Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67 > Golpe de mão em que aprisionaram o Calaboço (p. 42) > Mário Fitas, Gibi Baldé e srgt Jata.
Foto: © Mário Fitas (2016). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.
Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVII Parte > Cap IX - Guerra 2 (pp. 53-58)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),
(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):
(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;
(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;
(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.
(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno...
Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVII Parte: Cap IX: Guerra 2 (pp. 53-58)
Mesmo ao cimo da leve subida, quando a estrada entra no túnel da mata, após o vale de capim que separa aquela do cruzamento do Cabaceira, foram detectadas duas “meninas simpáticas, blenorrágicas prostitutas anti-carro” que por nós esperavam, para nos fornicarem o corpo. Que grande porra!... As viaturas e os obuses no vale, se somos emboscados, estamos com as calças na mão. Há que deitar mãos à obra rapidamente e rebentar as minas, coisa que ainda dá problemas, pois o maluco do Chico Zé as quer levantar em vez de rebentar. Não pode ser!... E se estão armadilhadas? Felizmente que ele é o único com essa ideia, e o Almeida não autoriza. Vagabundo brinca com Chico Zé:
– Oh pá, Zé, porra!... estás farto da malta? Queres-te ir embora já?...
E era verdade, porque estavam armadilhadas.
Depois de rebentadas, deixaram uma cratera que cabia lá um unimog! Toca a tapar o buraco para as viaturas avançarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito. Em todos os trabalhos se fuma, como se diz na minha terra, costumava Vagabundo dizer.
Vamos então verificar como funciona a guerrilha, altamente organizada e eficiente contra a nossa ainda ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra nada menos nada mais que: três alferes, três furriéis milicianos e um milícia, Zé de nome e libanês de nacionalidade, sendo de alcunha portanto, o Zé Libanês e que também ninguém sabia porque é que aquela espécie aparecia fazendo a guerra.
Conversa animada no grupo quando, num repente, um clarão chama aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. A meio da picada, Chico Zé de gatas em frente de Vagabundo, dizia para este:
– Estou ferido!… Estou ferido!...
Vagabundo vergado, apalpando-se todo dos pés à cabeça, sem olhar para o seu companheiro e tendo em atenção apenas a confirmação da apalpação que a si próprio fazia, e só com o sentido em si, respondia ao companheiro:
– Não, não estás!
Por momentos a mente de todos entrou no vazio. Um gemido levou-os a voltarem à realidade. Olharam na direcção do gemer agora mais forte, e todos viram o alferes de Artilharia estendido na berma. Perna direita levantada, onde apenas uma óssea forca tíbio-perónia aparecia por entre a chamuscada calça camuflada, pois o pé direito tinha desaparecido. Porra!... uma mina anti-pessoal.
– O enfermeiro depressa!– gritou Almeida.
O artilheiro, que em princípio não ia p’ró mato nem andava no duro e na dança, ali estava agora a receber os primeiros socorros, com esfacelamento total do pé direito, fractura do terço inferior na mesma perna, queimaduras na coxa esquerda e nos braços. Mais um inválido com vinte e quatro anos!
Depois de rebentadas, deixaram uma cratera que cabia lá um unimog! Toca a tapar o buraco para as viaturas avançarem. Trabalho efectuado, viaturas passadas, pessoal em segurança, vai um minutinho para fumar um cigarrito. Em todos os trabalhos se fuma, como se diz na minha terra, costumava Vagabundo dizer.
Vamos então verificar como funciona a guerrilha, altamente organizada e eficiente contra a nossa ainda ingenuidade. Fumando o cigarro, juntaram-se em amena cavaqueira de guerra nada menos nada mais que: três alferes, três furriéis milicianos e um milícia, Zé de nome e libanês de nacionalidade, sendo de alcunha portanto, o Zé Libanês e que também ninguém sabia porque é que aquela espécie aparecia fazendo a guerra.
Conversa animada no grupo quando, num repente, um clarão chama aflorou da terra, secundado de um grande estrondo e o grupo foi atirado cada um para seu lado. A meio da picada, Chico Zé de gatas em frente de Vagabundo, dizia para este:
– Estou ferido!… Estou ferido!...
Vagabundo vergado, apalpando-se todo dos pés à cabeça, sem olhar para o seu companheiro e tendo em atenção apenas a confirmação da apalpação que a si próprio fazia, e só com o sentido em si, respondia ao companheiro:
– Não, não estás!
Por momentos a mente de todos entrou no vazio. Um gemido levou-os a voltarem à realidade. Olharam na direcção do gemer agora mais forte, e todos viram o alferes de Artilharia estendido na berma. Perna direita levantada, onde apenas uma óssea forca tíbio-perónia aparecia por entre a chamuscada calça camuflada, pois o pé direito tinha desaparecido. Porra!... uma mina anti-pessoal.
– O enfermeiro depressa!– gritou Almeida.
O artilheiro, que em princípio não ia p’ró mato nem andava no duro e na dança, ali estava agora a receber os primeiros socorros, com esfacelamento total do pé direito, fractura do terço inferior na mesma perna, queimaduras na coxa esquerda e nos braços. Mais um inválido com vinte e quatro anos!
O cabo de transmissões entra em contacto com o aquartelamento que, de imediato, pede evacuação a Bissau que será depois feita de avião. Mas agora como vai ser? Há que levar o camarada para Cufar. Mais outra loucura. Mas a guerra é isto!... Chico Zé, cara toda chamuscada, camuflado cheio de terra, oferece-se:
– Eu levo o Évora para Cufar!
Todos conhecemos a perícia do Zé, autêntico condutor de ralis, mas é perigoso voltar só. Almeida decide rapidamente, acede e manda subir para o unimog o enfermeiro entregando-lhe uma G3 e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. Chico Zé dá a G3 ao condutor que cede o lugar. Com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, Chico Zé, conduzindo o unimog, arranca direito a Cufar. É assim a guerra, ou ficamos todos ou salvamos um!...
Almeida manda o cabo transmitir para Cufar, de onde saem uma auto-metralhadora e o piquete para vir ao reencontro.
O enfermeiro depois contou que nunca tinha andado assim de carro.
– Aquela “merda” até andava só sobre duas rodas!
Quando a auto-metralhadora e o unimog do piquete faziam a aproximação para entrar na estrada Cufar-Catió, o Chico Zé entrava no fundo da pista a alta velocidade deixando os outros para trás, fazendo a inversão de marcha.
– Eu levo o Évora para Cufar!
Todos conhecemos a perícia do Zé, autêntico condutor de ralis, mas é perigoso voltar só. Almeida decide rapidamente, acede e manda subir para o unimog o enfermeiro entregando-lhe uma G3 e nomeia outro soldado, que também salta para a viatura. Chico Zé dá a G3 ao condutor que cede o lugar. Com o ferido esticado na caixa, o enfermeiro e soldado segurando o infeliz, Chico Zé, conduzindo o unimog, arranca direito a Cufar. É assim a guerra, ou ficamos todos ou salvamos um!...
Almeida manda o cabo transmitir para Cufar, de onde saem uma auto-metralhadora e o piquete para vir ao reencontro.
O enfermeiro depois contou que nunca tinha andado assim de carro.
– Aquela “merda” até andava só sobre duas rodas!
Quando a auto-metralhadora e o unimog do piquete faziam a aproximação para entrar na estrada Cufar-Catió, o Chico Zé entrava no fundo da pista a alta velocidade deixando os outros para trás, fazendo a inversão de marcha.
Primeira vítima da estrada maldita! Eles não perdoam!...
Cufar informa e continuamos para Catió. Chegados a Catió não dá para mais nada, é largar os obuses e correr para o cais, aproveitando a maré, pois há que embarcar para o Cachil, na ilha do Como. Temos de fazer a segurança àquele desterro, enquanto os sacrificados vão efectuar uma operação ao Tombali. É chegarmos nós e saírem eles.
Ficam o primeiro sargento e os cozinheiros, para nos darem as explicações sobre a defesa deste forte Apache. Também não tem explicação plausível pois, é já lugar comum que só quem passou por terras da Guiné e pelos diversos aquartelamentos pode aquilatar do poder de adaptação do valoroso soldado português. Desfalcados, com cozinheiros e outros pobres de Deus, defender um aquartelamento daqueles?!... E se o IN soubesse, e fosse lá? Escaqueirava aquela merda toda e os que não morressem seriam apanhados à mão. Vagabundo confirma “in loco” as descrições do Cachil feitas pelo Fernando, homem dos morteiros. Já não vale a pena comentar pois, por vezes, sente-se mesmo a tristeza e a impotência de uma tropa tipo pé descalço.
Quero antes Cufar onde há ar e espaço, quero ir para a estrada, prefiro morrer nas matas de Cabolol do que aqui entoupeirado neste pequenino murado quintal.
A CCAÇ continua imparável, há que aproveitar o desempenho e moral desta gente. As operações sucedem-se, é a hora certa para dar um salto ao outro lado do Cumbijã, à quinta do Nino, e verificar como estão as coisas por lá. A 8 de Julho de 1965, a Companhia embarca em Impungueda a fim de levar a efeito a operação Satan. Pelas quatro horas da madrugada as três LDM que transportam a CCAÇ encontram-se frente a Caboxanque. Detectados, as forças do PAIGC abrem fogo contra as NT, as lanchas conseguem acostar e o primeiro grupo de combate a desembarcar contra-ataca, desalojando os guerrilheiros.
Conseguindo progredir através de Caboxanque e depois Flaque Injã, pelas 7h00 consegue-se detectar e assaltar um acampamento, o qual foi destruído bem como várias instalações e uma grande escola do PAIGC, onde é apreendido bastante material e documentação. Entre a documentação são encontradas várias fotografias, uma das quais do nosso amigo Nino em Pequim.
Na descida de Flaque Injã para Caboxanque somos emboscados. Reagindo bem, a Companhia consegue abater seis guerrilheiros, capturar uma espingarda automática e diverso equipamento. No cais de Caboxanque onde se nos juntara a 4.ª CCAÇ de Bedanda, enquanto se aguardava o embarque, fomos de novo fortemente atacados, mas o IN foi repelido. Sofremos um ferido grave que foi evacuado de helicóptero para Bissau. Já desflorámos o Cantanhez, dizia Jata, e era verdade…Caboxanque e Flaque Injã ficaram a conhecer os “Lassas” na operação Satan.
Há um caso que nos preocupa. Capturar o Alfa Nan Cabo. Já fizemos três golpes de mão para o apanhar e nada. O gajo parece uma enguia. De etnia balanta, cuja religião reside no respeito e obediência ao espírito dos antepassados, já que têm a experiência vivida em dois mundos, vivos e mortos, por consequência com dupla experiência da vida vivida nessa dualidade, estão em melhores condições de orientarem os que andam por cá. A vida é movimento, movimento é vida.
O soprar do vento, o ondular das águas, as chuvas fustigando, o enfurecimento do mar, os rios de maré na sua maravilhosa dualidade, de corrida para a foz ou para montante, o relâmpago rasgando o céu, todas as forças que se manifestam animando os corpos são espíritos que tudo controlam do além.
Voltamos a Cabolol. O guia vindo do Batalhão garante-nos haver um novo acampamento, mas não encontramos nada. Leva-nos ao antigo acampamento que verificamos continua destruído. Divergimos para a tabanca de Cantumane que verificamos encontrar-se deserta. Procedimento normal em termos de anti-guerrilha, proceder à revista de todas as moranças e depósitos de arroz.
Quando o grupo destinado executava essa tarefa, a CCAÇ foi violentamente atacada por um numeroso grupo IN que se encontrava emboscado na mata a norte. Três ataques sucessivos com armas ligeiras e RPG, verifica-se a impossibilidade de utilização de morteiros, resultante da proximidade em que as forças se encontram. No entanto é-nos dada a oportunidade de contactarmos com um novo, para nós, método de emboscada, a utilização de abelhas. Os cortiços são postos em pontos estratégicos e, ao desencadearem a emboscada, fazem fogo sobre os referidos cortiços.
As abelhas “lassas” saem lançando-se enfurecidas sobre os nossos homens, desarticulando completamente o dispositivo dos grupos de combate, ficando muita gente incapacitada para combate, e para responder à emboscada. Com algum esforço, consegue-se fazer o envolvimento do IN provocando-lhe várias baixas confirmadas. Pela nossa parte sofremos mais um ferido grave que não viria a resistir, o nosso Madeira, sargento Leandro Vieira Barcelos, é atingido no fígado por uma bala depois de lhe ter perfurado o rádio. O Barcelos não se aguentou e fina-se no dia seguinte, no HM de Bissau. A CCAÇ sofre mais três feridos graves por picadelas de abelhas, que foram também evacuados para o Hospital. Limpeza feita, Cantumane mais uma vez destruída, assim termina a denominada operação Trovão.
O célebre e avidamente tão procurado Alfa Nan Cabo, de etnia balanta, apresenta-se no aquartelamento de Cufar, entregando-se às nossas forças, passando a colaborar connosco. Irá ser um elemento extraordinário com grande influência na prestação dos Lassas, os quais lhe ficarão a dever o safanço de um morticínio, no outro lado do Cumbijã, que mais tarde contaremos.
Alfa Nan Cabo, balanta, desertor do PAIGC |
Quero só descrever-te agora, correndo uma cortina sobre a tua vida de menino, blufo e homem. Basta recordar aquele lagarto parecido com uma iguana. Ali nas brasas e a malta toda enojada, verificando aquele manjar, cobiçando apenas a pele do lagarto para curtir. Belo petisco! Apenas uma pequena homenagem, meu irmão, à tua compleição física: muito próximo do metro e noventa de altura, com noventa quilos de peso, anda descalço saltando aos pés juntos para cima de um unimog, levanta o dedo grande do pé direito, dá um chuto na bola de futebol a dez metros do varandim do Comando, e esta rebenta contra o muro.
Cheira o IN à distância. Calcula-se que aqui no sul, o exército popular do PAIGC com maioria de guerrilheiros balantas, cinquenta por cento será formado por indivíduos cuja compleição física será como a do Alfa. Já verificámos isso nos que abatemos e fizemos prisioneiros. Estamos feitos!
Voltamos a caminhos de Cabolol mas seguindo a estrada, passamos nas bordinhas da mata e vamos até à tabanca de Cobumba, numa acção punitiva, por a sua população dar guarida a um grupo de guerrilheiros, que teria causado várias baixas à 4.ª CCAÇ estacionada em Bedanda, entre as quais se contava um sargento.
Entramos no turbilhão da mata de Cufar com o Torcásio a borrar-se todo e a vomitar, não sabemos se foi qualquer estragada que se lhe deu, ou se o medo que ingeriu, pois quem tem mulher e filhos sempre o “cu” lhe traz a recordação. Já parámos três vezes e com o barulho das descargas e ânsias dos vómitos, de certeza não tardará a nossa posição a ser detectada. Noite de breu… não chove… assim será melhor.
Pára novamente a coluna.
– Que porra!...
Passamos a noite nisto e não tardará que estejamos a levar nos cornos em vez de atingirmos o objectivo, o furriel liga o rádio banana, mas desliga imediatamente, o Fumaça que seguia na sua frente vira-se e sussurra:
– Furriel, formigas das grandes numa abatis!
– Porra!... Só faltava esta!...
Toca a despir, se estas gajas se pegam à roupa estamos fodidos. Bonito!... O furriel sorri perante o imaginável espectáculo, se fosse noite desse maravilhoso luar africano. Uma centena e tal de cus em movimentação pela picada fora. Trampa de guerra!
Mesmo com todos os contratempos, o objectivo é atingido sem problemas. Cobumba é cercada e a população é apanhada de surpresa. Começa a limpeza com um certo alarido entremeando algumas rajadas sobre alguns fugitivos. Como habitualmente é dirigida à população uma prelecção sobre a guerrilha. É feito prisioneiro o guerrilheiro Malan Cassamá que irá para Cufar com mais uns elementos da população, para averiguações. Assim a operação Vindima termina.
Época de chuvas. Vagabundo deveria estar a caminho de férias, para na sua Planície apadrinhar o casamento de sua irmã Adelaide mas… sai tudo furado. A morte do pobre sargento Madeira, alterou a escala das férias. Faça-se o casamento sem o padrinho, haverá sempre alguém que honrosamente faça a substituição. O furriel Vagabundo tem outras festas a realizar.
E temos mais uma surpresa: Tui Na Defa, ex-guerrilheiro do PAIGC, apresenta-se em Cufar, e passa a fazer parte da Companhia de Milícia 13. Meu bom Tui, como eras simpático e que grandes amizades tinhas com todos os Lassas. Soubemos já em Lisboa que também tinhas ficado na estrada maldita. Que o teu iran te dê o respectivo valor, porque para as pátrias a quem serviste, apenas foste um objecto. Apenas os amigos que criaste, se lembraram de ti.
É-nos dada uma rara oportunidade para observar as maravilhas da natureza e seus elementos nas suas mais extraordinárias facetas incluindo as mais violentas e destruidoras. Saída nocturna na mata de Cufar Nalu, para em patrulhamento visitar o velho Acampamento do PAIGC, não vá ter inquilinos novos!
O céu pode considerar-se como uma tela da Natureza, sendo a base de todos os fenómenos atmosféricos correntes que nele se reflectem. Seguindo na célebre bicha de pirilau, somos surpreendidos ainda escura madrugada, no labiríntico carreiro dentro da mata por selvagens sons esquisitos. Babuínos, aves, toda a espécie animal ali vivente se ouve num estranho ruído de aflição, que nos transmite também uma sensação algo estranha. Que se passará? Eis que em segundos a selva é violada por um clarão de deflagração cósmica e imediatamente, o ribombar de enorme trovão ressoa até aos confins das mais ignotas matas. Aí está! Produzindo um dos fenómenos meteorológicos mais espectaculares e violentos resultantes de apenas três ingredientes: ar, água e calor.
Uma trovoada tropical! Quase diárias nesta época, não tínhamos apanhado nenhuma assim nocturna isolados na mata, sendo envolvidos no seu turbilhão de água, caindo em cascata. A sua mais perigosa manifestação, os raios, colossais descargas eléctricas podendo atingir potências inacreditáveis de volts, aquecendo a milhares de graus centígrados, próximo da velocidade da luz, provocando uma explosão sob a forma estrondosa ecoante, o trovão. A energia é tal que ilumina toda a mata e que nos deixa mais cegos por momentos, na escuridão já existente. Depois da cegueira resta-nos a sorte divina de não sermos alvejados, porque o esgaçar das monstruosas árvores, parece som de papel rasgado por nervosas mãos, elevado a milhões de decibéis. Ficamos completamente desnorteados, como formigas saídas do carreiro por entre manada de elefantes. Encharcados até aos ossos, mãos dadas para não nos perdermos, vamos andando devagar com o pensamento não se sabe onde (nem querendo saber de momento). Assim vamos ao encontro do nosso destino…
Vagabundo confirma que o homem se descobre, quando se mede com o obstáculo. Como chega rapidamente sem nos apercebermos, assim se dissipa o tornado deixando apenas o seu rasto devastador.
Passamos pelo destruído acampamento que continua na mesma como coisa assombrada. Ali, com certeza o espírito dos mortos vagueará e imporá o temor e a impossibilidade de reconstrução.
Rompeu a manhã e descendo pelo lado contrário, direito à picada da antiga tabanca de Cufar Nalu, vão-se os camuflados enxugando pelo calor corporal emanado, enquanto o pensamento mais tranquilizado se desprende e procura outras paragens.
Vagabundo ligando os fenómenos da natureza, sorri interiormente e relembra os seus tempos de escuteiro, a trovoada no acampamento no eucaliptal da Fonte da Eira e os resistentes ao (bronquítico ataque). Também a chuva caía como Deus a mandava, trovejando fortemente, mas foram fortes, resistentes, verdadeiros rapazes de Baden Powell. Levantando o pano da tenda para comunicarem com os da frente, a panela de arroz com carne no meio, à vez por ordem não comandada, a colher ia entrando e enchendo aquelas bocas sem temor da trovoada.
Por onde andais vós, meus grandes amigos? Peta, Carmélia, Casado, Pitórrela, Mochila e outros? Quem sabe não vireis aqui bater com os costados para conhecer esta bonita terra? Olhem, eu vou enxugando esta merda de roupa camuflada no corpo, só que já caminho de perna um pouco aberta pois já sinto os tomates assados. Um dia iremo-nos encontrar, se tudo correr bem e tiver a sorte de não levar um tiro nos cornos, havemos de beber uns copos à nossa saúde. O sorriso apareceu novamente ao relembrar outras aventuras dos tempos de puto e gandulo.
Vagabundo caminhando agora, já de regresso, na leve subida de acesso ao fundo da pista de aviação na estrada Cufar /Catió, a porra do camuflado mal enxuto de água mas agora molhado pelo suor, foi atingido o fundo da pista, com o pensamento já em qualquer coisa para comer, pois o esgalgado estômago já se encontrava em vazia badalação de horas de almoço. Voltando mais uma vez à sua Planície e ao familiar convívio dos seus mais queridos, o furriel relembrou seu avô, quando a hora de almoço por vezes se atrasava, o simpático e amigo velhote recitava:
Doze horas é meio dia,
Quem não almoça, enfraquece!
Já a água não me mata a sede,
Já o meu amor não me esquece!
Como vês, Tânia, até o velhote traz a recordação. Adorável este sabedor avô. Parece que está aqui, nos seus segredos, fugindo ao controlo das filhas, minha mãe e de minha madrinha.
– Pst! Pst! Tens bagalhuça?
E sorrateiramente fazia o gesto, esfregando o indicador e polegar.
– E ela é bonita? Respeita sempre!
Simplesmente maravilhosa, esta criatura, com quem tanto convivi desde que enviuvou, eu apenas com quatro anos fiquei a ser o seu “companheiro”, pois sempre assim me tratou.
– Por onde andará aquela alminha, meu doce companheiro?
Nunca imaginaste bom avô! Nem terás conhecimento do abutre em que se tornou o teu companheiro. Ainda bem que ignoras a guerra.
Chegados! Vamos ao duche e ao almoço que a fome é negra.
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E sorrateiramente fazia o gesto, esfregando o indicador e polegar.
– E ela é bonita? Respeita sempre!
Simplesmente maravilhosa, esta criatura, com quem tanto convivi desde que enviuvou, eu apenas com quatro anos fiquei a ser o seu “companheiro”, pois sempre assim me tratou.
– Por onde andará aquela alminha, meu doce companheiro?
Nunca imaginaste bom avô! Nem terás conhecimento do abutre em que se tornou o teu companheiro. Ainda bem que ignoras a guerra.
Chegados! Vamos ao duche e ao almoço que a fome é negra.
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Nota do editor:
Último poste da série > 19 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17061: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XVI Parte: Cap VIII: Brincadeiras no mato... ou a praxe em tempo de guerra
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