domingo, 10 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14594: Libertando-me (Tony Borié) (16): Napa Valley & Sonoma

Décimo sexto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.



Lá na Guiné, na “Mansoa City”, como o comandante Luís gosta de lhe chamar, um certo dia de princípio de mês, pagámos sete ou oito “pesos”, no bar dos “Balantas”, por um copo de vinho verde.

O Curvas, alto e refilão, deu-nos um “abanão”, chamando-nos entre outras palavras reles do seu normal vocabulário, “bêbado”, “alcoólico”, “é só cigarros e vinho”, depois, lá para o fim do mês, “andas à crava”, e por fim, mal podendo abrir os olhos, pelo reflexo do luar, colocando-nos a mão sobre o ombro, não sabendo nós, se era num afecto de irmão ou talvez para se equilibrar, entre dois soluços, dizia, “três cervejas, já não te chegam”.

O vinho servido no aquartelamento era tinto e do barril, estava a cargo do “Arroz com pão”, que era o cabo do rancho, que para nós era um irmão, sempre nos facilitava o seu consumo, cedendo-nos a chave do “curral”, que era um casebre feito de latas, que existia entre outro casebre do forno da padaria, onde entre outras coisas roubávamos pão, quase todos os dias.
Mas voltando ao vinho verde, daquelas garrafas ovais, era um luxo, era uma novidade, pelo menos para nós que éramos “beirões”, e mais, servido lá no bar dos “Balantas” era um “ronco”, bebido e saboreado entre o aspirar do fumo dum cigarro “Três Vintes”, sem filtro, daqueles que deixavam marcas entre os dedos.

Lembranças de uma zona de guerra, de irmãos combatentes, de quem nunca mais tivemos qualquer notícia, oxalá andem por aí, fica-nos a lembrança, há que seguir em frente, vamos contar um pouco daqui, onde também existe vinho, que pode ser verde, tinto, branco, do Porto, que dizem que é uma cópia, champanhe ou qualquer outro derivado das milagrosas uvas.

Quase cinquenta anos depois, deixando a cidade de São Francisco, no estado da Califórnia, atravessando a “Oakland Bay Bridge”, sobre a Baía de São Francisco, que é uma longa ponte, sobre um estuário que recebe não só as águas do rio Sacramento e do rio São Joaquim a partir das montanhas da Serra Nevada, como também os rios que desaguam na baía de Suisun, a qual desagua no estreito de Carquinez, para se unir ao rio Napa na entrada da baía de São Paulo que se conecta com a Baía de São Francisco, entrando finalmente no oceano Pacífico.

Descrevendo tudo isto com alguns pormenores, talvez faça alguma confusão, mas só assim podemos explicar a importância do rio Napa e do seu extenso vale, que tomando a rota de leste, um pouco para norte, nas montanhas que circundam a estrada rápida, pode-se admirar por uma extensão de dezenas e dezenas de quilómetros, tanto de um lado como do outro, plantações de vinha, organizadas, alinhadas, onde a sua pulverização é feita por avionetas, que passam rasteiras, assim como a sua colheita é mecanizada, fazendo-nos entender que dali podia sair vinho ou seus derivados, que podiam abastecer o resto do mundo.

Seguíamos em direcção à região do Napa Valley e Sonoma Valley, que são dois extensos vales seguidos de enorme planície, com algumas pequenas montanhas, mesmo pequenas, mas cobertas de videiras e outras árvores de fruto, onde nos disseram que sendo nós europeus com toda a certeza que gostaríamos, pois quintas, vinhas e adegas, não faltam na área.

Assim aconteceu, algum tempo depois, surgiu a placa de sinalização anunciando “Napa Valley & Sonoma” e, dizem-nos que tudo começou por volta da metade do século dezoito, quando um tal H. W. Crabb, se estabeleceu por aqui, próximo do rio Napa, e plantou 130 acres (1 acre = 4046,8564224 metros quadrados) de vinha, depois começou a dizer a toda a gente que produzia 50.000 galões de vinho por ano, claro no final desse mesmo século, já existiam centenas de casas agrícolas plantando videiras, hoje existem aqui casas agrícolas com vinhas e outras árvores de fruto por distâncias de quilómetros, dizem que está considerada a primeira região de vinho do mundo, existem mesmo recordes de produção de vinho que vão desde o século dezanove.


É uma zona de combinação de clima mediterrâneo e a geologia na região, que fazem nascer videiras saudáveis e as uvas com muita qualidade. Nós, lembrando o vinho verde, dos sete ou oito “pesos”, do bar dos “Balantas”, andámos de quinta para quinta, entrando e provando em algumas, que sempre nos ofereciam o precioso líquido, verificámos em algumas o modo de fabricação do vinho, a limpeza e cuidado na preparação das pipas, o envelhecimento e armazenamento, em túneis abertos na rocha, por distâncias de centenas de metros, com temperaturas controladas, com o líquido armazenado em pipas de carvalho, que só tinham vida de cinco anos, depois eram destruídas, ficando somente uma pequena amostra para futura análise. Em algumas quintas também serviam comida à base de queijos, carne curtida, grelhados, saladas, pão de trigo ou centeio, e claro, vinho, branco ou tinto, e com fartura, só que nesta idade, havia controle, não como quando éramos jovens, mas mesmo que não quiséssemos, eram amáveis, insistiam para provar o precioso líquido, dizendo sempre que aquela quinta produzia o melhor vinho.

Um pequeno pormenor, em algumas quintas um pouco mais pequenas na sua dimensão, havia sempre um jardim com plantas aromáticas, no meio das vinhas, dizendo os responsáveis que era para atrair os insectos ou mosquitos que por ali viviam, deixando assim as uvas em paz, podendo crescer saudáveis.

Quando nos falaram em insectos ou mosquitos, logo nos lembrámos das “bolanhas” de Mansoa e arredores, onde aqueles malditos, pelo menos no começo da comissão, nos feriam muito mais que as palavras reles do seu normal vocabulário, do saudoso amigo e companheiro combatente, Curvas, alto e refilão.

Tony Borie, Maio de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14561: Libertando-me (Tony Borié) (15): Atravessando a Ponte Golden Gate, a pé, em S. Francisco

3 comentários:

Hélder Valério disse...

Com que então, amigo Tony, numa de "rota dos vinhos".....

Claro que é conhecida a capacidade (e qualidade) de produção da Califórnia, bem assim como também do Chile (menos a Argentina), no entanto será necessário ainda mais algum tempo para consolidar a qualidade.
Mas quando se coloca a lembrança a funcionar é inevitável fazer as comparações com 'experiências' passadas.

O vinho nos "Balantas" e as 'provas' nesses vales da Califórnia não tiveram o mesmo custo... e até aposto que o sabor também não.

Abraço
Hélder S.

Luís Graça disse...

Toni, sim, é bom lembrar que os EUA (e a Califórnia, eme especial) são grandes produtores de vinhos.. E fopram eles que nos "salvara", quando a vinha europeia ficou destruída com a filoxera na II metade do século XIX...

http://pt.wikipedia.org/wiki/Filoxera

Mas Napa também quer dizer, na economia global, "napalização"... Faço meus os comentários que li num blogue "Here Is Gone"... Também vi o filme, "Mondovino" (2004), na altura...

Ab grande. Luis

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sábado, julho 15, 2006

Mondovino (2004) (****)
Direção: Jonathan Nossiter
Gênero: Documentário
http://www.mondovinofilm.com/

Hoje vi na TV a cabo, o documentário Mondovino sobre o impacto da globalização nas diferentes regiões vinícolas do mundo. O filme mostra que o mercado mundial de vinhos, apesar dos inúmeros produtores, é surpreendentemente dominado por apenas três pessoas, quais sejam o produtor norte-americano Robert Mondavi, o consultor francês Michel Rolland e o crítico norte-americano Robert Parker. Robert Mondavi expande seu império do vinho da Califórnia para o mundo, Michel Rolland é consultor de dezenas de vinhedos em todo o mundo, mostrando como fazer vinhos a seu gosto, e Robert Parker com suas críticas dita o mercado do vinho. A soma disso tudo é um vinho de gosto único, ou seja, a “napalização” (de Napa Valley) do vinho, seja ele produzido na França, Itália, Chile ou qualquer lugar aonde ele for produzido, pois este é o terroir ditado por eles.

posted by henri @ 7:10 PM

http://27520660.blogspot.pt/2006/07/mondovino-2004.html

Luís Graça disse...

Toni, marcas como a Nestlé e a McDonnald's impõem hoje o "gosto" a todo o mundo...

As nossas criancinhas são mais filhos da Mestlé e da McDonald's do que nossos filhos e netos... Daí eu combater a "napalização" dos vinhos bem como o "fast food"... Em Portugal, e no resto da Europa, temos que defender, com inteligência, as nossas castas, a nossa dieta mediterrânica... Isto é válido parta todos os países que não querem perer a sua identidade, histórica e cultural...a copmeçar pela "nossa!" Guiné.

A globalização, que os portugueses iniciaram no séc. XV, não pode ser"diabolizada", mas tem consequências perversas...

Mas quem está a ganhar mais com a globalização, sâo as grandes marcas, são as transnacionais... Mesmo assim os nossos vinhos poprtugueses estão a marcar pontos... Vejam-se os resultados dos concursos internacionais...

Um abraço para os nossos camaradas que são produtores de vinhos... Estou-me a lembnrar do Zé Manel Lopes, da Régua, e poeta (Josema)...