quarta-feira, 13 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14609: Os nossos seres, saberes e lazeres (93): Bruxelles, mon village (Parte 5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 15 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
Arribei a Bruxelas por razões puramente profissionais, no distante ano de 1977. Depois aproximei-me, familiarizei-me, passei a ir uma dia mais cedo ou a ficar um dia mais tarde, sempre estonteado pelas descobertas, tanto por iniciativa própria como empurrado por mãos amigas: jardins e parques, museus e espaços de exposições, mais tarde descobri a Feira da Ladra, fiquei dependente de toda aquela traquitana que se expõe nos dias em que não chove.
A cidade desvenda-se e em dado momento descobrimos, sabe-se lá com que sentimento de posse, que aquele espaço desmesurado por onde cirandam gentes de mais de 120 países, a quem um slogan turístico chama a "encruzilhada da Europa" é também um espaço muito nosso, uma extensão do nosso bairro.
Como escreveu Amadeu Ferreira, "os acasos surgem quando estamos preparados para os levar no sentido certo. Nós andamos no mundo e, quando mudamos uma pequenina areia de um sítio para o outro, ajudamos a mudar o mundo. O importante é que o ajudemos a mudar para melhor".
É assim que me sinto quando calcorreio esta Bruxelas. 

Um abraço do
Mário


Bruxelles, mon village (5)

Beja Santos


Vim a Lovaina inicialmente um pouco contrafeito, tivesse eu plena liberdade de ação e metia-me num comboio até Mons, este ano capital europeia da cultura, sentia-me acicatado pela exposição à volta do primeiro Van Gogh, foi nesta região que se talhou o seu destino de artista, e é escusado acrescentar mais sobre a sua vida trágica e as obras imorredoiras que nos legou. Gosto igualmente muito das comunas na órbita de Bruxelas, salta-se no tempo, em minutos somos sujeitos à confrontação brusca dos contrastes entre as formas de vida de valões e flamengos. Mas o André Cornerotte telefonara à ceramista Christiane Zeghers que viveu alguns anos em plena Serra da Arrábida, ela aplaudiu a nossa visita e temos agora umas vitualhas à nossa espera, pela caminhada começo a salivar por patês e queijos e há mais de um ano que não vejo os trabalhos da Christiane. Mas deu, na caminhada, para parar diante desta lindíssima fachada barroca, não fixei o nome do santo que a apadrinha, agora atravessamos um parque, toca-se à campainha, está tudo a postos para o ágape.


Hein Severijns estava em plena laboração, deu-me autorização para captar a imagem, não sei porquê lembrei-me da personagem de Cipriano Algor, o oleiro que José Saramago criou para o seu romance “A Caverna”, pena que uma fotografia não nos dê a movimentação do torno, aquelas mãos afeiçoadas a fecundar a porcelana, trabalho de paciência e alta concentração, só quando o artista endireita os ombros e retira as mãos é que temos a obra acabada.


Hein Severijns trabalha exclusivamente em porcelana, e não escondo o meu assombro e admiração pelas suas decorações ousadas, um misto de passado e futuro. Como veremos, com Christiane e os seus trabalhos de cerâmica sente-se a mesma pulsação.


Ainda não falámos da Arrábida, tenho o estômago a bater horas, mas pedi-lhe que ma deixasse fotografar, tenho as suas demostrações de talento espalhadas pela minha casa, é um encanto conversar com ela, sentir-lhe as vacilações entre o francês e o flamengo, ver-lhe o olhar nostálgico quando fala dos seus anos portugueses, tão marcantes.


São peças que nos tiram o fôlego, parece que saíram do forno com estes rastilhos de incêndio, este estranhíssimo arco-íris, com reminiscências clássicas e a superabundância de hipermodernidade. Vamos agora para a mesa, à sorrelfa disparo para as coisas encantadoras que se espalham pelo atelier.



Estas preciosidades vendem-se em casas de luxo e estabelecimentos para bolsas mais acessíveis, os artistas não descuram a polivalência e a versatilidade comercial, têm obras em galerias, comparecem em exposições, vão a feiras, distribuem pelo retalho, e são bem-sucedidos.


Regressámos a Bruxelas, pelas minhas contas ainda tenho uma hora de luz, quero andar por ali sem norte, se houver tempo ainda vou mexericar nos alfarrábios, não encontrei nada que me despertasse a atenção em bailado, concertos e quejandos, bem havia um recital de um grande pianista russo, bilhetes a 45 euros, ele que vá roubar para a estrada, temos sempre o recurso da Gulbenkian… Voltei à Grand Place, ali ao lado há uma placa de Arte Nova de homenagem a um burgomestre, é uma peça linda, sempre que posso venho contemplá-la. E zás, ficou com alguma nitidez, fico contente de a incluir nestas cirandas contadas para o blogue.


Amanhã vou andar por aqui perto, venho ver a retrospetiva Chagall nos Museus Reais das Belas Artes da Bélgica e depois, havendo tempo, quero ir ao Bozar ver a exposição dos retratos da Renascença dos Países Baixos, século XVI. Lembro-me deste edifício dos estabelecimentos Old England abandonados ao pé de uma livraria onde uma vez encontrei Vasco da Graça Moura, era ele deputado, ali fazia incursões, conversámos um pouco sobre as delícias das livrarias de Bruxelas. Mais tarde encontrei um artigo dele na revista da TAP, exatamente sobre estes recantos de Bruxelas, o fascínio desta intimidade, o prazer da descoberta. Hoje o Old England está convertido no museu dos instrumentos musicais, é possível aqui ouvir-se música gratuitamente, pequenos recitais, tal como no Conservatório Real e em muitas igrejas. E lembrei-me do Old England, na Baixa lisboeta, de vez em quando a minha mãe oferecia-me uma camisa em popelina, requinte quando o rei faz anos. Mas o estabelecimento não possuía este esplendor ornamental, o restauro está impecável, sugiro a quem visite Bruxelas e goste de música que venha aqui e passeie-se calmamente por estas salas pejadas de instrumentos musicais de imenso valor.



Quando chego à Praça de Brouckère vejo as fachadas iluminadas pela hora dourada, os últimos lampejos de poalha que nos reserva o dia antes de se ensimesmar no negrume da noite. No passado, esta praça era tida como uma das mais imponentes da cidade, o camartelo derrubou edifícios, pôs lá escritórios e mamarrachos a funcionar como cinemas. Mas ficaram resquícios desses esplendores de outrora, como se mostra, a pedra parece que se incendeia na hora dourada.
E agora anoiteceu, poderá ter interesse recordar que havia galerias e passagens com diverso comércio, esta passagem atravessa a chamada Rue Neuve, sempre febril até ao fim do dia e o Boulevard Adolph Max. Aqui fica uma imagem da Passage du Nord, cerca de dois quilómetros à frente temos a Gare du Nord, pejada de hotéis, bares e locais para a satisfação da líbido, as meninas e as senhoras da mais velha profissão do mundo dispõem-se como numa vitrina, e com néon.
Regresso a penates, estes dias de total malandrice caminham para o fim, já começo a ter saudades do futuro. Esta cidade toca-me o coração, apazigua-me, frequento-a há decénios e ela paga-me com este regozijo, os monumentos, as diversões musicais, os livros em segunda mão, as exposições de referência. Amanhã há mais e depois despeço-me. Não quero influenciar ninguém com este oásis talvez ficcionado, a minha Bruxelas, gigantíssima aldeia dos meus sonhos.

(Continua)
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Nota do editor

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