Caros Camaradas
Junto a história "Até beber urina", para incluir nas "Outras memórias da minha guerra".
E, tratando-se de uma bastante pesada, queria aproveitar parajustificar com o seguinte:
Quando terminei a guerra não descansei sem "fugir" para Angola (terra de meus sonhos), para onde fui trabalhar, arranjar um filho e procurar esquecer aqueles tempos marcantes das nossas vidas. Dediquei-me à pesca e aos filmes leves, belos e divertidos. Só lia e ouvia assuntos de desporto. Sempre que falava da guerra, apenas recordava as tais "boas memórias" porque o resto era imperioso esquecer. Penso que esta reacção era comum à maioria dos que tiveram o azar de ser mais "castigados". Não é por acaso que só ao fim de 11 anos, a nossa malta começou a reunir e também como eu, a evitar relembrar as tais "outras memórias".
E foi na sequência dos bons momentos que passámos no último encontro da Companhia, especialmente na sua continuação, em casa do Seixas de Felgueiras, que o amigo e camarada da Cart 1689, Abrunhosa Branquinho, insistiu de novo e fez-me prometer contar as minhas histórias, no blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Claro que só pensava registar as coisas boas mas, como reacção de alguns camaradas, ouvi criticas acusando de que eu deveria também contar as outras histórias em que a nossa Companhia tanto sofreu. Por isso, e porque o lema da tertúlia é "não deixes que sejam os outros a contar a tua historia por ti", vejo-me a relembrar o que tanto forcei para esquecer.
Porém, preso aos mesmos princípios, peço desculpa a todos os camaradas que me lêem, pelo facto de os fazer reviver tão lamentáveis momentos.
Um abraço do
Silva da Cart 1689
Outras memórias da minha guerra (5)
Até beber urina
Continuávamos a norte de Banjara do Oio (10.Jun.67), dando seguimento à Op Inquietar I.
Havíamos sofrido o baptismo de fogo e o embate de Cambaju. Já acusávamos um certo desgaste pela difícil progressão e pela falta de água. Num qualquer gabinete fresco e arejado das nossas Forças Armadas, algum “iluminado” programara esta Operação. Estava marcado, no desenho da operação, que a nossa Cart 1689 deveria atingir o rio (Cambaju), por volta do meio-dia do dia seguinte, no qual já nos podíamos reabastecer de água.
O Silva após a Operação Inquietar I
O problema é que não se via rio, não se enxergava qualquer espaço húmido, nem um simples declive, e menos ainda o que se pudesse chamar uma linha de água. Fomos batendo a zona em vão. E, quando ao fim de algumas horas notamos que estávamos em local já por nós calcorreado, decidimos ficar a descansar e pernoitar, possivelmente no leito do tal rio invisível.
Logo de manhã (11.Junho.67), ali perto, fizemos um prisioneiro que nos serviu de guia. Quando demos por ela, o guia já nos desviava para atacar e destruir umas tabancas de população Manjaca (claro que não era da sua etnia), e não tardou que também nos desorientasse.
Nesta situação, contactámos a base de Bafatá. Apareceu-nos o pequeno avião (PCV do CMD Operacional) cujo piloto, mesmo a sobrevoar-nos afirmava que não nos descobria nem nos ouvia, Foi lançada uma granada de fumos, para facilitar a localização. Como ela não deflagrou, teve que se lançar outra e mais outra (era a última), porque a anterior também não deflagrou. Mesmo assim, não nos descobriram. Porque nos expusemos a ser descobertos pelo IN, dada a movimentação aérea e o fumo da granada, procurámos logo sair dali. Ao iniciar esse movimento, o soldado António Soares, mais conhecido pelo “Banharia”, possivelmente o militar mais curioso e mais reguila da nossa Companhia, agarrou numa granada que não deflagrara e meteu-a no bolso lateral direito das calças.
Não tardou que a granada deflagrasse e apanhasse o “Banharia” em cheio. Foi gritaria incrível, pois a granada de fósforo não parava de arder. Era um louco a correr de um lado para o outro, em gritos e em total desespero. A primeira reacção da nossa tropa foi afastar-se dele. Então, num gesto corajoso, o “Cabo Felgueiras” tirou a sua camisa e com ela tentou fazer o impossível. Só quando se rasgaram e afastaram as calças do corpo do “Banharia” é que ele ficou mais aliviado. Descobertos pelo IN, e um pouco apavorados com o sucedido, não podíamos ali permanecer muito tempo à espera de socorro.
Curiosamente, recebemos então uma informação do PCV de que já havíamos atravessado o tal rio e de acordo com o programado! Era a confirmação de que sabiam onde estávamos e não nos tinham perdido de vista.
Não demorou muito a chegada de um helicóptero, mas não se descobria uma clareira para ele aterrar. Foi então que presenciei uma manobra incrível daquele helicóptero. Depois de circundar a zona, aproximou-se a sobrevoar rasteiro sobre as árvores mais pequenas em direcção ao tronco da árvore maior, e ao chegar perto da árvore inclinou-se ligeiramente e aterrou mesmo debaixo dela; regressou pelo mesmo espaço e com as mesmas manobras, depois de carregar o Banharia”. Só voltei a vê-lo no dia do regresso da Guiné, na Metrópole, porque nos foi esperar. Estava muito contente porque já conseguia andar sem muletas.
Mas, o pior estava para vir. Agora não se vislumbrava o tal reabastecimento da água e que era indispensável para se poder continuar. A noite aproximava-se de novo, sem termos progredido quase nada. Vários camaradas já só andavam apoiados nos outros. Esse número de impossibilitados ia aumentando à medida que o tempo passava. Alguns militares tinham beneficiado de alguma água dos carregadores, no início da manhã do dia anterior, enquanto houve. Os outros, com o cantil quase vazio foram resistindo até ao máximo, racionando a pouca que ainda tinham por já temerem o pior. Porém, já não havia água alguma há cerca de 30 horas!
Desidratados, caminhávamos lentamente, já com poucas forças e pouco alento. E, conforme se veio a saber, também sem rumo. A mata era toda igual, cheia de arbustos baixos que era preciso romper, muitas vezes rastejando, sem relevos nem linhas de água, mesmo secas. Não sabíamos para onde avançar. Tivemos que parar. O cansaço esgotante já estava a dominar-nos. Era imperioso descansar para continuarmos a resistir naquela noite horrível. Ao contrário do que se pode imaginar, dentro da mata, o calor abafado e a falta de oxigénio aumentava o sofrimento.
Os primeiros raios da madrugada (12.Junho.1967) vieram encontrar aqueles corpos “mortos” e estendidos no chão, alguns aparentando poucos sinais de vida.
Como se sentia alguma frescura nas folhas dos arbustos, lá as íamos mascando, algumas com sabores insuportáveis. E como as ervas pareciam ter humidade, rastejávamos e nelas pousávamos os lábios para as lamber. Recordo que apanhei uma espécie de jarro (flor), onde se via um pouco de água no fundo; bebi aquilo e senti um gosto horrível. Era um líquido corrosivo, decerto da própria planta para matar os insectos que lá iam beber. Deu para senti-los na boca, e vê-los em decomposição.
É nesta movimentação arrepiante que o Massarelos, ao caminhar, raspou no Chico e sentiu que o seu cantil deu sinal de ter água. Atirou-se a ele:
– Ó filho da puta, tu tens água e deixas-me aqui morrer à sede? Eu, que sou mais que teu irmão?
O Chico, sentado no chão, ficou apático, calado, sem a mínima reacção ao que lhe diziam. Tiraram-lhe o cantil e sofregamente, cada qual o levou à boca na esperança de colher alguma água.
- É mijo, é mijo! - logo berraram os que deitaram o cantil à boca.
E o Chico, imperturbável e resignado, acabou por confessar que ainda não tinha bebido nada e que tinha a urina como reserva, o que ninguém acreditou. E, ao constar-se este caso, logo se descobriram outros.
O “guia forçado” voltou a perder-se. Afinal nunca nos orientou bem e já temíamos o pior. Não sei quanto tempo mais andámos à deriva. Era pouca a distância percorrida porque, nesta situação já rareavam a força para caminhar e a consciência das coisas. Alguns lá resistiam mais, agarrando e arrastando outros já semi-inconscientes, que pareciam de borracha. Quase ninguém tinha a arma em posição de defesa, pois vinha em bandoleira. Confesso que tenho dificuldade em dizer o tempo que tudo isto durou.
Agora, esgotados, desfalecidos e estendidos pelo chão, já quase ninguém andava. Não havia forças nem lucidez para falar. Alguns sentados e encostados às árvores, buscando energias e vontade de viver, acariciavam com os dedos, as pequenas fotos dos seus entes queridos. Digamos que já se procurava esquecer o pior, até porque ninguém queria tal despedida. É que já havia quem pensasse que a nossa salvação seria o IN nos encontrar e não nos atacar.
É neste cenário de morte esperada e quase resignada que surge a informação de que o guia se havia desviado tanto para a direita que nos levou para próximo da estrada Banjara-Bafata.
Localização de Banjara e Cambaju
De repente, não sei de onde veio tanta energia. Os “mortos” ressuscitaram e os “moribundos” endireitaram-se. Alteraram-se os rostos, voltaram a brilhar os olhos mortiços e recuperaram parte das forças.
Foram respeitadas as orientações dadas para prosseguirmos devagar e dentro da mesma ordem. Eu procurei assumir alguma autoridade, avisando “o pessoal” que ninguém deveria ir beber água ao charco putrefacto, situado umas centenas de metros antes de Banjara. Ainda consegui incentivá-los:
- Vamos resistir mais uns minutos, porque em Banjara não faltam bebidas frescas e lá já estão a contar connosco.
Todos pareceram concordar com o aviso. A esperança sempre nos dava mais um bocado de alento e resistência.
Seguíamos em frente, pela estrada, já a ver o Destacamento e mais apressadamente, beneficiando da leve descida da estrada. Nem queria olhar para o charco e lá ia incentivando a malta para fazer o mesmo. De repente, faz-se atrás de mim uma algazarra. Era a malta a correr e a atirar-se para o charco. Não sei o que se passou comigo, que, quando dei por mim, também estava no meio daqueles corpos fardados, imersos no charco, onde os animais bebiam e defecavam, agora transformado em lamaçal, e no qual as bocas semi-abertas sugavam sofregamente todo o líquido que podiam. Cabeças, canos e coronhas de armas, botas, braços e pernas, tudo se misturava descontroladamente, em movimentos bruscos. Sentindo barro na minha boca sequiosa, mais forçava com os lábios a entrada do líquido através do bigode, que servia de filtro. Cheguei a sentir “seres estranhos” a rabear entre os pelos que eu procurava tirar com as unhas. A partir dali, fiquei seguro de que nada pode dominar o instinto da sobrevivência.
Agora incentivávamo-nos uns aos outros para largarmos aquele perigoso e nojento lamaçal e avançarmos para Banjara. Aí chegados, era cerveja, sumol, água, tudo o que pudéssemos levar aos lábios numa vontade de beber incontrolada. Não tardou que as dores horríveis sentidas no abdómen se misturassem com a vontade imensa de... beber, beber e beber. Insaciavelmente.
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Duas notas finais:
1 - Por não ter sido atingido o objectivo (acampamento IN em local incerto na zona de Canjambari), a nossa Companhia, reduzida a um terço do seu efectivo, foi mandada montar emboscadas na região de Bantajã, até às 6H30 (13.Jun.1967), por ordem do PCV.
2 - Esta operação foi repetida, com grande sucesso, pela nossa Companhia sob a denominação( Inquietar II)
(Silva da Cart 1689)
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Notas de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7044: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (4): Olhar fatal
Em tempo: - Houve um lapso da minha parte porque encontrei no Google Earth uma localidade com o nome Cambaju junto à fronteira com o Senegal e considerei-a como sendo aquela a que o Silva se referia na sua história.
O nosso camarada pediu para rectificar porque o Cambaju que ele conheceu se situava próximo de Danga.
Está rectificada e reposta a verdade.
Carlos Vinhal
23OUT2010
1 comentário:
CARO FERREIRA,
É POR SABER DE RELATOS VIOLENTOS COMO ESTE QUE AQUI TÃO BEM NOS APRESENTAS,QUE NÃO POSSO PERDOAR AOS FDPs QUE NOS REGEM DE HÁ QUARENTA ANOS A ESTA PARTE SEM SE PREOCUPAREM MINIMAMENTE COM OS QUE LÁ DEIXAMOS PARA SEMPRE.
OBRIGADO FERREIRA PELO BELO NACO DE PROSA VIVA COM QUE NOS BRINDAS. ABRAÇO
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