domingo, 17 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7141: Blogoterapia (162): Juventude, anos sessenta (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa* com data de 4 de Outubro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal
Tinha pensado contar-vos esta história, que a minha memória registou, ainda com o calor do verão, por ser mais aprazível e mais facilmente entendida, mas o tempo passou depressa demais, e o Outono já se anuncia.

A história por verdadeira, não é estória, não tem absolutamente nada de ficção, trata-se da minha vivência no lugar onde cresci, e do encantamento, que esse espaço me proporcionou, apesar do isolamento quase total.
À minha volta, apenas a Natureza, de que me tornei dependente.
Foi assim, como descrevo, que vivenciava as noites magníficas, do meu verão Alentejano!
Felismina Costa


JUVENTUDE ANOS SESSENTA

Numa noite de Julho magnífica, luminosa, num céu resplandecente em toda a circunferência amplamente abrangida pelo meu olhar, a lua sorridente, lá no alto, brilhava inteira nessa noite de verão, e eu, sentada à porta do Monte, sentindo o cheiro do feno dourado, brilhante, quente, cheirando a fogo calado, (ameaçando ateá-lo).

Lá em baixo, um pouco mais abaixo, a horta brilha molhada, da rega do fim do dia, e os vegetais liquefeitos, desenvolvem-se a olhos vistos,saudáveis e perfeitos.

Um sapo, canta feliz, senhor desse espaço inteiro, e certamente encantado, por essa noite de luar e por esse espaço onde mora.

É noite de adolescência!
E, em mim, canta crescendo o futuro prometido, que me há-de trazer inteiro esse prazer dos sentidos, e, nesse próprio presente, inteiramente sentido.

Aceitando como um prémio, essa oferta Divinal, escutava surpreendida, os sons do canavial, que do outro lado da quinta, provocavam alarido.

Os gatos... ligeiros... felinos, saltavam de vez em quando, perseguindo por certo um rato, e o cão, fiel e amigo, dormia ali mesmo ao lado, sobre o chão quente... enrolado.
Dividi com ele caminhos, luz do Sol, serões de infância, e o calor da lareira, a que me aqueço à distância.
A ternura dos meus pais, o seu amor e altruísmo, seus exemplos que não esqueço... a sua verticalidade, que visto!

De tamanhas recordações, se encheu o meu passado, que se transformou num prazer, poder assim recordá-lo.

Volto lá, a cada passo, e nada mudou ali!
Só muda, o que esquecemos, mas esquecer... é o fim!

Felismina Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7119: História de vida (31): Monte Novo das Flores e a minha paixão pela natureza (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7140: Blogoterapia (161): Pensamentos e perguntas a nós próprios (Juvenal Amado)

9 comentários:

Anónimo disse...

Felismina!
Estou tresmalhado no fulgor da tua escrita.
Não dizes tudo, no muito que disses-te.

Desculpa mas o sussurrar ondolante dos canaviais, a ser ultrapassado pelo cantico dos rouxinóis. Como eles adoram os canaviais, chirliando até ficarem prisioneiros das gavinhas.

Tens a grandeza de voltar e sentir o pulsar da Planície.

Triste!
Gostava de sentir o coração bater, percorrendo encostas com a palhinha na mão para apanhar os grilos e fazer uma gaiola com uma cana rachada.

Sofro!

Porque aquela que é ainda! E será! A minha Terra.

Está abandonada!

Os silvados cobrem as velhas oliveiras, onde procurava ninhos desses cantores celestiais, pintassilgos , melros, milheirinhas e pássaros mais.

Tudo isto abandonado! Mil hectares de terra, dezenas de casas e pavilhões, esperando por um sopro mais forte do vento para ruirem. Toda esta riqueza abandonada, num pais à beira da falência.

Choro se tenho a ousadia de por lá passar.

Não é vergonha!

Fazes-me de facto reviver e relembrar a Planície em brasa, antes das madrugadas orvalhadas desfiando pétalas de amor nas eiras, corpos envolvendo em relheiros.

Deixa as minhas máguas de tempos de ora mal vividos!

Escreve conta as coisas lindas de antanho!

Felismina peço desculpa por tudo e pelo tratamento, mas faz-me regressar a esse doce Alentejo.

Cantamos aqui num grupo já de sexas:

"Dáme uma gotinha d´água
Da que eu ouço correr
Entre pedras e pedrinhas
Entre pedras e pedrinhas
Alguma gota há-de haver"

Até sempre,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Cara amiga Felismina

Ler o que aqui escreveu, foi como contemplar, pausadamente, eternecida, uma noite de verão no Alentejo da minha infância.
A sua escrita aconchega-nos a alma e revitaliza-nos o coração.
Os meus sonhos estão povoados das minhas vivências daquele tempo, de longos serões a brincar à luz do luar, do cheiro a restolho e a mantrastos, de ouvir cantar os grilos e as rãs, misturados com sumidas badaladas de chocalhos.
São os sons, os cheiros, e a aragem das antigas noites de verão..., onde não faltava o convivio, salutar, entre vizinhos, sentados às portas. Era ali que se queixavam das amarguras da vida, que muitas vezes desabafavam a cantar.
Era ali que se sabia quem estava de partida ou de chegada do Ultramar.
Foi ali que ouvi cantar pela primeira vez, nos anos 60, uma moda, que me provocava uma estranha sensação de tristeza e de dor quando em uníssono as vozes dos homens eclodiam:

Lá vai mais um barco
para o Ultramar,
levam nossos filhos
p'ra irem lutar.

P´ra irem lutar
deixam cá cadilhos,
para o Ultramar
levam nossos filhos.

Nessa altura, tinha eu menos de 10 anos, mas, considero que hoje aos 53, muito do que aqui vivi ainda perdura em mim.

Agradeço à nossa amiga Felismina por partilhar connosco a sua sabedoria e encantos da vida, passada no Alentejo. Também manifesto a minha gratidão aos editores do Blogue pela divulgação destes escritos, que ajudam a contextualizar uma época.

Um abraço a todos os tertulianos e amigos do blogue

Uma amiga

Maria Teresa Parreira

Anónimo disse...

Olá Felismina,
Lindo texto sobre o Alentejo e recordações da vida que lá viveu.
Parabéns
Filomena

Torcato Mendonca disse...

Olá Comadre Felismina
Então mais um naco de boa prosa.
Sabe bem e arrepia.
Não tenho essa vivência mas sei o que foi o Alentejo desse tempo e você sabe porquê. Aprendi a sentir o Povo, a interrogar-me e a interrogar sobre certos porquês. Era o tempo das jornas de sofrimento, tempos de crise e desmandos de senhores. Nada mais digo. Os campos podem estar abandonados,semeados em culturas intensivas...mas os cantos são de lamentos, de outros lamentos...mas fala-se se temor por um qualquer lavrador ou gnr mais alarve.
Conte você por o faz bem, porque o viveu, vendo somente mas disso teve conhecimento. Eu...

Um abraço amigo do Torcato

Anónimo disse...

Amiga Felismina Costa

É com entusiasmo acrescido que leio estas suas prosas, porque têm o condão de me regredir às minhas raízes, e fazem-me reviver a minha infância na minha querida aldeia, Beira Alta, onde eu tive e relembro as mesmas experiencias na minha meninice…

Eu não precisava de sair de casa, para ter em potência todas essas iguarias, que só a mãe Natureza nos sabe proporcionar: Tinha cão, tinha gato, ouvia o coaxar da rã, do sapo e da rela, ouvia o cantar do grilo, que eu apanhava enfiando uma palhinha no buraquinho, onde se ocultava, e por vezes tinha que urinar na toca para ele sair, e o poder apanhar e guardá-lo numa caixa de fósforos, que depois transferia para uma caixa de sapatos vazia, onde tinha espaço para poder cantar. Estava rodeado de cerejeiras, pereiras, ameixoeiras, figueiras, videiras…que serviam de guarida para nidificar, rouxinóis, pintassilgos, pintorroxos, melros, carriças, floxas, picanços, descedeiras, chapins, piscos, as alvéolas e cotovias nidificavam no solo etc etc. Que saudades eu tenho desses tempos, que para as amainar, criei um jardim num grande pátio que tenho no centro de Lisboa, como que um nicho daquilo que tive e tenho e que o silvado está a invadir. Neste meu jardim, onde além das plantas ornamentais e de ter lá um gato, que confesso não me satisfaz muito porque por vezes sacrifica um melro, uma carriça, uma toutinegra e outras aves, só pelo prazer de matar, que não come, e coloca-as sempre no mesmo sítio para que eu possa ver, plantei muitas figueiras, laranjeiras, limoeiros, ameixoeiras, romãzeiras, cerejeiras. pêra-abacati, videiras… e quase diariamente faço uma caminhada higiénica até lá, 15 a 20 minutos, e afago uma e outra planta.

Um abraço

José Corceiro

Torcato Mendonca disse...

Desculpe Felismina

Estás a falar da Malcata José Corceiro. Há tempos, se não erro, disseste seres de uma aldeia Vale de Espinho? do concelho do Sabugal. És um amante da natureza, da terra, daquele ar puro que por lá nos oxigena. Conheci, ou fui lá em 71 e continuei por uns anos. Recordo agora ter participado na construção da Escola Secundária. Corri tanto... No Sabugal havia um tasco José ou Arlindo Mono. Nunca tinha visto nada assim. Nunca me soube tão bem a carne, o pão e o vinho.Comprava-se carne no rés -do-chão e vinha assar-se no primeiro andar. Uma divisão com mesa enorme e negra, migalhas de pão anteriormente deixadas e moscas glutonas a enfeitarem.Limpava-se com as mãos, a carne de cabrito assava na lareira e começava um repasto maravilhoso.
Depois voltávamos á Senhora da Graça, á captura de elementos para a futura barragem ou íamos Malcata fora, pela margem direita ou esquerda do Côa. O inverno era gelado e o vento descia de Espanha a furar agasalhos. Conheces melhor do que eu. Mas na margem esquerda eram quilómetros sem viva alma. Linces nem vê-los...haviam lobos e raposas fugidios do maior predador que somos nós. Eu gostava daquela natureza selvagem, das castanhas a saírem dos ouriços, o gelo a sair da terra. Eram novidades para mim e para o motorista que comigo andava. Se fosse o Alentejo, que a Felismina descreve, era-nos familiar.
O vosso amor á terra, á mãe natureza é tal que "constroem-no" em Lisboa ou voltam á terra para por ela serem possuídos, para sentirem raízes.É bonito, é vida,são vocês e muitos como vós. Sou mais citadino. Gosto da natureza e gosto imenso de vos ler, de sentir ou penso que sinto o que vós descreveis.
Um abraço José Corceiro e uma desculpa por ter utilizado este espaço da Felismina.
Torcato

Anónimo disse...

AMIGOS!

Vale a pena falar das nossas emoções.
Do que sentimos!
A terra que nos cria, ou onde fomos criados, é mãe que acalenta, que nos embala, e que bom é reconhecer o agradecimento dos seus filhos, e o mais interessante, é que eu acho, que quanto mais difícil foi a luta ou as dificuldades, maior é o amor sentido.
Cada pedra do caminho é companheira.
Cada arbusto é natureza em luta para sobreviver.
Se olharmos o solo ressequido, ele guarda minúsculas flores de uma beleza transcendente, na côr, no desenho, na perfeição das formas.
E eu, encanto-me nelas!
Amo a terra e conheço-a. Sei exactamente as suas capacidades criadoras.
O Mário Fitas, o José Corceiro, são igualmente outros apaixonados, por ela, que até nas grandes urbes conseguem ter o seu canto de encanto.
A Maria Teresa Parreira, vibra como nós pelo seu torrão Natal com um encantamento manifesto, pleno de emoção e saudade.
A Filomena também se alegra com o que contamos sobre a terra.
O nosso AMIGO Torcato, gosta da nossa paixão por ela e muitos mais.
Que bom é não ter pejo de manifestar o que sentimos, pela terra mãe, de sabermos valorizar o nosso canto, Apreciar as aves, ir aos grilos, como os meus irmãos também faziam, fazer as gaiolas de cana, levá-los para casa e guardá-los debaixo da cama num caixa de sapatos e ouvi-los cantar na noite:
Vou ficar por aqui.
O Alentejo que amamos, é uma fonte inesgotável de lições de vida, onde a luz do Sol, irradia uma beleza que deslumbra.

Felismina Costa

Anónimo disse...

Caro Torcato

Estás correcto, sou natural de Vale de Espinho, que dista do Sabugal 15km. Vale de Espinho é uma aldeia grande, que no meu tempo de escola primária chegou a ter 6 e 7 salas de aulas a funcionar e cada turma com mais de 35 crianças. Já três ou quatro anos, que para funcionarem duas salas, cada uma com uma dezena de crianças, houve necessidade de concentrar as crianças da freguesia dos Fois e de Quadrazais na minha aldeia, que em sentidos opostos distam da minha terra 5km. Este ano lectivo por falta de crianças fechou a escola e concentraram as crianças no Sabugal.

A minha aldeia é banhada pelo rio Côa, que tinha (tem) trechos maravilhosos onde eu em criança aprendi a nadar. Os meus pais tinham muitas propriedades, algumas das quais o rio Côa atravessava na parte central. Era encantador, os seus açudes, com as suas levadas, as suas trutas, os seus barbos, os bordalos e os robalos. Nesta época apanhavam-se as castanhas, fazíamos os magustos, apanhávamos os míscaros, os cogumelos, começava a caça ao coelho, à lebre e à perdiz. Nos tempos que lá passava, era uma vida fantástica…Não será do teu conhecimento, porque eu só recordo os suportes físicos de sustentação das linhas, já desactivadas, mas nos anos 30 e 40 havia um engenho na minha terra, movido com a água do rio, onde eram feitos cobertores de papa e produzia electricidade, que era transportada para o Sabugal
Conheço todo o concelho do Sabugal, muito do qual palmilhei a pé … Lince vi um apenas, tinha eu nove ou dez anos, na companhia do meu avô materno, que o apanhou com uma saca de serapilheira na toca duma oliveira, e foi em Espanha onde o meu avô tinha propriedades, na continuidade da serra da Malcata (zona Valverde del Fresno).

Quanto á tasca da sra. Prazeres do Mono (a sra. era viúva e o marido é que era apelidado de Mono). O Arlindo é filho do casal. O Arlindo tem dois filhos com os quais andei na mesma turma no antigo 5º ano. O Quim dedicou-se à indústria hoteleira, construiu no local da antiga tasca.

Amigo Torcato, eu comi vezes sem conta na tasca da “ti” Prazeres do Mono, sempre que ia ao Sabugal com os meus pais ou com o meu avô, que conhecia lá tudo, era lá que se comia a bucha, ou merenda, que se levava de casa já pronta…o bom queijo, o chouriço, o presunto, o paio, o bucho, a febra assada, a truta frita, a farinheira e a morcela fritas, que coisas tão deliciosas, tudo caseiro, que saudades… a “ti” Prazeres disponibilizava o espaço, as grandes mesas de tábuas de carvalho, enegrecido com a utilidade, o vinho e os refrigerantes Cristalina, cujo fábrica era dum parente meu do Soito. Tudo gente boa e franca, a troco de nada, eram sorriso e agradecimento. Posteriormente comi lá algumas vezes com os netos da “ti” Prazeres.

Velhos tempos, que a troco duma bebida e um papo-seco e pouco mais, eram disponibilizadas instalações para se poder comer e estar…sim porque grande parte das pessoas levavam já o farnel de casa.

Um abraço

José Corceiro

Torcato Mendonca disse...

Obrigado José Corceiro, quer pela resposta quer pelas correcções.
Conheço a zona, as aldeias e a desertificação sofrida neste interior.
Trabalhei no Regadio da Cova da Beira- MOP/ Serv. Hidráulicos,no estudo e, posteriormente na construção. Como prof/liberal na 2ª fase da construção da Esc.Secundária do Sabugal.Há muitos anos.
Não vou ao Sabugal há mais de dez anos, talvez. Claro que, para quem andou por tantos lados a memória falha.
Terras duras de gente boa. Corri muito da Beira Alta e a zona raiana. Do lado de cá (até trabalhando com os Militares Espanhóis) e no lado de lá...longe da raia em Salamanca, Cáceres e etc.
Vejo que estás atento á tua terra. Fazes bem.São as raízes que eu neste deambular fui perdendo. Mas sinto muito o Sul e o Alentejo. Muito mesmo!

Amigo um abraço do Torcato