quinta-feira, 14 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14614: A bianda nossa de cada dia (6): O que bebíamos e comíamos na 1659, nem uma onça escapou (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 8 de Maio de 2015:

Camaradas e Amigos

Na CART 1659, minha Companhia, repleta de amigos, existia um Vaguemestre, meu Amigo, Augusto Varandas Casimiro. Curiosamente, o Cozinheiro era o 1.º Cabo Zacarias Salvador Branco e não existiam padeiros. Ninguém se lembrou que era imprescindível haver um padeiro.

Quando pisámos terras de Gadamael Porto, segui logo para o destacamento de Ganturé. Pediram-me para gerir o “rancho” de todo o pessoal e ao mesmo tempo para ser Gerente de Messe. No caso de Gerente de Messe combinou-se ser este cargo rotativo. Além de Atirador de Artilharia de G3 e de ter o Curso de Minas e Armadilhas, era Vaguemestre, com certeza apoiado pelo Casimiro.

No seguinte dia, já que a CCAÇ 798 deixara bastante pão, o Capitão numa reunião disse não haver na CART 1659 um Padeiro, e estava com dificuldades em resolver a situação. Existiam entretanto uns Soldados que diziam já terem visto fazer pão, e que estavam prontos a darem o seu contributo. Padeiro oficialmente não existia, ninguém sabia, nem sequer o Exército, que eu era padeiro, até com Carteira Profissional.
Nunca senti amores pela profissão do meu pai, muito embora se possa dizer ter nascido numa padaria. Se leram o texto sobre “O meu Pai”, já o sabem. Mas teria sido melhor para mim, dizer que era padeiro quando fui incorporado.
Verdade ou não? – É a pergunta que faço à Tabanca.

Disse que era Padeiro, mas que não queria voltar a ser, mas prontifiquei-me em colaborar na primeira fornada, acompanhado com os futuros padeiros. Fui uma noite só, depois surgiu a sabedoria “desenrascar sempre”.

Existia fabrico de pão, tivemos a sorte da farinha ser de muito boa qualidade. Farinha Francesa. Com o pano dos sacos, os civis aproveitavam para fazerem saias e os tais trapos enrolados. Que lindas fincavam! Carimbadas com marca da farinha francesa, e a tinta não saía.

Quanto aos cozinheiros, o 1.º Cabo Zacarias (que deve ainda morar na Charneca da Caparica e devia juntar-se à tabanca da “bianda”), há muito que não o vejo, ficou com a carga de uns tantos soldados-padeiros aprendizes para o apoiarem.

E as Messes? Em Ganturé existia uma: no início éramos dois Alferes Miliciano (um deles ficara lá, rendera um Alferes Miliciano da CCAÇ 798); 2.º Sargento e 3 Furriéis Milicianos. E tínhamos Messe e um Soldado Atirador cozinheiro desenrascado – os portugueses possuem essa bênção – são desenrascados. Para o “rancho” saquei ao Casimiro um bidão de azeite, penso que éramos abastecidos quase diariamente.
O prato principal era a famosa, e eu que nunca a vi com olhos, nunca desde criança gostei a “bianda”.
O vinho era entregue em barris e garrafões de 15/20 litros cada, tudo tara perdida. Os barris serviam para se fazerem cadeiras de baloiço.

É verdade que nos barcos retiravam vinho, mas faziam-no para o beberem na ocasião. Quando cumpri a comissão todo o vasilhame é de tara perdida.

Criança com uns 12 anos, sendo os meus pais proprietários de uma quinta, com vinha, vinho de qualidade, era a primeira pessoa a beber umas gotas de vinho, dizia: Este ano é bom! Os anos passaram e apurei mais o paladar, dizendo inclusive as razões.

Quando me apresentei no RI 5 nas Caldas da Rainha para o Curso de Sargentos Milicianos, pertenci a um grupo que percorreu todas, e muitas tabernas que lá existiam, sabia onde estava o melhor vinho. Na Guiné provei a primeira vez, não gostei, pior fiquei desconfiado. Com certeza que se tratava de vinho, nem sequer baptizado, antes anestesiante. Deixei de beber, não arrisquei. Ouvi falar de cânfora.
Pergunto: E a cerveja? O que continha a cerveja, diferente daquela que se bebe cá?

Quando fui transferido para Gadamael, fiquei a dormir junto do Furriéis Milicianos o Vaguemestre Casimiro e o Furriel Auto, o Guerreiro Justo, este malandro, que vai ler esta minha discrição, não era guerreiro, era Auto e seria justo? Decerto que sim. Um grande amigo.

Como não comia arroz, antes bianda, procurava refúgio no atum, mas um dia descobri que no armazém existia um monte de caixas, julgo ter perguntado o que estava naquelas caixas, e eram muitas. Então o que vi? Eram latas de borrachos com ervilhas, mas fora de prazo. A CCAÇ 798 deixou-nos, ou deixou uma alternativa que substituía a bianda. Devo ter sido eu a comer tudo, estavam todas as latas fora de prazo, mas em condições.

A sopa era um outro grande prato, alcunhámos a sopa de “365 dias”. Sempre e sempre lá estava ela, mandada pelo PAIGC. Estava… mascarada? Tipo Knorr. Lembro-me que um dia recebemos os chamados “frescos”, normalmente: frangos de aviário; sardinha fresca; ovos; tomate e não sei se mais algum outro comestível.

Iam surgindo menus novos – até em termos de boa comida – quando vi os tais ovos, resolvi, até por haver pão duro, pedir ao cozinheiro, ao grande cozinheiro, que fizesse Sopa à Alentejana. Foi um descalabro, e os ovos ganharam asas. Não foram aproveitados os ovos para outras refeições. Concluí mais tarde que os “frescos eram uma bênção dos céus”, eles vinham mesmo nos céus, e de helicóptero.

O “desenrascar” dava para cada um de nós fazer um copo. Uma garrafa de 6 decilitros de cerveja sagres vazia, um ferro e óleo queimado. O necessário para levar avante a tarefa. Enchia-se a garrafa até a altura que pretendíamos que o copo tivesse, colocava-se a vara de ferro ao lume até ficar incandescente, colocar o ferro no gargalo da garrafa e zás, lá estava o copo.

Quanto ao comer, muitas e muitas vezes “peixinhos da bolanha” e lá estavam os tais peixinhos. A acompanhar? Feijão-frade! Acho que foram algumas vezes uns destes peixinhos para Guileje e Mejo. Talvez até para Sangonhá e Cacoca.
No período em que havia pesca e caça dava para dividir pelas Companhias.

Quase sempre a comida tinha de ser inventada e passávamos maus bocados, sendo a cerveja para mim a alternativa, não alimentava o estômago mas a alma. Bacalhau carregado de cal, se não era cal, era parecido. Dobrada desidratada, era uma beleza. Depois e sempre ao almoço e ao jantar, fosse no Rancho ou na Messe lá estava a tal sopa.

Para não enjoar, vou tratar de recuperar o isqueiro Zippo do Movimento Nacional Feminino, e possuía 3 avariados, mas se conseguisse aproveitar um, era óptimo. E consegui. Uma oferta de um Furriel que se desenfiou, da CCAÇ 798, rendida pela CART 1659.

Virar a meio, à esquerda lá está o meu palacete

Quem ia de Gadamael para Ganturé, depois da entrada à esquerda lá estava a minha habitação, uma barraca de lama e capim coberta com chapa. Tipo forno de tortura. Mas tinha três isqueiros e restou um. Obrigado Furriel Miliciano da CCAÇ 798!

Vamos ver os tais utensílios. Tudo velho: colheres, pratos, tachos, panelas, garfos, facas e era… Improvisar. De caixote fazia-se um armário; uma mesa-de-cabeceira; um móvel para colocar a mala de cartão. Mas tinha de ficar por ali, mais não. Onde meter aquilo que tinha e espaço? Meus vizinhos, um abrigo improvisado de chapa de bidão; bidão; terra batida e o telhado de chapa de zinco.
Forno…Melhorias? Um tecto falso feito de capim e colocar capim sobre zinco… molhar quando há tempo.

Sucedia que apanhavam caça, uma alegria. Houve um período que comer havia, tanto peixe como carne do mato. As salsichas, se existindo era uma festa. Sardinha em lata. Atum, e que fartura do atum, então não que inventei (registado o invento) o prato:

“Atum de conserva assada no forno”.
Como fazer?
– Abrem-se as latas de 2,200 Kg cada uma de atum e parte-se ao meio o conteúdo de cada lata, na altura com certeza. Fica metade de cada lata, espalha-se as metades e tempera-se; um pouco de pimenta; cebola às rodelas; um pouco de azeite (o atum vem em azeite, portanto é pouco azeite) e leva-se ao forno velho e a cair num tabuleiro de chapa de bidão. Que cheirinho! Comer…

Gadamael Porto – SET68 Final da Comissão

Em Gadamael Porto criaram-se duas Messes: de Oficiais e de Sargentos e era nomeado um Gerente de cada Messe. Tocava a todos, era rotativo. Então e os utensílios da cozinha. Tabuleiros fortes, feitos na Oficina onde se encontravam os Mecânicos – esta era uma boa Equipa chefiada pelo Furriel Miliciano, algarvio de Loulé – um camarada – José Manuel Guerreiro Justo (acompanha o Blogue).

Os algarvios não têm terra, são “algarvios”. Portanto estamos em família porque o Camarada Joviano Neto Mendonça Teixeira é natural da Luz de Tavira. Andei por estas andanças em Agosto de 1965. Era terra de mulher bonita, gostava dos Milicianos.
Lembro quando cheguei ao CISMI, esperavam-nos um grupo de jovens morenas algarvias, dizia: Tavira tem bonitas raparigas e boa uva.
Lavar a roupa, engomar umas calças, o dinheiro não chegava. E a água? Uma bica 12 tostões e mais 6 tostões por um copo de água. Havia bom vinho, e subia.

Tudo era improvisado na Guiné. Os tais tabuleiros iam ao forno do pão, e era o único alimento de qualidade. É verdade que existiam uns naturais que iam à pesca e caça. A pesca quase sempre peixinhos muito pequenos. Apareceu lá um negro da Serra Leoa, falava com o tipo, em Francês, sempre desconfiei dele, ia à pesca mas já ao mar, trazia um peixe semelhante à pescada, a cabeça comprida. Deitavam fora as cabeças. Um dia disse para as guardarem e pendurá-las no alpendre, como vira em Sesimbra. Depois de aberta a cabeça, pendurada e seca. Era um pitéu.

A sopa era da boa, tão boa que todos os dias era sempre igual. Tínhamos um bom camarada, andava sempre connosco, o feijão-frade (duas caras, feijão preto e ciclistas). Nunca enjoei, e não vou contar os feijões que comi por unidade, mas por medida. Se a cerveja coubesse numa piscina Olímpica de 100 metros, os camaradas “ciclistas” davam para fazer um a um alinhados, em bicha de pirilau faziam a fronteira pelo menos de Portugal, este cantinho à beira-mar plantado.

A água era imprópria para consumo, mesmo filtrada. Logo no início da comissão deixei de bebê-la e substituí pela sempre bela cerveja de 6 decilitros. A comida repetida. Tendo reparado que nas operações em que levávamos ração de combate que a rapaziada não comia aquele triângulo de queijo. Disse ao Furriel Miliciano Vaguemestre que era melhor, quando na entrega das rações, ele perguntar se cada um comia o queijo. Guardava os queijos num caixote. Dava sempre para desenrascar, metiam-se 3 triângulos no pão e bebia-se 7 cervejas das tais, sempre as “bazucas”.

Um dia ao dar uma volta por Gadamael Porto, vi umas folhas juntas à paliçada. Perguntei a um Soldado se sabia o que era aquilo. Respondeu-me a gritar:
– Beldroegas, meu furriel!
Além de ter de descobrir as minas, descobrira a pólvora. Nunca se chegou a saber o nome daquele conjunto de beldroegas e “365 dias”. As folhinhas nadavam e numa colherada ia a verdura para o maneta. Saía-nos a sorte grande quando apanhavam caça. Num período, e longo ficámos sem abastecimento.

A “bianda” nunca foi para mim um problema, nunca gostei de arroz e de nabos. Curiosamente de nabos, nem duns nem doutros.
Um dia chego junto do Cozinheiro da Messe e digo-lhe que tínhamos de combinar o prato, respondeu-me que eram salsichas com arroz. Eu sabia, referi que o ajudaria a fazer o prato. Iniciámos a obra.
Em cada salsicha colocaram-se quatro palitos, ficando a mesma parecendo mais um animal com quatro patas, mas em pé. Tudo feito secretamente. Os pratos foram todos para a mesa com as salsichas e o arroz e ao mesmo tempo.
O pessoal, que andava em baixo e nem sequer tinha vontade de rir, desatou numa sonora gargalhada. Um grito. Riram.

Também segundo o que me lembre faltava o correio. Nem a avioneta nem barco. Em toda a guerra foi o pior. Logo de seguida, estou no cais, por nós construído, mas enganados com promessas de 18 meses de comissão. Prometeram no início se fizéssemos o cais eram 18 meses e juraram.
Estando no cais vejo algo. Sonho? Então não está um civil a tirar a pele a um animal que não reconhecia. Olhei para aquela carne fresca, perguntei se não vendia. Respondeu que “cá presta”, foi o que percebi, e insisti. Levou o bicho para a Messe, e segui com uma bonita pele nas mãos.

Disse para assar as pernas e o resto era para guisar noutra refeição. Assisti a todo o trabalho do Soldado Lima.
Temperou, cebolas ainda existiam. Levaram os tabuleiros de chapa de bidão. Neste período já tínhamos outro conforto. Os copos feitos de garrafas de cerveja tinham sido substituídos por copos de inox. Pratos e talheres tudo de inox. Não tomávamos banho de púcaro. Tínhamos duches ainda improvisados mas os bidões estavam sobre estacas, altos e com torneiras. A Companhia quase que podia tomar banho à mesma hora. Tínhamos terminado de acabar as obras da Sala do Soldado, foi já no fim e pouco gozámos. Em suma: condições mínimas existiam, mas víveres no fim. O Capitão gritava para Bissau. Os barcos não chegavam. Sofríamos nós e Mejo, Guileje e Gandembel. E ataques, com muto mais frequência a Ganturé. Os pescadores e caçadores não saíam.

Bem, o Capitão aproxima-se de mim e diz, “então Mário, onde foi buscar a carne. Cheira tão bem”. Respondi “se gosta, venha almoçar connosco”. Tive entretanto conhecimento pelo civil que me entregara a carne que o bicho caçado era uma onça, e que eu insistira mas que a carne de onça não é boa para comer, embora não fazendo mal nem morresse quem a comesse. Fui àquilo que denominavam de Enfermaria e estava lá o Furriel Miliciano Enfermeiro José Jorge Fernandes Durães (desconheço o seu paradeiro. Se estás a ler um grade abraço!). Contei o que se passava e respondeu-me que pode a carne não prestar mas não mata ninguém.

Chegou a hora do almoço. Cheirava bem, o pessoal ansioso e vem a comida para o prato. Espeto o garfo e a carne separava-se. Comem, até que o Durães diz, “Justo, compraste a pele e por que razão não compraram a carne do bicho”. O Capitão respondeu que o Justo é que havia comprado a pele, e que ele morria se comesse a carne de uma onça. O Durães diz, rindo: - “Então morra por que é o que está a comer”.

Os barcos não chegam e o Capitão informa o Batalhão que o moral da Companhia está em baixo, se não chegarem víveres não saímos de Gadamael nem de Ganturé.
Chegam frescos de Bissau, penso que só frango, um frango por cada um. Entregam na Messe uns 19 frangos e grandes.
Chamei o Soldado Cozinheiro Lima e disse que eram todos assados no forno e um para cada. Alegria total, alguns quase que deitavam frango pelos olhos, um dia bem passado. Quando o Capitão tomou conhecimento veio zangado dizer “e agora, comeram um frango que era para quatro refeições, o que comem agora”. Respondi que continuávamos a comer o que havia antes.

Bem chegaram os víveres, barcos carregados de tudo. Tivemos o prazer de comer naquele dia.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14598: A bianda nossa de cada dia (5): Se a vida era boa em Lisboa, em Bissau nem tudo era mau... Do arroz de todas cores ao vinho verde alvarinho "Palácio da Brejoeira"... (Hélder Sousa)

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