hoje um ano e dois dias que entrei para a tropa. Hoje entra o meu irmão Zé, exactamente mais novo que eu um ano e dois dias.

(continua)

Texto e foto: © António Murta
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14570: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (3): Reunião com o Gen Spínola e início do IAO em Bolama

1 comentário:

José Carlos Gabriel disse...

Amigo Murta.
Todos os dias tenho entrado no Blogue para ler o que se vai escrevendo e estranhei não ter nunca visto esta tua 4ª memória. Mais uma vez recorri ao arquivo do Blogue e no BCAC 4513 cá está ela. Afinal aquele rapazinho que parecia ser tímido até era bastante aventureiro. Claro que por motivos muito nobres. Também me lembro de ter passado por situações idênticas mas no meu caso na bolanha junto ao quartel em Nhala onde se ia buscar a água para os balneários e não só. Boas recordações.
Aquele abraço amigo.
JCG