sábado, 23 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7166: Blogoterapia (163): Recordações da infância (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa* com data de 22 de Outubro de 2010:

Boa-noite editor e amigo Carlos Vinhal!
Dando sequência às minhas memórias, trago hoje a público recordações da minha infância que primam pela agradável recordação dos primeiros anos, onde a família fez questão de me dar a perceber, que eu era para eles um elemento importantíssimo.

Se achar que tem algum interesse publicar, uma vez que saí do âmbito do blogue, faça o favor!



Recordações da infância

Nas grandes noites de Inverno, de chuva, frio e ventania, o aconchego do lar e o calor humano que me rodeava, fizeram com que as recordações permaneçam em mim.

Hoje quero falar do meu avô materno, Carlos Costa de seu nome, que juntamente com minha mãe foram os mais directos responsáveis na minha formação.

Depois do jantar, e arrumada a cozinha, sentávamo-nos à volta da lareira na casa do avô, com quem vivíamos.
A avó Adelina, pouco interventiva, fazia meia, sentada no lado direito do semi-circulo que formávamos frente à lareira.

A mãe costurava a roupa que vestia a prol, e eu, sentada entre a mãe e o avô, ouvia encantada as suas histórias de vida.
O avô fechava o semi-circulo à esquerda.

À nossa frente, um lume aceso e agradável ia sendo moderadamente alimentado por lenha de azinho, seca durante o Verão, e guardada em lugar seco durante o Inverno, para tornar aprazível aquela lareira dos serões familiares.

Nem televisão nem rádio incomodavam as nossas mentes, que estavam permanentemente disponíveis para ouvir contar aos mais velhos, as histórias que recordamos com saudade.

Lembro-me desde os meus seis anos de idade, de acompanhar interessadíssima, os serões familiares.
O pai, magnífico contador de estórias, deitava-se cedo, para cedo se levantar e sair para o trabalho, que quase sempre era longe de casa.
Então a avó Adelina, a mãe, eu e o avô Carlos, permanecíamos até por volta da meia-noite, junto à lareira em agradável e amena cavaqueira.

Seguro e indesmentível, o avô oferecia-nos o seu passado, o seu conhecimento, a sua vivência, religiosamente escutado.

Comecei por saber que o avô tinha nascido em 1896, que em criança tinha feito a 4.ª classe com distinção e que os professores o haviam aconselhado a prosseguir os estudos, mas a falta de estruturas na localidade e as dificuldades económicas, fizeram com que ficasse por ali.

Tive ao longo da vida oportunidade de constatar a sua inteligência, o seu gosto pela cultura e a sua capacidade de análise a tudo o que o rodeava.

Lia interessadíssimo jornais e revistas da época, que assinava, e guardava extraordinárias revistas a cores de grande formato, sobre a 2.ª Grande Guerra , que cedo comecei a ler.
O avô tinha sido 1.º Grumete Escriturário da Armada Portuguesa durante a Primeira Grande Guerra.
Contava ter assistido à revolta dos marinheiros, durante o período em que cumpria o serviço militar, e tinha sido acusado de pertencer à dita sublevação. Preso e presente a Tribunal de Guerra, o avô fez a sua própria defesa tendo sido absolvido.
Eu bebia as palavras do avô! Extasiada! O avô era para mim... um herói.

No fim do serão, um café de cevada ou um chá quentinho e umas torradas feitas na lareira, confortavam-nos o coração, porque a alma já estava ricamente confortada.

Ao longo do dia acompanhava-o nas sementeiras e na labuta à volta da casa, que ele construíra com as suas próprias mãos, e onde tinha aplicado os seus conhecimentos, para se rodear e aos seus, do maior conforto possível. Até os animais domésticos que possuíamos tinham alojamentos confortáveis. Respeitador de todas as formas de vida, nunca o vi matar um animal doméstico, era a minha mãe, mulher de grande coragem, que tal como os criava com prazer, também os matava para nos alimentar.

A cerca ao lado da casa, que o avô cultivava, foi o meu primeiro palco, onde cantei a alegria de existir!
Misturava-me com as flores e as aves, e encantava-me no azul do céu e nas nuvens.
Nas primaveras da vida e do tempo, apreciei encantada, as quatro estações!
Rodeada de carinho, sentia a importância que tinha para todos.

Livre, podia brincar até anoitecer.
Correr, sentindo a leveza do corpo criança, era um prazer indescritível!
As nuvens no céu de Abril, corriam ligeiras como eu, que observava as suas formas desmultiplicadas, que desenhavam naquele céu azul e lindo, as mais variadas figuras.

E, nas noites de Verão, luminosas e calmas, onde só o cantar das cigarras e dos grilos quebravam o silêncio, eu e o avô, sentados no banco frente à casa, observávamos o céu.
O céu magnifico da minha infância magnifica!
Lua, estrelas e um cometa (que passava na altura), faziam as delícias da nossa observação.
As estrelas cadentes assustavam-me na sua queda aparatosa.


Foi o avô, que me ensinou a conhecer as constelações como a ursa maior e a ursa menor, algumas estrelas, as fases da lua, Vénus e Júpiter igualmente.
Desse tempo me ficou a adoração pelos astros, e todas as noites, antes de me deitar, abro a janela da cozinha, e olho agradecida o pouco que me é permitido ver.Vénus continua a encantar-me, e perfila-se frente ao meu observatório.

Quando eu e o avô dávamos por terminada a observação da noite, o avô vinha até à ponta da rua da casa, e, olhando para Oriente, fazia as suas previsões meteorológicas, baseado, não sei em que factores, mas muitas vezes saíam certas.

Fui crescendo sempre próxima desse grande e velho amigo, que marcou positivamente a minha existência, e, sempre que eu chegava à sua beira me dizia com um sorriso... olá minha neta!

Foi o meu primeiro professor!
O meu primeiro dicionário.
Devia-lhe esta Homenagem!

Felismina Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7141: Blogoterapia (162): Juventude, anos sessenta (Felismina Costa)

(Imagem retirada da Internete)

6 comentários:

JOse Marcelino Martins disse...

Mais um texto maravilhoso a que já nos habituou a noss amiga Felismina.

Durante a leitura percorri a obra de Julio Dinis e tambem me lembrei do meu avõ materno, que não conheci e de quem herdei o nome.

Militar de carreira foi vítima do gaz alemão, na I Grande Guerra, que o impossibilitou para a carreira militar.

Será que pensarmos nos nossos avós, que em minha casa as suas fotos estão em lugar de destaque, são sintomas de velhice?

Ou serão saudades da meninice e o desejo de "voltar ao passado" que nos faz rever nos nossos avós e nos nossos netos?

Seja qual for a razão, o certo é que os avós são Mestres, com provas dadas na Escola da Vida.

Obrigado pelo texto, Felismina!

Anónimo disse...

E cá volto eu!

Felismina, o meu avô tinha 19 anos quando o seu nasceu.

A minha ligação com ele foi similar à vossa.

Houve diferenças, o meu avô sempre me tratou por "meu companheiro". Só compreendi este tratamento, já com os meus nove dez anos.

Meu avô enviovou tinha eu quatro anos. Como quiz dormir sempre em sua casa, era eu que ia dormir com ele, pois minha mãe tinha receio de o velhote ficar só durante a noite.

Mas tinhamos uma ligação extraordinária e aventuras de morrer a rir.

Uma noite já madrugada bateram-nos à porta. Ladrões? O Ti João Fitas pegou no machado, e saiu à rua acompanhado do neto. Umas voltas pelas redondezas e nada. Só que os dois valentes saíram e deixaram a porta aberta! Se fossem ladrões podiam trabalhar à vontade. Ainda hoje esta história do avô "velhote" é motivo de gozação comigo, por outros netos, bisnetos e trinetos.

Mudou-se finalmente para casa de meus pais, depois de bastante batalhar. Só que eu cresci, e embora partilha-se-mos o mesmo quarto as camas já eram separadas. O problema é que o avô se levantava de noite a ver se eu estava tapado.

Pior foi quando chegaram os dezoito e ele encontrava a cama do neto vazia. Fazia um relatório diário das horas a que eu me deitava.

Católico e Monárquico, tinha debates com a malta nova por causa da Republica que dava gosto.

Quando eu estava na Guiné, fazia sentinela para ver a chegada do carteiro. Minha mãe contou-me depois que ele quando se falava de mim dizia: "Por onde andará aquela alminha o meu doce companheiro".

Não teve o gosto e oportunidade de estar presente naquilo que ele adoraria. Faleceu um mês antes de eu casar, com a bonita idade de noventa e dois anos, e com a mente perfeita. Só que a máquina já estava muito gasta.

Os avós são de facto algo que se deve saborear.

Obrigado Felismina pelo teu belo naco de prosa que me fez voltar a recordar o meu "companheiro".

Mário Fitas

Anónimo disse...

Amiga Felismina Costa

O meu percurso de vida enquanto criança é muito paralelo ao seu…

Não tive a felicidade de conhecer o meu avô paterno, que infelizmente morreu num trágico acidente, era ainda o meu pai praticamente um bebé, e a minha avó, muito jovem e bonita, que eu felizmente bem conheci, carregou-se de luto e nunca mais quis refazer a vida, ainda que muito assediada, mas foi viver para casa dos pais, onde o meu pai foi criado com a mãe e os avós, que eram pode dizer-se um lavrador abastado.

Felizmente tive a graça de ter um avô materno, Manuel Grencho Silva, do qual eu era o neto mais velho, que tinha em tudo particularidades idênticas às do seu avô…
O meu avô era um homem muito viajado, ali na zona, com o seu cavalo percorria todos os caminhos e carreiros, e tudo conhecia, ia da minha terra por monte, para Penamacor, Monsanto, Guarda, Almeida, Cidade Rodrigo (Espanha), etc. etc. em todos os lados tinha amigos e guarida para pernoitar nestas deambulações. Homem muito sério e respeitador com os compromissos que assumia, em função da actividade que exercia…
Agora poderá calcular o entusiasmo que me invadia, eu sempre muito curioso, com 6, 7, 8 anos, nas noites frias de inverno, a geada a cair, e por vezes o chão aplanado pela neve, ir ao serão para a casa dos meus avós, que dista da casa dos meus pais cerca de 500m. Lá ia a família com uma lanterna, alimentada a azeite, para iluminar o caminho, que ainda não havia electricidade. Que entusiasmantes eram para mim essas noites, onde o meu avô tinha mil e uma história para nos contar, à luz do candeeiro a petróleo…! Histórias de vida fantásticas, mas verdadeiras. O meu avô sabia em qualquer época do ano, sem errar uma hora, quais eram as posições que as constelações deviam ocupar no universo, a cada hora da noite, Sete Estrelos, Cassiopeia, Orion e todas outras que ele não sabia o nome, mas lhe serviam de referencial para a sua orientação, quando em noites de breu cerrado, sem nuvens, percorria aqueles montes e valados. Mesmo em noite de nevoeiro tenebroso, conhecia e dialogava com cada pedra do carreiro… imagine as surpresas desses momentos de solidão. Consoante o sibilar do vento, a orientação que este tinha, conjugando com a tonalidade do firmamento e lendo os seus Almanaques, conseguia prever o tempo, com antecedência. Durante o serão assavam-se castanhas, ou faziam-se filhoses, que se comiam, bebendo os adultos jeropiga caseira, e as crianças chá de sabugueiro, erva-cidreira, ou carqueja, adoçado com mel, também caseiro. A relação com o meu avô foi tão intensa… vai a fazer trinta anos para Fevereiro, eu fui passar um fim-de-semana à minha terra e no dia em que cheguei, estive a jantar com o meu avô, todos na casa dos meus pais, estava bem de saúde e robusto, com 79 anos, estava viúvo, a minha avó não resistiu ao choque da morte do meu tio, em combate em Angola, e faleceu estava eu na Guiné. O meu avô vivia na sua casa, embora fizesse refeições na casa dos meus pais. No dia seguinte, era hábito aparecer logo de manhã cedo, não apareceu, fomos ver, encontrá-lo, devidamente aconchegado na cama, com o rosto sereno, mas já sem vida. Coincidências da vida…

Um Abraço

José Corceiro

Silva da Cart 1689 disse...

Parabéns Felismina!

E obrigado por nos teres feito reviver momentos inesquecíveis da nossa infância.
Quem a viveu assim plena e harmoniosamente, tem a "obrigação" de ser uma excelente pessoa e ... a possibilidade de escrever coisas tão lindas.

Um abraço do
Silva

Anónimo disse...

Amiga Felismina

Fico sensibilizado com os seus relatos.
Não tive grandes contactos com os meus avós, mas agora que sou avô, ainda dou maior relevo aos seus
pensamentos, e por isso, OBRIGADO!!!
Um abraço,

Jorge Rosales

Anónimo disse...

Meus Amigos

José Marcelino Martins

Mário Fitas

José Corceiro

Silva da Cart 1689

Jorge Rosales

Fico muito contente por ver que todos vós se revêem, ou vos é agradável relembrar a infância, ou ainda pensar nela, hoje quando quase todos somos também avós, porque a forma mais correcta de pagar o passado, é ajudar a construir o futuro.
Os nossos netos são a nossa esperança no porvir, e é muito importante que tenham em nós os impulsionadores, que os incentivem a ir em frente e a fazer melhor.
Com os nossos erros aprendemos e somos capazes de ensinar.
Todos sabemos isso meus amigos!
Foi-me muito grata a infância, por ter tido a meu lado a voz da experiência, do saber, da vivência, da disponibilidade para dizer, para ensinar, e faço com gosto, o mesmo que me fizeram.
Sei,que convosco se passa o mesmo.
Apesar de tudo o que não nos agrada, tenho muito orgulho na nossa geração.
Obrigada meus Amigos.

Felismina Costa