terça-feira, 3 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12005: Bom ou mau tempo na bolanha (30): O "Zé Quina" que já foi o "Marafado" (Tony Borié)

Trigésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.




O Tony, hoje vai contar a história do Zé Quina, cujo nome de guerra era o “Marafado”, seu companheiro de armas na então província da Guiné, história esta contada por ele, com a ajuda de sua esposa e principalmente da sua sogra, que não parava de o interromper, criticando-o a todo o momento, e mais tarde, coisas que o Tony ia presenciando, portanto cá vai.

O Zé d’Aurora gritava olhando o céu com o pensamento nos seus dois filhos, que agarrados aos remos da bateira, tentavam entrar a barra, com o mar mais violento e feroz do que um leão esfomeado.

 - Ai, Virgem Santíssima! Salva-nos, por misericórdia das almas bondosas que estão no céu!

Tinham saído a barra com bom tempo, lançaram uma pequena rede, não tinham pescado quase nada, só peixe miúdo. O peixe miúdo, serviu de isca, depois com a corda dos anzóis, aí sim, tinham muito peixe e algum graúdo.
De repente, levanta-se uma aragem que se transformou em forte vento, as ondas levantaram-se.

O Zé d’Aurora, continuava a gritar para os filhos:
- Vamos embora, direitos à barra, pois isto vem do lado da Espanha, e da Espanha, nem bons ventos, nem bons casamentos!

Remaram o mais que puderam, mas o mar apanhou-os quase a dobrarem a barra. O Zé Quina e o irmão, cada um agarrado ao seu remo, quase que batiam com a ponta do remo um no outro, tal era a força e o desespero com que remavam, ouvindo os gritos de angústia do seu pai.

Não sabem se foram salvos pelas almas bondosas que estavam no céu, ou pelo seu esforço em remar. A verdade, é que entraram a barra, ancoraram a bateira, descarregaram o peixe, e como sempre, e que aqui algumas vezes já foi dito, foram direitos à taverna do “Manhoso”, onde beberam dois copos de “abafado” cada um, em sinal de agradecimento, por estarem vivos.

O Zé Quina andava com o pai e o irmão mais novo ao mar, e como já foi dito em outras ocasiões, também ajudava num circo que visitava a vila no verão.
Tinha dias em que valia a pena, outros não. Quando havia boa pescaria, gastava-se, quando não havia pescaria, gastava-se na mesma, só que era fiado, o “Manhoso”, apontava no livro.
O Zé Quina, chega à idade de ir “às sortes”, como todos os outros rapazes na sua idade, e como Portugal estava em guerra, leva um carimbo a letras vermelhas no papel com os resultados da inspecção onde dizia, “apurado para todo o serviço militar”.

Na altura devida, apresenta-se num quartel da província, recebe um treino básico, depois aprende a disparar uma arma com alguma precisão, e vem para a então província da Guiné, para um cenário de guerra defender a sua Pátria.
Era do Algarve, e vem no mesmo barco onde vinha o Cifra, e é baptizado com o nome de guerra de o “Marafado”, porque cantava uns fados muito desafinados.

Cumpriu dois anos em cenário de guerra, era militar de combate, como tal sofreu angústias e desesperos, chorou, riu, embora para o final, não falasse muito, era uma pessoa calada, a guerra marcou-o, enfim passou por todos os sentimentos que os seus companheiros, na mesma situação passaram, e que os leitores já conhecem de algumas histórias que o Cifra já mencionou, onde ele era o protagonista, teve alguma sorte, regressou a Portugal vivo.

Como militar de combate, era corajoso e com espírito de aventura, e dizia sempre, “que não era pássaro de gaiola”.
Sai de portugal, primeiro vai para o Canadá, depois já com alguns contactos atravessa a fronteira e entra nos Estados Unidos. Começa a trabalhar num barco de pesca, num Estado do norte, e como é bom pescador a companhia proprietária do barco, legaliza-o ao fim de algum tempo.

Já legal, e com autorização de trabalhar e viver nos Estados Unidos, o Zé Quina vem para Nova Jersey. Vem viver no meio de uma comunidade portuguesa, que vive numa cidade ao sul do rio Passaic, quase na sua foz. Aí conhece a Isabel, cujos pais também são oriundos do Algarve. Gosta dela, ela corresponde, namoram e casam-se.

O sogro, como trabalhava há muitos anos numa grande companhia, no sul de Nova Jersey, arranja-lhe emprego nessa mesma companhia. Ele novo e ambicioso, e como essa companhia tinha sempre falta de pessoal, e os altos fornos de fundição, quando chegava a hora de descarregarem, não podiam esperar, ofereciam-lhe muitas horas extraordinárias.
Ele trabalhava sempre dois turnos seguidos, não trabalhava mais porque era proibido. Praticamente vinha a casa só para dormir.

A Isabel também trabalha numa fábrica de curtir peles, era a “fábrica das peles”. Compraram uma casa junto dos pais da Isabel. O Zé Quina trabalha por turnos de oito horas, em diferentes dias, incluindo fins de semana, portanto encontra-se com a Isabel no intervalo desses turnos, ou seja raras vezes estão juntos em casa, praticamente só alguns dias e à noite.

Ela fica grávida, têm um filho e o trabalho continua. O Zé Quina, quando vinha para casa, normalmente parava num bar que ficava próximo de sua casa, bebia um copo e não perdia oportunidade para mostrar o cheque, dizendo:
- Não acredito que ninguém ganhe mais dinheiro à semana do que eu. Vejam só este cheque!

O dinheiro tinha tomado conta do seu pensamento. Por vezes, passavam necessidade em casa, mas tinham que pôr aquela quantia no banco, todas as semanas.
A Isabel fica grávida de novo, têm mais um menino.
O ritmo de trabalho, não pára. A mãe da Isabel toma conta das crianças nas horas em que esta trabalha. O Zé Quina não pára de fazer horas extraordinárias.
A Isabel, torna a ficar grávida, nasce outro rapaz, portanto, têm três filhos.

Os sogros, dizem-lhe:
- Entendemos que já chega, se querem mais filhos, tomem vocês conta deles.

A Isabel tinha tido complicações no último parto e tinham- lhe tirado alguns órgãos interiores. Não podia ter mais filhos, pelo menos era o que os médicos diziam.
Entretanto os filhos foram crescendo, a Isabel trabalhando na “fábrica das peles” e o Zé Quina, na companhia de altos fornos.
Os filhos, enquanto eram pequenos, a avó ia controlando, levava-os à escola, esperava por eles à saída e trazia-os para casa.

Com o crescimento deles, e já sem controle nos mais velhos, a avó, certa noite em que o Zé Quina e a Isabel estavam em casa juntos, diz-lhes:
- Vocês têm que parar com o trabalho e tomarem conta dos vossos filhos, o dinheiro não é tudo na vida. Eu já não tenho mão nos mais velhos, continuando assim, vão ser uns filhos da rua!

E saiu, porta fora, irritada.
O Zé Quina diz para a Isabel:
- O que é que está mal com a tua mãe?

Ao que a Isabel, responde:
- Eu não sei, deixa-a para lá, e a propósito, onde é que estão os garotos?

Os garotos andavam na rua, e já era noite.

Os anos passaram. O Cifra, que agora se chamava única e simplesmente Tony, um dia lendo o jornal português que se publicava na comunidade também portuguesa, vê a fotografia e a notícia de um acidente, onde logo reconheceu o “Marafado”. Vai ao hospital onde o jornal dizia que estava internado, deparando com ele, que agora era única e simplesmente Zé Quina.

Estava muito mal tratado, tinha tido um grande acidente, na óptica da sua sogra, talvez se devesse ao desgaste físico.
Vinha do trabalho, conduzindo o seu carro, saiu da faixa de rodagem, foi abalroado por um camião que vinha em sentido contrário. Sobreviveu, como tinha sobrevivido da guerra na então província da Guiné.
Passado um certo tempo saiu do hospital, mas não sente um braço e caminha com certa dificuldade. No inverno usa uma bengala especial.

O filho do meio apareceu morto nuns terrenos debaixo duma ponte, onde passa a auto estrada. No hospital, na altura da autópsia, o diagnóstico médico foi “overdose”.
O mais novo, por diversas vezes foi internado para reabilitação, pois é dependente, saía curado, mas passado um tempo, voltava a drogar- se.
Era bom rapaz, mas o vício era mais forte. Ficou internado permanentemente e ajuda na clínica de reabilitação.
O mais velho estava preso, cumprindo pena por assalto com arma de fogo. Estava quase a acabar de cumprir a pena, e portanto em breve iria sair em liberdade.
Os vizinhos diziam:
- Deus o mantenha preso por toda a vida, pois se regressar vai ser o martírio daqueles pais.

A Mãe Isabel anda vestida de preto, passa a vida a caminhar para a igreja de Nossa Senhora de Fátima, que existe na comunidade portuguesa, pedindo para que Deus a leve.
O Zé Quina anda pela rua, quando há bom tempo. Vai ao bar, onde mostrava o cheque, e quando pede uma bebida, fecha os olhos, levanta a cabeça em direcção ao céu, talvez pensando no seu pai e no irmão, e quando iam juntos à taverna do “Manhoso”. Balbucia umas palavras que ninguém entende, limpa umas lágrimas com a mão do braço que está bom e pede a alguém que lhe tire umas moedas do bolso, que está no outro lado das calças, a que não pode chegar, para pagar a bebida. 

Da última vez que o Tony foi ao norte visitar os filhos, procurou o Zé Quina, e foi vê-lo ao cemitério, onde a Isabel o levou, banhada em lágrimas, mostrando-lhe a sua campa, onde o Tony deixou algumas flores, fechou os olhos e no seu pensamento, viu-o a ir junto com o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia, e com o Furriel Miliciano, a fumar o seu cigarro feito à mão, com a sua G3 nas mãos, a irem combater para o interior das florestas e pântanos, da então província da Guiné.

Paz à sua alma.


Tony Borie,
Junho de 2010.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11985: Bom ou mau tempo na bolanha (29): Herói Combatente (Toni Borié)

Guiné 63/74 - P12004: Efemérides (141): Homenagem aos Combatentes em Monte Real, levada a efeito no passado dia 1 de Setembro de 2013 (Joaquim Mexia Alves)

1. Com a devida vénia à Tabanca do Centro, ao nosso camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Esp/Ranger da CART 3492/BART 3873, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73) e ao nosso camarada Miguel Pessoa, Coronel Pilav Ref (BA12, 1972/74), autor da reportagem, transcrevemos o post publicado, hoje mesmo naquela página, a propósito da Homenagem aos Combatentes da Vila de Monte Real, levada a efeito no passado dia 1 de Setembro de 2013:


HOMENAGEM AOS COMBATENTES EM MONTE REAL

No passado dia 1 de Setembro concretizou-se finalmente o projecto de inauguração de um monumento aos combatentes na vila de Monte Real. Baseado na ideia de dois combatentes dessa freguesia que se bateram pela concretização desse projecto - Manuel de Jesus Duarte e Manuel Lopes - teve depois o apoio da Junta de Freguesia de Monte Real, da Câmara Municipal de Leiria e do Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes, a que se juntou a nossa Tabanca do Centro.

O período de férias que ainda se verifica terá afastado alguns potenciais participantes, mas nem por isso a cerimónia deixou de ter a dignidade que um tal evento merecia.

É claro que uns tantos camarigos, já algo saudosos dos convívios periódicos que aqui se realizam – e que estiveram interrompidos nos meses de Julho e Agosto, devido à menor disponibilidade do pessoal – a anteceder a cerimónia resolveram reunir-se num almoço na habitual Pensão Montanha. Com a presença de alguns familiares dos camarigos da TC estiveram presentes no almoço 20 convivas, que tentaram pôr em dia as conversas interrompidas desde Junho.

Pelas 16H00 dirigiram-se então os participantes para o local de concentração, nas imediações da Junta de Freguesia, seguindo daí para o local da inauguração, situado no largo junto aos Correios.

Para além da presença do Presidente da Câmara Municipal Dr. Raul Castro (ele próprio combatente com uma comissão cumprida na Guiné), do Presidente da Junta de Freguesia Sr. Faustino Guerra e do Presidente do Núcleo de Leiria da Liga de Combatentes TCor. Mário Ley Garcia (responsável pelo desenrolar da cerimónia), estiveram presentes representantes das Forças Militares do Distrito, bem como uma força da Polícia Aérea pertencente à vizinha Base de Monte Real (BA5). E claro, vários camarigos da Tabanca do Centro (e familiares) que quiseram associar-se a esta iniciativa, liderados pelo seu Amado Chefe, Joaquim Mexia Alves, colaborador activo na preparação do evento.


Resumimos os diversos passos da cerimónia que se iniciou, cerca das 16H30, com o descerramento da placa  em honra aos Combatentes da freguesia de Monte Real, acto em que participaram o Presidente da Câmara Municipal de Leiria, Dr. Raul Castro, o Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real, Sr. Faustino Guerra e o Combatente Manuel Lopes, sendo a placa benzida pelo Revº Padre David Nogueira, Pároco da Paróquia de Monte Real.

Seguiu-se a deposição de uma coroa de flores pelos Sr. Faustino Guerra e TCOR Ley Garcia junto ao Monumento, em homenagem aos combatentes já falecidos, com um período de 30 segundos de silêncio, a que todos os presentes se associaram.

Seguiram-se as palavras alusivas à cerimónia proferidas pelos diversos apoiantes da cerimónia:


O Presidente da Junta de Freguesia, Sr. Faustino Guerra, promotor desta iniciativa, transmitiu as suas palavras de boas vindas e de apoio aos Combatentes da freguesia de Monte Real e saudou a população em geral por participar nesta cerimónia.
Seguiu-se a alocução do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves, que pelo seu conteúdo decidimos reproduzir na íntegra no final desta reportagem, pois consideramos que as suas palavras dão voz àquilo que vai na mente de muitos combatentes.
O Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes, Tenente-Coronel Ley Garcia, proferiu depois algumas palavras de reconhecimento e incentivo aos combatentes da freguesia, traçando  ainda um breve historial da Liga dos Combatentes e do seu núcleo de Leiria.
Finalmente o Presidente da Câmara Municipal de Leiria, Dr. Raul Castro, saudou os Combatentes da freguesia de Monte Real, fazendo menção dum modo particular e bastante elogioso à nossa Tabanca do Centro (em cujos encontros ele próprio, como combatente, tem tido a oportunidade de participar), realçando as palavras “solidariedade” e “amizade” como duas das características que melhor identificam este nosso grupo.

Em reconhecimento do trabalho realizado em prol destes Combatentes, ao encontro dos objectivos da Liga de preservação dos valores patrióticos e de dignificação dos Combatentes, decidiu a Liga dos Combatentes entregar a sua medalha à Junta de Freguesia de Monte Real.
Seguiu-se finalmente a entrega a três combatentes da freguesia - de que realçamos os nomes dos nossos camarigos da TC, Manuel Lopes e Agostinho Gaspar – a Medalha Comemorativa das Campanhas. Bom, sempre pensamos que podia ter chegado bem mais cedo…
No final, cerca das 17H30, seguiu-se um lanche-convívio nas instalações da Junta de Freguesia, em que participou o pessoal que estava inscrito.


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AS PALAVRAS DO JOAQUIM MEXIA ALVES:

“Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de Leiria
Exmo. Sr. Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real
Exmo. Sr. Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes
Rerº Pároco da Paróquia de Monte Real
Exmas. Autoridades Civis e Militares aqui presentes

Permitam-me uma especial saudação à única mulher combatente aqui presente entre nós, a Enfermeira-Paraquedista Giselda Pessoa.

Meus caríssimos combatentes, meus camarigos aqui presentes
Minhas Senhoras e meus Senhores

Antes do mais uma curta explicação sobre um termo que usei ainda agora, camarigos, e que com certeza causou estranheza a algumas pessoas aqui presentes.
Camarigo é um termo inventado por alguns destes combatentes aqui presentes para significar algo de muito especial.
É a junção da palavra camarada com a palavra amigo.
Isto assim foi feito para tentar definir algo que vai para além da simples camaradagem militar, pois que essa camaradagem quando vivida em guerra, ultrapassa largamente a relação simples entre dois militares, para se tornar uma verdadeira amizade para toda a vida.
Assim acontece, porque em guerra cada um coloca a sua vida nas mãos do outro, e por isso mesmo a relação que se estabelece é mais do que ser camarada de armas.
É ser também amigo, e amigo para sempre.
Daí este termo inventado: camarigo!

Feita a explicação, passemos à homenagem que hoje aqui nos traz.

O combatente Manuel Lopes teve um sonho e quis concretizá-lo.

Abro aqui um parêntesis para dizer que me foi informado há dois dias, que também o combatente Manuel de Jesus Duarte, desta nossa freguesia, já tinha manifestado essa mesma intenção ao Sr. Presidente da Junta de Freguesia Monte Real, pelo que é de inteira justiça aqui citá-lo como parte integrante desta homenagem.

Queria o camarigo Manuel Lopes ver em Monte Real um singelo monumento de homenagem aos combatentes do Ultramar.
Homem insistente como sabe ser, falou com o Presidente da Junta de Freguesia de Monte Real, Sr. Faustino Guerra aqui presente, que não se pôs de lado e adoptou a ideia para que a mesma seguisse em frente.
Num almoço da Tabanca do Centro, (uma associação informal de combatentes, sobretudo da Guiné, que todos os meses se junta em Monte Real para um almoço de convívio vindos de várias partes de Portugal), falou ao Presidente da Câmara de Leiria, Dr. Raul Castro, hoje aqui connosco também, ele próprio um combatente pois fez uma comissão militar na Guiné, que obviamente também apadrinhou a ideia, juntou-lhe ainda o Ten Cor Ley Garcia, Presidente do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes e envolveu-me também a mim, para fazer, digamos assim, um núcleo de pessoas que concretizasse o seu sonho.

E não foi difícil, porque todos se juntaram, apoiando a ideia, dando-lhe corpo e finalmente tudo organizando, sob o “comando”, passe a expressão, do Presidente da Junta de Freguesia, de modo a estarmos aqui hoje para concretizar esta homenagem aos combatentes da Guerra do Ultramar.

Homenageamos os combatentes, não homenageamos a guerra, porque as guerras não são coisa de homenagear.

Não há guerras boas, nem guerras más, porque todas elas fazem vítimas, e as vitimas das guerras não têm cor, não têm nem lado, são apenas e tão só vítimas.

Há umas dezenas de anos atrás Portugal envolveu-se numa guerra em África e assim toda uma geração de jovens foi chamada a lutar nessa guerra, longe de casa, longe da sua terra, e em condições que muitas vezes eram apenas da mais elementar sobrevivência.

Mais de boa vontade ou menos de boa vontade, (às vezes até parece que há muita gente de boa vontade para fazer uma guerra?), responderam sim e lá demandaram o continente africano para uma muito dura prova de pelo menos dois anos.

Uns por lá ficaram dando a própria vida, vítimas da guerra, e esses hoje recordamo-los com saudade, mas também com todo o respeito, com toda a dignidade, com todo o orgulho que merecem aqueles que dão a vida pelos outros.

Outros regressaram, como a maior parte dos que aqui estão presentes, com mais ou menos pesadelos nocturnos, com diferenças imprevisíveis de humor, com algumas irritações inexplicáveis, mas regressaram e refizeram a sua vida, trabalhando e construindo o Portugal pelo qual lutaram.

Outros deveriam ter sido trazidos, deveriam ter sido defendidos, deveriam ter sido acarinhados, e infelizmente tal não aconteceu, acabando a maior parte por perecer sob a força dos governantes desses novos países.
Refiro-me, obviamente, a todos aqueles africanos que ao nosso lado combateram sob a bandeira portuguesa, alguns dos quais tive o privilégio e orgulho de comandar, e que foram abandonados à sua triste sorte, que, como referi, resultou na morte da maior parte deles.
Também esses hoje aqui são homenageados.

Outros ainda, regressaram também, mas infelizmente com problemas graves provocados pela guerra, desde deficiências físicas mais ou menos profundas, até problemas psíquicos, mais ou menos graves, mas geradores de comportamentos impeditivos de levar uma vida dita normal.

E se os primeiros sofrem visivelmente as suas deficiências físicas, os segundos sofrem-nas muitas vezes em segredo e por isso mesmo são ou colocam-se à margem da sociedade e por essa mesma sociedade são quase sempre desprezados e mal-amados.

E aqui, minhas senhoras e meus senhores, meus camarigos combatentes, cabe uma palavra de dor, de indignação e até de revolta, perante o Estado Português que não cuida daqueles que por ele deram dois anos do seu tempo de vida, deram a sua saúde, deram até a sua própria vida.

Como é possível que passados quase 40 anos ainda haja combatentes a lutarem por um simples reconhecimento, uma magra pensão, uma possibilidade de vida, que a saúde física ou mental deteriorada na guerra, não lhes permite viver normalmente?

Como é possível haver combatentes a viver nas ruas, a maior parte deles com problemas psíquicos, psiquiátricos, facilmente detectáveis para quem com eles acaba por falar, e que os impede de ter um trabalho fixo, para ganhar o seu próprio sustento e o dos seus?

Como é possível haver tanta mordomia para determinados políticos que nos têm governado, e para aqueles que serviram Portugal com as suas vidas, apenas haja migalhas e mesmo essas migalhas terem de ser esmoladas até à exaustão?

Uma Nação que não cuida dos seus filhos, daqueles que por ela deram a vida, é uma Nação sem história, ou pelo menos é uma Nação que está a apagar a sua história.

E nós sabemos que Portugal tem uma história rica, uma história de sucessivas gerações que construíram este nosso país, pequeno talvez, mas orgulhoso de si próprio e das suas gentes.

Julgo que interpreto a vontade dos meus queridos camarigos combatentes que regressados da guerra conseguiram reconstruir as suas vidas, nas suas famílias e nos seus trabalhos ao afirmar que estes não querem subsídios, ou outras “compensações” financeiras, seja por que motivos forem, mas sim, que essas benesses, (que o não são, pois são um dever da Nação), sejam dadas àqueles que por causa da guerra estão incapacitados de viverem uma vida dita normal e como tal vivem problemas graves de toda a espécie no seu dia-a-dia.

Mas sem burocracias exageradas, sem desconfianças inexplicáveis, sem entraves sem sentido, que na maior parte das vezes têm apenas como explicação a contenção das despesas do Estado, o mesmo Estado que não se contém nas despesas quando se trata compensar aqueles que agora o servem.

Senhor Dr. Raul Castro, meu camarigo, Senhor Faustino Guerra, meu conterrâneo, minhas senhoras e meus senhores, perdoem-me estas palavras que acabei de proferir, mas elas andavam caladas cá dentro há muito tempo.

Obrigado do fundo do coração por esta homenagem, mas não sendo pobre e mal-agradecido, permitam-me que diga que a maior e mais perfeita homenagem que os combatentes desejam, é aquela em que aqueles que com eles combateram e hoje sofrem os problemas decorrentes da guerra que os incapacita no seu dia a dia, tenham uma vida digna, uma vida minimamente aceitável, porque o Estado Português não lhes quer negar esse direito.

Sabemos que não está nas vossas mãos a resolução total deste problema, mas sabemos também que todos juntos, nunca desistindo, (como não o fizemos durante a guerra), podemos um dia “levar a carta a Garcia”.

Portugal precisa, mais do que nunca, de se olhar, de olhar as suas gentes, de redescobrir a generosidade com que os Portugueses sempre se deram pela sua Nação, para não corremos o risco de cada vez mais nos fecharmos em nós próprios apenas para “lambermos as nossas feridas”.

Homenageando, respeitando e enaltecendo os Combatentes, homenageamos, respeitamos e enaltecemos a vontade inabalável dos Portugueses.

Homenageando, respeitando e enaltecendo aquelas gerações de combatentes, fazemos também com que as gerações de agora e as vindouras, sintam orgulho e vontade de pertencerem à Nação que «deu novos mundos ao mundo».

Muito obrigado a todos pela vossa presença e peço que me acompanhem num grito de viva a Portugal!

Viva Portugal!”

(Miguel Pessoa)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11992: Efemérides (140): 8º aniversário do monumento aos combatentes da Lourinhã, 25/8/2013 (IV e última parte)

Guiné 63/74 - P12003: Convívios (527): III Convívio da CCAÇ 3414, realizado nos passados dias 9; 10; 11 e 12 de Agosto de 2013 na Ilha do Pico (Joaquim Carlos Peixoto)



1. Em mensagem de hoje, dia 3 de Setembro de 2013, o nosso camarada Joaquim Carlos Peixoto (ex-Fur Mil Inf MA, CCAÇ 3414, Bafatá e Sare Bacar, 1971/73) enviou-nos a reportagem do III Convívio do pessoal da sua Unidade, levada a efeito na Ilha do Pico nos passados dias 9 a 12 Setembro de 2013:




CONVÍVIO DA CCAÇ 3414

Como a CCAÇ 3414, era composta na maioria por soldados açorianos, houve sempre uma grande dificuldade em nos reunirmos.

Em 2011, graças ao “ Blogue Luís Graça”, conseguimos organizar o nosso 1º convívio, em Coimbra. A maior parte dos presentes era do Continente e apenas um do Arquipélago.

Em 2012 foi marcado o 2º encontro, que seria em Angra do Heroísmo no quartel, antigo BII17 (hoje denominado Regimento de Guarnição 1), onde foi formada a Companhia. Neste convívio já apareceram continentais e açorianos, mas ainda éramos poucos.

Foi então marcado o

3.º CONVÍVIO NA ILHA DO PICO

Este encontro começou no dia 9 de Agosto, na ilha do Pico, com um jantar onde houve um pequeno contacto entre todos.

Neste convívio estiveram camaradas do Continente, de várias ilhas açorianas, e muitos emigrantes de vários estados dos EUA.

O dia 10 começou com uma missa na Igreja da freguesia de S. João em homenagem aos mortos em combate, furriel Ribeiro e soldado Parreira e a todos os já falecidos.


Seguimos para o Parque “ São João Pequenino - onde foi organizado o almoço.


Belíssimo almoço onde para além das lapas e uma grande variedade de queijos das ilhas foi servido o peixe albacora assada à moda de S. João. O amigo Sérgio, da ilha do Pico, ofereceu um porco para grelhar. O amigo Bernardo ofereceu umas camisolas referentes ao evento. Um outro soldado, o Furtado, que se dedica a produzir peças de artesanato, ofereceu uma pequena lembrança a cada um de nós. No fim para além do bolo para comemorar o 40.º aniversário da chegada da Guiné, houve uma grande variedade de bolos típicos dos Açores. Para acompanhar foram servidos vinho tinto da ilha do Pico, vinho branco da ilha, vinho verdelho, além de cerveja, água e sumos. De referir que toda a organização, confecção e preparação esteve a cargo de familiares dos soldados. 





No fim houve a actuação do “ Grupo Folclórico da Casa do Povo de S. João do Pico e o “ Grupo de Pauliteiros de Sanhoane.”



No dia 11 concentramo-nos em S. João, onde fomos visitar o Museu Baleeiro. De seguida demos a volta à ilha acompanhados pelo Caldeira, que como natural desta ilha, nos serviu de guia. Entre outras coisas visitamos o museu da vinha em Santa Luzia, zona classificada como património mundial. Nesta viagem passamos pela casa de mais um amigo, o Simas, que nos “ obrigou” a entrar onde nos serviu vários queijos feitos por ele acompanhados pelo famoso vinho verdelho.

No dia 12 recebemos o convite do Leonel Ramos para um almoço na ilha de S. Jorge. Mais uma viagem de barco para a ilha onde nos foi servido um fabuloso almoço, para o qual matou um bezerro.



Regresso à ilha do Pico.

Porque “ recordar é viver “, viveram-se dias de euforia, de emoções contidas, lembraram-se os bons e maus momentos passados juntos na Guiné, recordamos os que já partiram e num abraço de amizade, companheirismo e de uma grande dignidade matamos saudades daquele tempo.

É indescritível o que se viu e viveu nestes poucos dias de confraternização.

É pena que os “grandes” deste país, aqueles que apregoam aos sete ventos, o bem para Portugal, não tenham assistido a tão nobre e leal encontro.

É pena que os “grandes” não vejam a felicidade com que se pode viver num simples abraço.

É pena que os “grandes” não possam tirar lições desta camaradagem e lealdade, porque só vêem grandezas.

É pena que os “grandes” não vejam como poderiam dar a volta a este país, olhando para o que estes “guerreiros” são capazes de fazer para se reunirem.

É pena que os “grandes” não estejam atentos nem oiçam a voz destes ex-combatentes que perderam a juventude, que perderam os sonhos, que viram companheiros sucumbirem junto deles, que viram pais, irmãos, esposas e filhos transformarem os seus olhares alegres e felizes em olhares tristes e melancólicos.

É pena que os “grandes” se esqueçam de respeitar estes Homens, de lhes dar o devido valor, em vez de os insultar com as atitudes que tomam com eles.

Sem mais delongas, porque o que faz escrever este texto é relatar sobre o nosso III convívio, quero agradecer a todos, em especial aos residentes nas ilhas, o carinho, a amizade e o calor humano com que nos receberam.

Estou certo, que as minhas palavras de agradecimento, assim como a felicidade que senti, são comuns a todos os camaradas que participaram neste convívio, vivendo, tal como eu, todas as emoções.

Não tenho palavras para agradecer ao Sérgio e seus familiares todo o empenho que tiveram para que o dia 10 fosse um dia inesquecível.

Assim como me faltam as palavras para também agradecer ao Leonel Ramos e toda a família o espectacular almoço que ofereceu sem nada em troca a todos os que participaram neste convívio. A emoção é forte, as palavras não brotam para agradecer tamanho testemunho de amizade.

Propositadamente, deixei para o final, os três grandes colaboradores e organizadores deste convívio: Caldeira, Lopes e Silveira. Sem o seu trabalho, esforço, dedicação, espírito de solidariedade, camaradagem e amizade este convívio não teria sido possível. Bem hajam, companheiros de luta, pela vossa disponibilidade trabalho e amizade. Valeu a pena o esforço que fizeram. Estes dias, as noites mal dormidas, preocupação de tudo estar em ordem, foi compensado pelo sorriso que viram em cada rosto e a alegria que cada um de nós manifestou.


Obrigado a todos e que o próximo convívio vos faça tão feliz, quanto este nos fez.

OBRIGADO.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12002: Convívios (526): V Convívio Anual dos ex-Combatentes no Ultramar do Concelho de Gondomar, dia 21 de Setembro de 2013 na freguesia de S. Pedro da Cova (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P12002: Convívios (526): V Convívio Anual dos ex-Combatentes no Ultramar do Concelho de Gondomar, dia 21 de Setembro de 2013 na freguesia de S. Pedro da Cova (Carlos Silva)

V CONVÍVIO ANUAL DOS EX-COMBATENTES NO ULTRAMAR DO CONCELHO DE GONDOMAR

DIA 21 DE SETEMBRO DE 2013

FREGUESIA DE S. PEDRO DA COVA

PROGRAMA

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11970: Convívios (525): 50 anos depois da partida para o CTIG, os camaradas da CART 494 reencontraram-se em Viana do Castelo, a 21 de Julho de 2013 (Coutinho e Lima)

Guiné 63/74 - P12001: Parabéns a você (621): Luís Gonçalves Vaz, amigo Grã-Tabanqueiro

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P11997: Parabéns a você (620): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta capa de Pélissier não tem nada a ver com a Guiné, reproduz o forte de São José de Encoge (1759), em Angola, Pélissier estudou Angola a fundo.
A matéria deste trabalho prende-se com as consequências demográficas na guerra de guerrilhas, ele faz uma interpretação do que se passou na Guiné, com base nos dados das autoridades portuguesas e os apresentados pelo PAIGC.
Como se verá, ele não andou muito longe da verdade e não se deixou seduzir pelos cânticos das sereias.

Um abraço do
Mário


O naufrágio das caravelas, por René Pélissier

Beja Santos

“Le Naufrage des Caravelles, Etudes sur la fin de l’empire portugais (1961-1975)”, Editions Pelissier, 1979, reúne um conjunto de ensaios que o investigador publicou em diferentes periódicos entre 1967 e 1975, todos eles consagrados às colónias portuguesas em África. De um trabalho publicado em 1974 na Revista Francesa da História do Ultramar e intitulado “Consequências demográficas das revoltas na África portuguesa (1961-1970), ensaio de interpretação”, parece-nos interessante reproduzir algumas das suas afirmações sobre a situação então vivida na Guiné.

Ele recorda que ambas as partes na contenda usaram de propaganda para angariar apoios, por vezes sem nenhuns escrúpulos. Qualquer guerrilha leva a alterações demográficas, ao crescimento de alguns territórios em detrimento de outros, as partes em conflito brandem números sobre a população que se acolhe à sua causa. Neste trabalho, o autor não esconde que parte do postulado da validade das estatísticas portuguesas, considera que os recenseamentos portugueses constituem um ponto de partida particularmente sólido. E logo comparando as fontes portuguesas de 1960, em que se fala de uma população aproximadamente de 521 mil habitantes, refere dados exibidos por Basil Davidson em que a fonte do PAIGC refere 800 mil habitantes, em 1968, e não tem rebuço em dizer que as fontes dos nacionalistas têm tendência a empolar os efetivos das etnias que lhes eram favoráveis, minorando as que eram manifestamente opostas. E dentro desta comparação dos dados apresentados pela Agência-Geral do Ultramar e fontes do PAIGC, mostra como o PAIGC reduz a população Fula e Mandinga inflacionando a Balanta e a Manjaca. E adianta que o recenseamento de 1960 feito pelas autoridades portuguesas visava apurar com rigor por causa dos impostos e conhecer com exatidão possível a onda parava a mão-de-obra masculina.

A fuga de populações começou a ser um dado inicialmente menor entre 1961 e 1962, a partir de 1963 é a desarticulação na região Sul, com o tríplice efeito de concentrações na mata, em apoio ou com a coação do PAIGC, em fuga para as regiões fronteiriças da Guiné-Conacri ou com uma concentração à volta de povoados mais importantes como Aldeia Formosa, Bedanda, Tite, Buba, Catió, Cufar ou Gadamael Porto; este fenómeno da desarticulação com as inevitáveis consequências demográficas também se registou na região de Corubal, entre Xime e Xitole, portanto Leste, e afetou a região entre Mansoa e Bissorã (Morés) e Norte (região de Farim). É a partir daqui que se pode apreciar a evolução dentro dos conselhos e circunscrições: entre 1960 é incontestável o crescimento de Bissau e Bolama, de Bafatá, do Gabú e dos Bijagós e um decréscimo pode ser observado em Cacheu (muito ligeiro), em Mansoa, em Bissorã (relevante), São Domingos, em Farim (relevante), em Fulacunda (relevante) e em Catió (relevante). Os dados que dispomos sobre os refugiados no exílio não são suficientes. O alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados só fez a recensão dos guineenses no Senegal, em 1971 considerou haver aqui cerca de 83 mil guineenses, mas nada se ficou a saber sobre os refugiados na Guiné-Conacri, e ignorou-se as comunidades guineenses de não refugiados residentes no estrangeiro. E para sermos rigorosos, uma população que vive no exílio não vive na dependência condicional do PAIGC.

Procurando analisar as consequências demográficas, Pélissier observa que o caso de Bissau tem a mesma analogia de qualquer capital de um país em guerra, procura-se segurança, trabalho. Bolama era uma ilha, dispunha de um centro militar, atraia recrutas e só era alcançável por mísseis. Os Bijagós, um pouco à semelhança dos Felupes, puseram-se à margem do conflito, igualmente que atraíram quem procurava segurança e atividades económicas. A estagnação demográfica de Cacheu tem a ver com o comportamento do chão Manjaco, uma certa fuga de população para o Senegal, até 1970 julgava-se, na ótica dos militares portugueses, que se recusaria o apoio ao PAIGC.

O Gabu, esse imenso concelho com uma longa fronteira com a Guiné-Conacri, contou com a hostilidade dos Fulas e as imensas reservas dos Mandingas, ambas as etnias não queriam embarcar na aventura coletivista nem desfazer-se de uma hierarquia do tipo feudal. Os territórios ditos sob o controlo do PAIGC (caso do Boé) eram áridos e com população muito reduzida. A região de Bafatá acolheu, tal como Bambadinca e o regulado de Badora populações inseguras e daí ter mais população em 1970 do que 1960. Aqui e acolá, Pélissier faz observações contundentes, por vezes o PAIGC afirmava controlar toda a região Leste, chegando ao ponto de incluir Contubuel em zona libertada, a estatística portuguesa referia, em 1970, cerca de 22 mil habitantes, o Xitole podia estar cercado por grupos armados mas de modo algum estava sob o total controlo do PAIGC.

Depois, na análise dos concelhos em baixa populacional, Pélissier refere as fugas para o Senegal, os litígios no rio Cacheu e o predomínio balanta onde, sobretudo em Farim, Bissorã e Mansoa, o PAIGC foi buscar o seu principal apoio. São Domingos aparece dividida entre o fator nacionalista, a presença muita próxima do Casamansa e a hostilidade Felupe, sobretudo. A sul do Geba, onde a implantação do PAIGC era inegavelmente forte, há a distinguir a razia demográfica em Fulacunda e Catió.

Que concluir? Há números que apontam para perdas superiores às migrações internas; há o bloco muçulmano das savanas do Leste, há os terrenos do tarrafo entre os rios Cacheu e Tombali. Portugueses e PAIGC guerrearam também com os números. Pélissier admite que em 1970, haveria no exílio 90 mil guineenses e 30 mil sob inteiro controlo do PAIGC e presume mesmo que este número poderá ser altamente contestado pelo PAIGC. É inaceitável falar-se de uma população de 800 mil habitantes e ainda por cima reivindicar o controlo de dois terços do território, a ser verdade isso significaria dominar mais de 440 mil pessoas, dez vezes mais que os números estabelecidos pelas fontes portuguesas. Como se saberá mais tarde, quando o PAIGC fizer recenseamento para as eleições da sua assembleia legislativa, os números apresentados não excederão os 80 mil eleitores.

Este estudo de Pélissier é hoje matéria para académicos, já não tem o trotil que se destinava a incendiar apoiantes e adversários. Dentro desta frieza, dá para apreciar o rigor que Pélissier usou nas suas considerações. E dá igualmente para refletir como estes trabalhos às vezes esquecem dimensões óbvias como sejam as melhorias sanitárias, a baixa da mortalidade infantil e, mesmo que conjuntural, o aumento da esperança de vida. As guerras guardam em si segredos que só podem ser revelados mais tarde: por exemplo, o estado sanitário dos britânicos melhorou consideravelmente durante o racionamento da II Guerra Mundial, menos açúcar, menos gorduras, etc. Os guineenses, a despeito do tumulto demográfico, não regrediram nas suas condições de vida. Mas isso é outra coisa que não vem ao caso neste trabalho de René Pélissier.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja (Mário Beja Santos)

domingo, 1 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P11999: (Ex)citações (225): Camaradas que tombaram no palanque do conflito (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Sinais do tempo, sem tempo, da enfadada guerra guineense

Camaradas que tombaram no palanque do conflito 


Permitam-me esvoaçar nas asas do vento e trazer à opinião pública no nosso blogue uma foto de túmulos de infelizes camaradas que nos verdes anos da sua juventude perderam a vida na guerrilha guineense. Admito que não é fácil debater uma temática que hoje, já sexagenário, me arrepia a “meia dúzia” de cabelos que pomposamente primam em manter-se hirtos à tona de um coro cabeludo que outrora fez “ronco”. Porém, esta explanação de realidades que amiudadamente observamos, toca no ego de antigos camaradas que nos anos 60 e 70 viram partir para a tal famigerada viagem sem regresso companheiros e amigos deste cosmos terrestre. 

Olho, atentamente, os sepulcros (amigos de infância que morreram em Angola, Moçambique e Guiné) que frequentemente visiono no cemitério da terra que me viu nascer – Aldeia Nova de São Bento – e que um dia me acolherá para a eternidade junto àqueles que me deram o ser, e questiono-me sobre a injustiça que se abateu sobre aqueles jovens, à semelhança de muitos outros bravos militares, que tombaram numa guerra na qual foram, simplesmente, soldados desconhecidos. Forçados a partir para terras de além-mar, como era exigido, o destino foi-lhes cruel e os seus restos mortais chorados com uma inflamada saudade.

Esmiuço o conteúdo da guerra na Guiné – 1963/74 – e reconheço que os seus imensuráveis contornos foram, de facto, incontroláveis. Consultando os registos, e não vou mencionar o número como facto consumado, ou dado adquirido, refere o documento da Comissão para o Estudo das Campanhas África – Estado Maior do Exército – que na Guiné terão morrido em combate 2069 militares oriundos da Metrópole e 471 elementos do recrutamento local.

Defuntos que em nada contribuíram para o fatídico fim numa guerra onde as frentes de combate, a meu ver, se apresentavam pressupostamente desiguais. Nós, singelos militares, que conhecemos o conteúdo real do conflito, sabemos ainda hoje que as armadilhas que o próprio terreno impunha, assim como o clima adverso constatado, eram fatores propícios a eventuais contactos com os guerrilheiros adversários que conheciam a razão do combate.

Considero que é perfeitamente legível que evoquemos, também, toda uma estirpe de gentes que souberam enobrecer a sua defesa pessoal e coletiva e que por ora continuam, felizmente, a possuir o privilégio de contar as suas histórias hilariantes de uma guerra que nos foi inesquecível, sendo porém uma certeza que os estropiados e os que ainda hoje sofrem de profundos traumatismos adquiridos no cenário guineense, são bandeiras sublimes de um tempo que jamais caiará na orla do esquecimento de um País, o nosso, que tende, pressupostamente, olvidar a mais recente peleja da história em que Portugal esteve envolvido.

Era miúdo e pela minha cabeça jamais passou a hipótese, depois a certeza, que o meu destino me reservasse uma comissão militar na Guiné. Mas… aconteceu. Revejo o sentimento de dor nos momentos da chegada dos corpos de inocentes à terra onde eram sobejamente acarinhados e que lá longe, num chão distante, perderam a vida em plena flor da idade. Familiares e amigos, apreensivos, tentavam explicar o inexplicável. O choro, em coro, resvalava para uma revolta suprema. O povo, pela calada, lançava gritos de insurreição pela desgraça conhecida e, clandestinamente, sonhava pelo fim da guerra no Ultramar.

Esta ligeireza memorial sobre a temática abordada, levou-me a um pressentimento comum que explica, sumariamente, que serão raros os cemitérios nesta pátria lusíada onde não haja uma lápide que refira a existência de um antigo camarada morto na guerra da Guiné.

Permitam-me, pois, relembrar que a foto que aqui vos deixo foi recolhida no cemitério da minha terra e diz respeito a um camarada fatidicamente caído numa peleja díspar, restando a sensação comum que a sua coragem, como militar português, extravasou desejos impensáveis. Este leque de saudosos camaradas foram, no fundo, peças de um puzzle estéril onde os interesses individuais de senhores de colarinho branco se sobrepunham ao coletivo de uma sociedade quiçá desordenada.

Os militares que integravam, normalmente, as ditas frentes de combate eram substancialmente oriundos da plebe.

Descansem em paz velhos camaradas!
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: