Não há mortes grátis
por Luís Graça
Imagina que morres no hospital,
como um cão,
abandonado.
O único gesto, humano, que tiveram para contigo,
foi o da jovem enfermeira
que, com todo o profissionalismo,
te deu a injeção de morfina
e correu a cortina em redor da tua cama,
para que o teu estertor,
a tua morte lenta,
não perturbasse os vivos,
nem o fluxo dos que esperavam no terminal da morte.
Lembro-me de um médico francês,
conceituado professor,
que um dia definiu o hospital
como o lugar onde se morre
... sem uma palavra.
Depois do encarniçamento terapêutico,
a treta da humanização acaba aqui.
Os médicos, em face da derrota,
que é o triunfo da morte sobre a ciência,
batem discretamente em retirada.
A medicina só se ocupa dos vivos,
a morte pertence a outro pelouro…
Tal como na guerra, lembras-te ?
No helicóptero, nas evacuações Ypsilon,
não iam cadáveres,
só os feridos, graves, que ainda podiam salvar-se,
se chegassem em menos de trinta minutos ao HM 241, em Bissau...
Os mortos, esses, levavam-se às costas,
em padiolas, improvisadas,
quatro paus, atados por lianas,
com um fundo feito por um dos nossos impermeáveis.
Morres como um cão, camarada,
e, pior ainda, imagina
que ninguém reclama o teu cadáver,
ou porque não tens família,
parentes, amigos, conhecidos,
ou porque a tua família está longe
ou, mais provavelmente,
não tem recursos.
Se ninguém reclama o teu corpo,
os gatos pingados perdem o dia,
não faturam,
ninguém te lava,
ninguém te veste,
ninguém te calça,
ninguém te cruza as mãos…
Ou, pior, ninguém te enterra na terra da verdade
ou, muito menos, te manda para o forno crematório,
cumprindo a tua derradeira vontade.
Até um morto, camarada, custa dinheiro,
um enterro, já não direi cristão, mas humano, decente,
custa uma pipa de massa…
Mesmo que alguém, por dever profissional,
ou simples caridade, ou compaixão,
ou simples caridade, ou compaixão,
acione o teu direito constitucional (ou simplesmente humano)
a uma morte condigna,
incluindo as cerimónias fúnebres,
os burocratas da segurança social
vão, primeiro, consultar a tua ficha
e fazer o teu deve e haver…
e fazer o teu deve e haver…
E, na melhor das hipóteses,
podes ser enterrado ou cremado,
a crédito, a prestações,
se a funerária for pelos ajustes…
Nas terras pequenas,
não na cidade grande, anónima,
é possível pagar a prestações
a despesa do funeral,
ou contar com o subsídio da segurança social
que, tal como o Estado, paga,
mesmo que tarde e a mais horas...
Aqui não adiante puxares pelos teus pergaminhos,
ou pelas cruzes de guerra que ostentavas no peito
no 10 de junho dos combatentes
da guerra do ultramar.
Meu camarada, meu bravo, meu herói,
tu, depois de morto,
não tens filhos, netos, parentes,
amigos, colegas, camaradas,
és um “presunto”
e, com sorte, vais na “salgadeira”,
o caixão de chumbo,
que chegará aos tombos, por terra e por rio,
até ao cais de Bissau,
à espera de embarque, no Niassa ou no Uíge...
Três ou quatro meses depois,
talvez chegues ao cemitério da tua terra
para ficares na tua última morada
e repousares finalmente em paz!
Agora que a guerra acabou há muito
(mesmo que para ti nunca tenha acabado!)
só tens um cenário à tua frente,
és um sem-abrigo, à espera da última morada,
estás num câmara escura,
metido num saco de plástico, preto,
com fecho éclair,
nu e congelado,
na morgue do hospital,
em trânsito,
à espera de um carimbo e de uma autorização de despesa,
que podem demorar semanas…
Há 50 ou 100 anos atrás,
irias imediatamente para a vala comum,
sete palmos de terra e uma pazada de cal viva,
que ao fim de 24 horas tresandavas a morto,
e o cheiro a morto é o único cheiro
que os vivos não suportam!
Há 50 ou 100 anos atrás,
irias imediatamente para a vala comum,
sete palmos de terra e uma pazada de cal viva,
que ao fim de 24 horas tresandavas a morto,
e o cheiro a morto é o único cheiro
que os vivos não suportam!
Bem razão tinham os gregos da antiguidade clássica,
que punham na boca dos seus mortos uma moeda,
para pagar ao barqueiro
que fazia a travessia do rio Caronte…
Alguém se esqueceu, camarada,
do último gesto de misericórdia,
pôr-te a moeda, entre os dentes cerrados,
para o maldito barqueiro de Caronte:
... é que não há mortes grátis!_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 18 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17057: Manuscrito(s) (Luís Graça) (112): ...Os feitos da arte e da ciência da saúde pública... "eu já não cantarei por toda a parte, / Jubilado, falta-me o engenho e a arte"...
Último poste da série > 18 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17057: Manuscrito(s) (Luís Graça) (112): ...Os feitos da arte e da ciência da saúde pública... "eu já não cantarei por toda a parte, / Jubilado, falta-me o engenho e a arte"...
13 comentários:
Este caso é recente e envolve um camarada nosso... Mas lembro de ver uma reportagem recente da RTP: "Os mortos que ninguém quer"...
(...) Todos os anos, há pessoas que morrem sem que ninguém apareça para reclamar os corpos. Em 2015, ficaram por reclamar 39 cadáveres no Instituto de Medicina Legal." (...)
6/11/2016
https://www.rtp.pt/noticias/pais/os-mortos-que-ninguem-quer_v959897
LG
Olá Luís
Isto não é um poema.
Não adianta disfarçá-lo de poema.
Nem todos sabemos rimar e isso é que é essencial para que haja poema.
De outra forma, o texto, por mais sentido, é isso mesmo... um texto.
Isto é uma carta que escreveste a todos nós para nos levar a pensar.
Ora dá-lhe essa forma e vais ver que fica melhor... muito melhor.
Não há versos "brancos". Se assim fosse também os haveria tintos, palhetos, rosés, adamados de colheita tardia, etc...
Um Bom domingo
António J. P. Costa
Meu caro Tó Zé:
Também não disse em parte alguma que era um poema... Nem te vendi "gato por lebre": poderia ter escolhuido a série "Blopoesia".. e aí estavas no teu direito reclamar... alegando "publicidade enganosa"...
Nem a forma aqui importa...É um texto, "manuscrito", do meu diário. Felizmente que agora tenho mais tempo para escrever o meu diário... Desde a Guiné, que mantenho, com altos e baixos, um diário...
Escrevi o texto, com alguma emoção e indignação, ao saber do caso de um camarada nosso que morreu no hospital e a quem não foi feito, de imediato, o respetivo funeral, muito simplesmente porque a família não tinha dinheiro para pagar à funerária...
A morte tem os seus "trâmites legais"... Estes casos não são tão raros quanto isso... Não quis nem quero fazer "poesia" com isto... Tentei transmitir a emoção e a indignação que senti na altura, ao saber desta história, por portas e travessas... Não o datei, e omiti mais pormenores, para não se especular com a identidade do morto... O caso pode ter semanas, meses ou anos, não importa...
Se é um poema (livre), se é um texto poético, se é prosa, que sejam os leitores a dizê-lo... Fernando Pessoa, Sophia de Melo, Ruy Belo, Alecandre O' Neil... que são alguns dos meus poetas de eleição, não escreviam em "verso"... Mas Fernado Pessoa tem algumas das melhores quadras populares da poesia portuguesa... E eu também sei "fazer quadras" e até sonetos: devo ter já alguns milhares de quadros, com versos de 7 sílabas métricas, tudo a rimar, como mandam as regras... Mas poucas dessas quadras serão poesia pura e dura...
Aqui, neste caso, é o conteúdo, não é a forma que está em causa... Poderia pô-lo em verso, mas seria indecoroso... e sobretudo levaria o seu tempo... A poesia é trabalho de artesão... Camões levou provavelmente vinte anos a escrever os oito mil e tal versos dos "Lusíadas"... e eu não tenho a veleidade de competir com ninguém, muito menos com o génio do Camões...
De qualquer modo, obrigado, pela preciosa atenção que dedicaste ao meu "manuscrito"... O tempo é o mais escasso recurso que temos... Espero que não tenhas perdido o teu tempo ao ler este poste... Se conseguiste apanhar a minha pobre mensagem, fico feliz!...
Que me interessa a mim, pobre ignorante, que seja prosa ou poesia!
Sou, isso sim, sou capaz de ver que existe uma voz, um grito, cheios de ternura, de afeição, de amor, de carinho. que só por si, são capazes de , não digo calar, mas de envergonhar uma sociedade que te votou a um imerecido desdém, meu caro amigo e Combatente que agora partes!
Vasco A. R. da Gama
De vez enquanto somos confrontados com coisas, que não julgávamos possíveis dado ao carácter melindroso e religioso, no que respeita a normas sociais e humanas.
Não é assim que acontece na verdade.
Se o morto não não teve em vida actividade contributiva suficiente, a Segurança Social não paga. No caso que se passou agora, primeiro disse que sim que se poderia proceder ao acto de cremação para dias depois dizer exactamente o contrário.
Ele vivia de uma pensão que lhe foi atribuída (65%) pela a sua evacuação da Guiné em 1972. Não tinha mais rendimentos há muito tempo, uma vez que a saúde não lhe permitia. Francamente nunca soube de quanto era a sua pensão uma vez que o Carlos, que não escondia as suas ideias nem ideais, escondia as suas necessidades e o que se pode chamar de misérias.
Assim a Família (filha e um neto menor), que não teve posses para arcar com o funeral. Recorreu à Santa Casa da Misericórdia onde ficou a aguardar "vez", possivelmente para ser enterrado como indigente.
Quase um mês depois de ter morrido é finalmente enterrado sem cerimónia de qualquer espécie (no dia 9 de Março) e a família é avisada uma hora antes.
Bem sei que o nosso camarada se dizia à parte deste tipo de sociedade e pela forma com que encarou a morte escolhendo a cremação, escapava à simbologia que a grande maioria dos portugueses conferem ao ritual com que os corpos descem à terra. Mas a nós compete-nos homenagear a pessoa naquilo que ele representou enquanto vivo e pensante.
Assim no dia 25 de Março 2017 um grupo de amigos, que na sua esmagadora maioria nunca com ele privou fisicamente, vai estar pelas dezasseis horas desse dia ao portão do cemitério da Amadora, para assim lhe dizer onde ele esteja, que não passou por esta vida sem deixar marcas.
Eu ainda vou escrever um lembrete para ser publicado mais perto se possível e quem estiver perto e na disposição de comparecer será bem vindo.
Esperamos alguma gente da comunidade guineense esteja presente
Um abraço
Juvenal, eu queria proteger a família, a filha, o genro, o neto, tu,os camaradas, amigos... Tu eras, na Tabanca Grande, o mais próximo dele... A partir de agora não preciso "guardar segredo": é do Carlso Filipe, nosso camarada, que falamos... Morreu no princípio de fevereiro como foi enterrado como um cão um mês depois...
Não estarei em Portugal no dia 25 de março mas apelo a todos os camaradas da zona da Linha para se solidariezarem com a iniciativa do Juvenal Amado.
Umn adeus ao nosso camarada e grã-tabanqueiro Carlos Filipe para quem a vida foi madrasta!... Luís Graça
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Carlos%20Filipe
Juvenal, não podemos funcionar só em circuito fechado... Este caso tem de chegar á comunicação social, à Liga dos Combatentes, às associações de veteranos, à Associação dos Deficientes da Forças Armadas, ao governo... Vê o que queres e podes fazer, usando o nosso blogue... O Carlos Filipe, como tantos outros, serviu a Pátria, é um camarada nosso, não pode ser tratada pelos burocratas como um cão, um número, uma coisa... Foi chocante o que se passou!... Devíamos ter intervindo há mais tempo, quebrando o sigilo!... Afinal, quisemos proteger quem ?... Luís Graça
... É doloroso saber pelo Juvenal o triste (e sobretudo indigno) desfecho deste "caso":
(...) "Assim a Família (filha e um neto menor), que não teve posses para arcar com o funeral. Recorreu à Santa Casa da Misericórdia [da Amadora ?] onde ficou a aguardar "vez", possivelmente para ser enterrado como indigente.
"Quase um mês depois de ter morrido é finalmente enterrado sem cerimónia de qualquer espécie (no dia 9 de Março) e a família é avisada uma hora antes." (...)
Camarigos,
Que me importa que seja verso ou prosa que acabei de ler. Li um texto realista. Gostaria de não ter lido o que li.
No CTIGuiné também fiz de cangalheiro chefiando uma coluna auto a Bambadinca com cinco cadáveres mortos na noite anterior.
Conheci a pessoa em causa na Foz do Douro. A última vez que o vi foi em Galomaro, em Março de 1972.
É triste saber do seu trágico fim como cadáver. O nosso camarada não merecia isso.
Num texto demasiadamente sério para certos desvios,um senhor coronel de artilharia, em comentário mais acima, preocupa-se com discutíveis formalismos poéticos.
Será que,como nos obuses,puxa-se o cordel e PUM ?
Rui Silva Ribeiro
Oh PUM
Era para te responder, mas não respondo. Pronto! Pum!
De qualquer modo quero recordar que a observação que fiz é de carácter formal e não de conteúdo.
Esse elogiei e é indiscutível.
O autor compreendeu e sabe que a minha observação é feita pela positiva, como se vê pelo comentário com que me contrabateu.
Mesmo assim, se eu não tivesse feito aquela observação não teria havido 9 comentários!
Nove comentários! É muito!
E isso é que é positivo.
PUM!!!!!!!!!!!
Um Ab.
António J. P.Costa
Mais um a reportagem sobre "os mortos que ninguém quer"...
Hospitais Mário, um dos 66 mortos que ninguém quis
Os mortos que ninguém quer Mário teve pai e mãe. Terá tido uma história de emigração. Mais nada, nem morada, nem ninguém que quisesse saber disso. Morreu só, no hospital. Sete meses depois, puseram-lhe terra e a cruz 237 em cima.
Ivete Carneiro
JN - Jornal de Notícias, 10 de maio de 2015
(reproduzido na ASJP - Associação Sindical dos Juízes Portugueses)
http://www.asjp.pt/2015/05/10/hospitais-mario-um-dos-66-mortos-que-ninguem-quis/#
Meu caro Tó Zé:
Tu és o "spice of life" deste blogue... O piripiri!... Acondimentas, animas, dás vida, d´+as cor e sabor, a este blogue que tem andado chocho e murcho...(Também não admira, a guerra da Guiné já acabou há meio século e andam para aqui uns "velhadas" a exorcizar fantasmas!)...
Vais para o quadro de honra da Tabanca Grande!.. LG
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