CARLOS FILIPE COELHO
1. Mensagem de hoje de madrugada do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), para nos falar, mais uma vez, do Carlos Filipe Coelho, por ventura um inadaptado enquanto vivo e um incómodo depois de morto.
Caros camaradas
Quando somos jovens dizemos "eu vou fazer isto, vou fazer aquilo, farei da vida o que quiser".
Quando enfim chegamos à idade em que temos mais passado do que futuro, dizemos simplesmente "É a Vida".
Como prometi fazer um levantamento de alguma coisa que o Carlos Filipe escreveu, aproveitei aqui uma recordação maravilhosa da vida simples mas feliz que também o Carlos teve. Qual será a dose de felicidade que temos direito? Será que terá sempre um preço, qual será o preço que cada um terá de pagar pelos momentos de felicidade que gozou ao longo da vida? Do blogue Recortes Para o Meu Neto retirei esta recordação que fala do Natal. E Porquê do Natal? Porque foi um Natal feliz ao contrário de muitos outros infelizes, solitários e doridos. Chama-se o conto Natal Imprevisível.
NÃO ADIANTA UM HOMEM MANTER O LIVRO DA SUA VIDA FECHADO. HAVERÁ SEMPRE ALGUÉM QUE O VAI ABRIR MESMO QUE PARA LER UMA SÓ PÁGINA.
Desconheço se é do Carlos esta citação, mas parece-me apropriada à sua personalidade, por vezes ambígua.
************
2 . O nosso camarada teve sempre amigos, e do Blogue "Uivemos Juntos", retirei este texto em sua homenagem.
Com a devida vénia ao Blogue Uivemos Juntos
************
3. NATAL IMPREVISÍVEL
Carlos Filipe Coelho
Ora o previsto era que próximo das duas começarias a cozinhar o bacalhau, batatas, couves, o habitual desta noite... A menina estaria a dormir e acordaria, conforme a sua vontade para confraternizar e abrir as suas prendas. Respeitávamos muito os horários da criança, mesmo abdicando de alguns prazeres para nós.
Não havia telemóveis neste tempo. Algum frio da época e uma viagem de comboio com muito poucos passageiros algo "tristes", mas eu ansioso de chegar, porque sabia que ia ter como sempre uma maravilhosa companheira à minha espera para uma noite de carinho, como tantas outras mesmo quando não era natal; ia pensando nas cores dos embrulhos para haver uma distribuição equitativa com a nossa filha pequenina.
Abro a porta, e vens ao meu encontro com o ar mais triste deste mundo, afogada num desânimo que parecia que não teres força para estar em pé. Mais tarde compreendi que este desânimo deveu-se ao facto de saberes que o Natal para mim era a festa do ano mais importante, não por eu ser ou não ser católico, mas porque tinha sido o meu ninho de sonhos em criança esperando pelas prendas que nunca vieram. Céus... com uma quantidade suficiente de guloseimas, as frutas secas, bolo-rei, havia pão, marmelada, nozes, pinhões ou seja de tudo um bocadinho, nem que fosse só para desougar... porque havíamos de ficar assim tristes? O que aconteceu ?!...
Estava combinado que próximo das duas começarias a cozinhar, para quando eu chegasse estar quase pronto, mas fatalidade das fatalidades o gás de garrafa acabou-se... Se calhar tinha mesmo que ser assim, porque ficou a ser um Natal com "sabor" diferente e durante anos foi acontecimento de referência nas nossas conversas natalícias. Creio que consideravas que me ia sentir talvez muito afectado.
Então acordamos que tinham que ser quebrados todos os nossos rituais, senão a coisa não ficava bem. Primeira decisão; vamos comer no chão. Segunda como o bacalhau estava quase cozido (o gás podia durar mais um bocadinho..) vamos fazer esfiado com azeite e cebola. E o resto prossegue normalmente.
Claro que no meio disto a menina já tinha acordado, teve manifestações de espanto por ver comida no chão em cima da toalha que anteriormente tinha visto na mesa; e a situação ia ficando complicada porque a criança não se apercebia de que não podia andar em linha recta, devido à falta de um "generoso" espaço porque estávamos num apartamento J. Pimenta.
Acesas as velas, nós aconchegando o estômago com o singular bacalhau, a criança "petiscando" as doçarias lá fomos criando a nossa noite de Natal, a mulherzinha recuperando do seu desgosto, culminando num rir de felicidade pela forma como as coisas decorriam. Alegria que aumentou com a distribuição das prendas entre os três, que se prolongava sempre, porque havia necessidade de dar oportunidade aos afectos e à apreciação das coisas neste caso principalmente dos brinquedos. Até que que a criança foi viajar nos seu sonhos e nós... nós fumamos mais alguns cigarros, mais um copo de qualquer coisa e mais um copo de sumo, talvez mais uns pinhões, o volume do som da televisão muito baixinho.
Concluímos que tudo tinha sido bom e diferente porque nos amávamos. E neste Natal, cada um de nós foi tudo o que o outro quisesse que fosse.
Até breve amor.
PS. A menina é a tua mãe... Guilherme
************
4. Diz- nos ainda o camarada Juvenal Amado
Também sou de opinião utilizar este espaço para denunciar, e agradeço a quem me ajude a fazer chegar o nosso desgosto e denuncia à Associação dos Deficientes das Forças Armadas, à Liga dos Combatentes, ao Governo, etc.
É um veterano mas acima de tudo um ser humano que foi enterrado como de um cão abandonado se tratasse. De vez enquanto somos confrontados com coisas que não julgávamos possíveis dado o carácter melindroso e religioso, no que respeita a normas sociais e humanas. Se o falecido não teve em vida actividade contributiva suficiente, a Segurança Social não paga o funeral.
No caso presente, primeiro disseram que sim, que se poderia proceder ao acto de cremação, para dias depois dizerem exactamente o contrário.
O Carlos vivia de uma pensão que lhe foi atribuída (65%) pela a sua evacuação da Guiné em 1972 mais a referente à sua mulher. Não tinha outros rendimentos há muito tempo, uma vez que a saúde não lhe permitia. Francamente nunca soube de quanto era a sua pensão uma vez que o Carlos, que não escondia as suas ideias nem ideais, escondia as suas necessidades e o que se pode chamar de misérias.
Assim, a família (filha e um neto menor), que não teve posses para arcar com as despesa do funeral, recorreu à Santa Casa da Misericórdia onde ficou a aguardar "vez", possivelmente para ser enterrado como indigente.
Um mês depois de ter morrido, a 9 de Março é finalmente enterrado, sem qualquer cerimónia, sendo a família avisada uma hora antes.
Bem sei que o nosso camarada se dizia à parte deste tipo de sociedade, e pela forma como encarou a morte, escolhendo a cremação, escapava à simbologia que a grande maioria dos portugueses conferem ao ritual com que os corpos descem à terra. Mas a nós compete-nos homenagear a pessoa naquilo que ele representou enquanto vivo e pensante.
Assim, no dia 25 de Março 2017, um grupo de amigos, que na sua esmagadora maioria nunca com ele privou fisicamente, vai estar pelas 16 horas desse dia no portão do Cemitério da Amadora, para assim lhe dizer, onde ele esteja, que não passou por esta vida sem deixar marcas.
Eu ainda vou escrever um lembrete para ser publicado mais próximo, se possível, e quem estiver perto e na disposição de comparecer, será bem vindo.
Esperamos que alguma gente da comunidade guineense esteja presente
Um abraço
Juvenal Amado
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17033: In Memoriam (277): Carlos Filipe Coelho (Porto, 1950 - Lisboa, 2017), ex-Sold Radiomontador, CCS/BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74) (Juvenal Amado)
3 comentários:
Sobre o direito mortuário português...
vd. DL n.º 411/98, de 30 de Dezembro
INUMAÇÃO E TRASLADAÇÃO DE CADÁVERES(versão actualizada)
SUMÁRIO
Estabelece o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, bem como de alguns desses actos relativos a ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, e ainda da mudança de localização de um cemitério
Art, 5º - Regim legal
- Quando, nos termos da legislação aplicável, não houver lugar à realização de autópsia médico-legal e, por qualquer motivo, não for possível assegurar a entrega do cadáver a qualquer das pessoas ou entidades indicadas no artigo 3.º a fim de se proceder à sua inumação ou cremação dentro do prazo legal, o mesmo é removido para um dos seguintes locais:
a) Na área das comarcas de Lisboa, Porto e Coimbra, para a morgue do respectivo Instituto de Medicina Legal;
(...)
Art. 8º . Prazos
(....) 4 - Nos casos previstos no n.º 1 do artigo 5.º, se o cadáver não for entregue a uma das pessoas indicadas no artigo 3.º, não pode ser cremado, devendo a sua inumação ter lugar decorridos 30 dias sobre a data da verificação do óbito.
(...)
Mensagem da filha do Carlos Filipe, na página do Facebook do pai:
Luís Susana > 11/3/2017
https://www.facebook.com/carlos.filipe3?fref=nf
Para todos os amigos e conhecidos que estão com comentários desnecessarios sem saber o que se passou nem tão pouco sabem respeitar o momento de perda que tenho pelo meu pai, aqui vai a explicação do que se passou desde a data em que faleceu, 07/02/2017, até á data em que foi o seu enterro, 09/03/2017, um mês e dois dias após a sua morte:
O meu pai e eu infelizmente não fomos nem somos afortunados, e devido a essa situação tive que pedir apoio á Santa Casa da Misericórdia da Amadora, o apoio necessário para que o meu pai tivesse um enterro digno do grande homem que foi. No entanto toda a burocracia do nosso país demorou demasiado tempo, não permitindo sequer que houvesse velório devido ao estado avançado de decomposição do corpo. Fui informada no dia do próprio entenrro uma hora antes.
Lamentavelmente há quem fale sem saber a dor que é esperar tanto tempo para que alguma coisa fosse feita.
Ficam aqui os meus agradecimentos a todos aqueles verdadeiros amigos do meu pai que decidiram homenagiar e honrar um grande HOMEM, o meu pai Carlos Filipe, no dia 25/03/2017.
DECANSA EM PAZ MEU PAI, POIS TU SABES QUE FIZ DE TUDO POR TI.
O que quer dizer que a filha não requereu o corpo e assim ele foi entregue ao Instituto de Medicina Legal.
Passados os 30 dias ele é enterrado na vez de cremado que seria o mais lógico mais barato e de vontade manifestada pelo o Carlos em vida.
É um processo de abandono em vida e depois de morto
Simplesmente lamentavel
Enviar um comentário