quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16132: Os nossos seres, saberes e lazeres (156): A pele de Tomar (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2016:


Queridos amigos,
Hoje deu-me para aqui, a justificar as diferentes harmonias entre a cidade e o campo, é uma realidade no casco histórico, o que já não acontece na cidade que se expandiu para lá do Nabão, em finais do anos 1940.
Tomar tem muito caráter no uso da pedra, nas sacadas das janelas e nos rendilhados do Convento de Cristo. Procuro juntar provas. Há mesmo um edifício do turismo que tem um cunho de palacete, entra-se como numa sala de castelo e quando se sobe para o andar das exposições fica-se com a sensação de que estamos dentro de formoso palácio.
Tento abonar que toda esta pele é um rico património que merece ser usado e abusado. A verdade é que os excursionistas daqui saem deslumbrados por tanta riqueza acumulada, não sem um travo de amargura por sinais gritantes de desleixo ou abandono.
Aqui fica o convite para virem acariciar a inesgotável pele de Tomar.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (6)

Beja Santos

Começa digressão no Convento de Cristo, detenho-me em pormenores, encaro-os como muito valiosos. Ora vejam.



Visitar Tomar, tenho para mim, requer um estado de estado de espírito paradoxal: sentir que a cidade é bordejada pelo campo, que lhe talha um caráter meio citadino meio rural. Percorrer Tomar pressupõe abertura: para o grandioso do património monumental, para as vistas onde o verdejante dos campos sempre sobressai e convoca, até mesmo a comunicação urbana não é definitiva, pode muitíssimo bem acontecer que o nosso interlocutor quando se despedir parte para fora da cidade. Por isso me identifico tanto com uma frase que vem em "O Coro dos Defuntos", de António Tavares, Prémio Leya 2015, e penso em Tomar: “Na cidade, os espaços perdem-se por serem todos iguais. Ali, entre as ruelinhas de pedra rugosa, vive-se e observa-se o mundo em cada passada e percebe-se que a vida é feita deste gesto de andarilho que todos nascemos a saber fazer”. Então, subo ao Convento e fico a namoriscar alguns detalhes desta famosa pedra rósea por onde andaram escultores sublimes, é um lavrado da pedra de alguém que se enamorou pelo sítio, tanto ou mais como a encomenda que lhe fez o rei Venturoso, daí esta pedra não ter idade. Atenção, é uma arte exigente, pode gabar-se de exigir muita luz e peregrinação, a subir e a descer. Mas o produto final é um regalo para os olhos, é da melhor escultura do nosso Portugal.


Naquele primeiro andar estava o Comando do RI 15, até 1963, se não erro. Desculpem a petulância, a imagem é impressiva, as árvores parecem gritar, e talvez tenham razão, naquelas salas cumprimentaram-se, em jeito de despedida e em jeito de chegada, oficiais que partiram e que vieram da guerra, diferentes guerras. O chocante é que houve aqui um convento franciscano, maior mensagem de paz não podia haver. Hoje, este espaço é aprazível, tem um Museu dos Fósforos, trago aqui regularmente os meus amigos, e em frente artesãs delicadas fazem a sua arte de oleiras e ceramistas, que Deus as proteja.


Sai-se do Convento que já foi quartel e prantamo-nos na parede da igreja, sempre a honrar S. Francisco. É bem visível a urgência dos reparos, toda aquela humidade está a enfraquecer a construção. A parede em si nada tem a assinalar, são os contrafortes que dão a rijeza ao monumento que me impressionam, têm uma estranha delicadeza em construção tão austera. A hora não era muito boa para o que eu pretendia pôr em relevo e que se prende com o reparo deixado em cima, Tomar tem sempre a verdura a acenar-lhe, neste caso a Mata dos Sete Montes é uma vegetação de gala. Assim seja.


Quis o acaso ou fortuna que quando eu tinha sete anos vi nascer por inteiro a Avenida de Roma, em Lisboa, estávamos em 1952. Tudo impressionava: as linhas aerodinâmicas, as alturas, as sacadas, as portas maciças e um dado pormenor, as esculturas a encimar as portas, há mesmo um prédio que tem um trabalhador com um malho na mão, lembra a arquitetura dos tempos de Hitler e Estaline. Foi com muito agrado que descobriu uma escultorinha neste prédio, parece envergonhada, talvez enferrujada, é o símbolo de um tempo, aqui lhe deixo o meu agrado.


Nos anos 1930, em frente à Mata dos Sete Montes surgiu um belíssimo edifício heteroclítico que continua ao serviço do turismo. Alguém me disse que houve um presidente de câmara que repescou belas cantarias, tetos almofadados e outras preciosidades, e daí a sensação que persiste quando aqui venho obter informações ou ver uma exposição. Naquele dia abria a exposição da artista Romy Castro, o relato fica para depois. Pedi licença e, catrapus, captei um teto como não deve haver outro em oficinas de turismo em Portugal. Sei que há tetos muito belos em Tomar, ali bem perto na entrada do Instituto Politécnico é tudo um desfrute para o olhar.


É um dos meus esquinados favoritos, no centro da cidade, foi no princípio do dia, já havia cheiros de Primavera, um calor inusitado para as 10h30 da manhã, e aquela pedra terrosa parece que se desloca e aparta da alvura das paredes. O que me desgosta é a mistura de fios que desfeia a singularidade do património. Será que não havia outra solução para pôr estes cabos?


Quando por aqui passo, enamoro-me com as proporções entre largura e altura, mesmo aquela falta de pedra no lintel dá um ar de graça, parece uma Idade Média renovada, graciosa, e aquela roseira tudo humaniza, as plantas facilitam-nos o aprazimento do lugar, é o elemento simbólico do jardim que guardamos no olhar.



Sim, eu sei, são duas maneiras de viver, são dois prédios bem distintos, o primeiro tem mais ancestralidade, o que eu gosto do jogo de cores, prodigioso, um autêntico mano-a-mano entre a tinta e a pedra, é uma fachada cheia de classe. Mas gosto muito desta janela, aquele pormenor de a atirar para as alturas, aquela sacada que não tem mais nem menos do que precisa, e que se associa naturalmente ao conjunto. Chama-se a isto caráter, identidade, sopro criativo, gosto de viver, o conforto não se cinge ao que está intramuros, estas paredes falam, são o sinal permanente de que alguém assim construiu com um toque de personalidade, e comunicou satisfação de poder abrir a janela como se se abrisse para o mundo. Quem assim pensar até é capaz de ter razão, Tomar, nos seus momentos faustos, foi uma encruzilhada de muitos cruzados, foi uma janela que se abriu para o mundo, e não é por acaso que conserva a mais linda janela do nosso rincão, a do Capítulo.


Não vale a pena iludir o leitor, um portão aberto para dali chegar a uma varanda e deleitar a vista sobre jardim ou pomar, me encanta e assim remato a viagem garantindo que são estes jardins frondosos, este gosto pelo arvoredo, pelo colorido dos canteiros, o Nabão que por ali bordeja, as matas, o belo Mouchão e o seu murmurejar atravessando pontes, é isso que me encanta, não viver entre florestas de cimento mas de poisos humanos, naturalmente combinados entre o passado e o presente. É por isso que quando olhamos a cidade daquele balcão junto à igreja de Santa Maria dos Olivais temos a sensação que o património se acamou com a natureza, contemplando aquele fio de água que depois vai dar a Lisboa, por portas e travessas.

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 18 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16103: Os nossos seres, saberes e lazeres (155): A pele de Tomar (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16131: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte III: A vida na mina Munguanhe 2

Terceira crónica enviada a 18 do corrente;

Olá Luís, boa noite!
Aqui vai a parte 3 das memórias da Diamang. Espero que estejam do teu agrado, pelo menos revelam episódios autênticos, ainda que susceptíveis de interpretações bárbaras. É que ter feito a tropa na Guiné era muito diferente de trabalhar atrás do sol posto nas longínquas terras do leste de Angola.

Com um abraço
JD


[ O José Manuel Matos Dinis, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, nosso grã-tabanqueiro e adjunto do régulo da Magnífica Tabanca da Linha, Jorge Rosales, depois do seu regresso a casa, a Cascais, em janeiro de 1972, vindo da Guiné, rumou até Angola, em maio de 1972, para ir viver e trabalhar na Lunda, na melhor empresa angolana na época, a famosa Diamang - Companhia de Diamantes de Angola, com sede no Lundo. Aqui casou (por procuração), aqui viveu e trabalhou, aqui nasceu o seu primeiro filho... Desafiámo-lo justamente a falar da sua experiência angolana em meia dúzia de crónicas memorialísticas. Ele aceitou galhardamente o desafio.]


1. As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte III: A vida na mina Munguanhe 2
.
A mina de que me tornei responsável, e que já descrevi em pinceladas rápidas, era o Munguanhe-2, uma colina explorada sob o método clássico, com o desmonte de cascalho por padejamento, linhas para vagonetas que transportavam o cascalho para uma lavaria de "pans". Os meios mecânicos empregues eram escassos, e a rentabilidade ficava muito longe das minas mais rentáveis. Imagino que se mantinha este modelo de exploração, porque, apesar da escassa produção diamantífera, era mínimo o desperdício e não deixava de ser rentável. Agora não me ocorre o valor médio da produção diária, que talvez não excedesse os 20 quilates em pequenas gemas.

Alguns dias depois já identificava parte do pessoal pelos nomes. E uma ocasião tive uma atitude que lhes caiu muito bem. Faltou um elemento que me parecia bom trabalhador, e durante a chamada que antecedia o inicio dos trabalhos, o Muriandambo, capataz principal, referiu que aquele elemento tinha a mulher muito doente. Pedi que alguém me indicasse a aldeia onde morava, e lá fui em busca da doente. Eram pessoas humildes que aceitavam com resignação a doença, mas vi que tinha uma grande chaga na perna, e soube que teria sido vista pelo feiticeiro. Com ajuda entrou para o carro, e levei-a ao posto médico. Na ausência do Julien Martan (fonética afrancesada de Júlio Martins), ausente na ocasião, pedi a um auxiliar para ver a doente com a maior brevidade. Limpou-a, desinfectou-a, entregou-lhe alguma medicação, e recomendou que lá voltasse mais tarde. Levei a senhora de volta à aldeia, e voltei à mina para reiniciar a tarefa do diária. Lembro-me de que tive boas notícia dela.

Outra ocorrência:
no dia de pagamento de salários, pagamento que se efectuava no refeitório onde o Tomás se deslocava acompanhado de uma espécie de burra com o dinheiro, observei que alguns metros adiante, ainda na área da mina, estavam uns tipos desconhecidos. Indaguei quem eram, e logo soube que se tratava dos credores de algum pessoal, que lá iam receber o produto da venda de aguardente. Dirigi-me a eles e disse que não os queria ali, que fizessem a cobrança nas aldeias. Saíram sem ripostar, mas no fim do dia o Muriandambo demorou a contar-me que esses homens preparavam ali perto os destilados, e que alguns homens gastavam logo uma boa parte dos salários, o que gerava grandes perturbações com o pessoal, pois as mulheres, perante a escassez de dinheiro, fugiam de casa, e eles faltavam alguns dias ao trabalho para as resgatarem. Assim, constatei que os consumidores do "marufo" ficavam duplamente prejudicados, pois gastavam boa parte do salário na compra da bebida, e deixavam de receber o correspondente aos dias em falta. Isto, sem contar com as relações afectadas. Ainda me referiu que ficavam mal vistos na aldeia por causa das dificuldades resultantes do consumo da bebida. Notei, portanto, algum preconceito ou ressentimento contra os elementos socialmente menos bem comportados. 

Em outra ocasião faltaram dois elementos no dia do pagamento, e guardei os salários de cada um em envelope. O André Pihia, um rapaz ainda jovem e que mostrava competência e era capita da lavaria, assistiu a tudo, e à guarda dos envelopes numa gaveta da secretária, e teve uma tentação maldosa. Depois do serviço arrombou a janela e furtou os envelopes. No dia imediato, quando cheguei e constatei a situação, logo inquiri o Zé Manel, que me deu a informação do sucedido e ficou ao meu dispor para me indicar o caminho da aldeia. Levava comigo uma faca de mato, para alguma eventualidade. O André não ofereceu qualquer resistência, entrou no carro, e levei-o ao Cambulo, para trabalhar na administração o necessário para repor os valores roubados. A razão tinha sido a mais ingénua que possamos imaginar: comprou cerveja e deu uma festa para os vizinhos. Assim, à novo-rico.

Tomei, então, a decisão de ir ao Cambulo, que era a sede do concelho, e pedi à polícia para tomar conta dos destiladores, o que veio a acontecer, embora, agora, não possa afirmar se tudo ocorreu com bons ou maus resultados, mas houve destruição ou apreensão das destilarias. Pelo menos a cobrança à boca de cena deixou de acontecer. 



Angola, Lunda, Diamang, c. 1972/74 >  A nossa cozinheira: repare-se no penteado e nas mutilações de enfeite.

Fotos (e legenda): © José Manuel Matos Dinis (2016). Todos os direitos reservados.

No refeitório também me informava se o pessoal gostava das refeições servidas, na base da carne e do peixe seco estufados em óleo de palma, que acompanhavam batata, batata-doce, ou milho, e constatei que eram pratos do agrado geral. Também observei que alguns trabalhadores cobriam numa folha larga de um arbusto o conduto que lhes calhara em sorte, e levavam para partilha da família. Dei indicação à cozinheira para aumentar a quantidade aplicada, e ao Muriandambo para alternadamente distribuir a sobra do rancho pelos trabalhadores, de modo a que não houvesse prejudicados. Passei a requisitar mais uns quilos de alimentos, e não me levantaram problemas. Nas áreas exploradas e de terras removidas, incentivei ao plantio de batata-doce e milho para melhoria dos consumos domésticos.

A vida na mina corria-me com prazer, e por vezes ainda arranjava alguns minutos para me sentar à beira rio e observar a natureza, sobretudo a vida dos bicos-de-lacre, pássaros pretos com o bico da cor do lacre, que havia em quantidade, esvoaçavam bastante e cantavam com alegria permanente. Mas uma ou outra vez, com a ajuda do Zé Manel, o guarda nocturno, aprendi a caçar um jovem crocodilo que vivia no canal, e caía numa laçada colocada no fim de uma frágil paliçada, onde era atraído com um peixe ou um bocado de carne. Depois deixava-se ficar sem tentar deitar a baixo as canas que o "prendiam". Era muito novo, e de comprimento teria apenas cerca de um metro ou um metro e vinte. Obviamente, tirávamos o laço de corda, e o bichinho quase se habituou àquela rotina que lhe garantia alimento e repouso ao sol. Por uma ou outra vez vi a repetição da cena, o que seria impossível quando encorpasse.

O Pereira da Silva era quem me dava apoio técnico, quando necessário, mas algo raramente. Porém, houve uma ocasião em que me senti atrapalhado, quando não preparei a defesa com drenagem adequada à expansão da exploração, e as intensas chuvas fluíram para uma zona mais baixa e longínqua, junto de uma roda-de-canto, onde as vagonetas curvavam para as novas áreas de "cortes" que iam entrar em exploração. Foi problemático, e o recurso às duas bombas hidráulicas não se mostrava suficiente pelo tempo que levavam a empurrar a água lamacenta para um diferente nível de encontro com o canal. Houve voluntários para entrarem na água e manobrarem as vagonetas com água pela cintura, o que se tornava penoso e perigoso. Felizmente não aconteceu qualquer acidente, que poderia materializar-se no corte de dedos do pé, ou outra coisa mais inesperada. 

Para todos aqueles que referem a preguiça dos africanos, deixo aqui este exemplo de como era o contrário que normalmente acontecia, pois diariamente havia trabalhos de pá, pica e barra-mina para desmonte de terra, que não eram pera-doce, tanto sob o grande calor africano, como sob efeitos das magníficas tempestades locais e o peso dos volumes deslocados
.
Depois do horário de trabalho, quando chegava a Cassanguidi, onde estava a viver na Casa de Trânsito, estacionava o carro entre esta e a casa do Pessoal. Mal me apeava, chamavam-me para partilhar algum petisco e beber uma cerveja. Uma ocasião, ou porque éramos mais do que os habituais, ou porque estaríamos com mais apetite do que era habitual, o petisco estava a acabar, quando o Pereira da Silva teve uma ideia para salvar a situação. Chamou-me, para ir à sua casa buscar umas bifanas que estavam temperadas e no frigorífico. 
– Eu, porquê eu? Porque é que não vais lá buscar as bifanas? – perguntei-lhe. 
– Porque se eu lá for, a Manuela (a mulher do Pereira da Silva era a professora D. Manuela) não vai deixar-me sair, e como ela confia em ti, és a solução para prolongarmos o petisco. 

Convencido, fui a casa daquele simpático casal e, de facto, a Manuela, embora indignada e preocupada com algum excesso do marido, entregou-me as bifanas e recomendou que o marido zarpasse em meia-hora. Assim, cumpri as duas missões, sem outra responsabilidade com o cumprimento da combinação por parte dele, para além da comunicação que lhe fiz. 

Outra vez, ainda na sequência do relato de outras convivências, foi combinado sairmos à noite para caçar. Alguém trouxe um Land-Rover, um farol, e lá fomos, talvez com uma ou duas caçadeiras. abalámos por uma picada. Também farolinei, mas a única peça que avistámos foi o que nos pareceu um gato selvagem. Demos meia-volta e acabámos a comer um qualquer petisco antes do agravamento da noite. 

Um ou dois dias depois fui abordado pelo Mascarenhas, um caçador indómito e com fama justificada, que disse ter observado o meu gosto pela caça, pelo que estava a propor uma saída para o Canzar, onde pretendia caçar. Precisava de mim, para prevenir qualquer acidente e não ficar isolado nas lonjuras do mato. Para os menos lembrados, recordo que na época não havia telemóveis e não havia disponibilidade de rádios. Desculpei-me com o argumento verdadeiro de que não era caçador.

A passagem dos dias naquela área angolana fica mais ou menos documentada, pois havia hábitos repetitivos, e até dos álbuns fotográficos, dizia-se, que estavam cheios de retratos de comezainas e piqueniques. Aos domingos, a malta solteira tinha por costume encher uma mala térmica, carregar um saco de carvão, e uma quantidade sempre generosa de carnes e cervejas, para abalarmos em direcção a um local engraçado (um refeitório de mina, ou uma queda de água), onde se preparava a refeição, bebiam-se uns copos, e depois, uns sonecavam, outros jogavam cartas, e todos ouviam com mais ou menos atenção, a transmissão de um jogo de futebol do campeonato metropolitano. 

Eu faltava a estes encontros com alguma frequência, para deslocar-me ao Dundo, onde, aos sábados de tarde e à noite, havia farra entre a malta solteira. Nos domingos tomava o banho matinal, e apresentava-me em casa de quem me convidava para o almoço e jantar, e passava as tardes em cavaqueira com os donos da casa e os visitantes que recebessem.

Este ramerrame era-me agradável, e com o passar dos dias, convencia-me de que a África seria sempre a minha casa. Durante as tardes de domingo no Dundo sentia-se a normal tranquilidade de uma vida económica e social pacífica, onde eram comentadas diversas iniciativas de acordo com as potencialidades e o cada vez maior progresso que as populações experimentavam e exigiam. 

A guerra, que praticamente não se sentia, nem sequer era abordada. Era o desenvolvimento social e económico que mais interessava à comunidade de privilegiados e dirigentes, para além do nascente interesse pela actividade da Bolsa de Lisboa. Abrira uma dependência bancária em Portugália, e os funcionários percorriam os diferentes caminhos da Diamang para captação de recursos, com vista à constituição de depósitos à ordem e a prazo, bem como de outros produtos de dívida que, no conjunto, eram importantes instrumentos para o desenvolvimento da economia angolana.

Mas um dia passei por um percalço completamente inesperado. Um dia fui chamado ao grupo para receber um telefonema do Puto [Portugal]. Em minha substituição ficou um mecânico, que praticamente não saiu do escritório. Mas,  pouco depois de ter saído, o sub-chefe do grupo terá visitado a mina, e pareceu ter falado ao pessoal da exploração em modos normalíssimos para um nortenho do Puto, mas ofensivos para eles. 

Demorei duas horas desde que saí até ao meu regresso. Ainda falei durante uns cinco minutos com quem me substituíra sentado no escritório. Quando ele saiu dirigi-me à lavaria, e sofri o primeiro choque: a metragem com indicação das vagonetas ali transportadas não evoluíra praticamente desde que eu saíra. O problema era da exploração, informaram-me. Constatei que a lavaria continuava a trabalhar com material da reserva. Ao aproximar-me do declive do inicio da linha até aos cortes, reparei que não havia qualquer vagoneta no percurso. Explorava-se o corte mais próximo, e quando nele entrei, vi com grande admiração, o pessoal deitado ao sol, ou em amenas conversas, e as vagonetas fora da linha e viradas sobre o cascalho. 

Imediatamente vi o "filme"do homem do norte, e a decisão reactiva de fazerem uma greve com o desplante de ali terem ficado à espera do almoço. Num clique pensei sobre a quebra da disciplina, ou era reprimida imediatamente, ou poderia degenerar em futuras acções de protesto com o risco de se tornarem incontroláveis. Eu já sabia na época que os trabalhadores rurais eram muito ingénuos, mas que no geral aceitavam a penalização dos seus actos irreflectidos ou mauzinhos. Como também me corre o sangue nas veias, tive uma reacção que, provavelmente, ninguém esperaria, e subitamente, a xutos e pontapés, murros e pedradas, corri pelo meio deles numa acção de distribuição que deviam ter pensado que estava possuído pelo diabo.

Ao jantar, o Maia perguntou-me o que se passara na mina, pois ia lá falar-me e ficou assustado com as correrias desordenadas à frente do jipe. A título de segredo pessoal que garantiu, contei-lhe o que ocorrera, e só me restava esperar pelo dia seguinte para avaliar do efeito produzido. De manhã cedo, pela hora da chamada, e antes do horário de trabalho, o espaço sob o telheiro da lavaria estava cheio de gente para a habitual conferência de assiduidade. Chamei um por um, olhava-os, e no final não havia faltas, com excepção do Mualufuma Casaco a quem, por conselho do administrador do Cambulo, paguei 15 dias de ausência ao trabalho. Mandei-os para as tarefas sem mais palavras. 

O dia correu como normalmente, e sobre o episódio da véspera não houve mais conversas, mas devem ter intuído que não vacilava pela boa ordem na execução e desenvolvimento dos trabalhos. Quando recebi o correio com os mapas da verificação da véspera, o teor do material explorado era semelhante ao que vinha sendo registado, e não me preocupei. 

Esta narrativa podia tê-la omitido, mas acho-a importante, na medida em que na época as circunstâncias angolanas poderiam sugerir algo como prova provada da violência colonialista. O que pretendo é que se possa saber como o relacionamento poderia assemelhar-se ao de uma escola do ensino primário do nosso tempo e à assunção de responsabilidades por todos os intervenientes de um processo laboral. Alguma coisa pode ter mexido naquelas mentes, talvez com idêntica correspondência relativamente aos correctivos dados pelo professores nas escolas, de que muitos de nós reconhecemos o merecimento. Em boa verdade, não houve de nenhuma parte qualquer expressão de ressentimento, e os dias prosseguiram com canções que ritmavam o esforço que cada um, e todos em conjunto desenvolviam.

Por um desses dias o Chefe do Grupo encontrou-me no regresso a casa, e depois dos simpáticos cumprimentos próprios de um homem de bem com a vida, adiantou que o Director-Técnico tinha visitado a mina. Admirei-me, e questionei porque não mandaram chamar-me. Que o Director teria preferido assim, apesar da visão apenas parcial. Quando o interroguei sobre a impressão daquele Director-Técnico, pessoa de renome firmado na longa experiência e nas decisões técnicas que tomava, respondeu que tinha manifestado agrado com o que vira, e eu senti ter passado por um primeiro e importante exame profissional.

No próximo episódio farei uma incursão sobre algumas "estórias" de camanga, em correspondência ao desejo do estimado "cólon" Rosinha.


[Sugestões para ilustração fotográfica: Diamang: um espaço virtual dedicado à Diamang e à Lunda  >  Minas e lavarias da Companhia de Diamantes de Angola ]

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Nota do editor:

Postes anteriores da série > 

6 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16055: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte I: de Cascais até à Portugália / Dundo...

(...) Em Janeiro de 1972 tinha saído da tropa, dava passeios e namorava pelo litoral de Cascais, onde outros casais nos faziam concorrência. Os meus amigos estavam na vida militar, acabavam os cursos, ou já tinham iniciado actividades profissionais. Já não era como antes, quando a malta se reunia como seita para a paródia, ou para entusiásticas futeboladas. Namorava com envolvimentos familiares, e tinha a obrigação de procurar definição de vida. Não queria trabalhar debaixo de um tecto, e por isso, ficava excluída uma preparação profissional que tinha iniciado antes da tropa.(...)

12 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16080: As minhas crónicas do tempo da Diamang, Lunda, Angola (1972-1974) (José Manuel Matos Dinis) - Parte II: Um "estado dentro do estado"...

(...) Mas afinal, que negócio é esse dos diamantes? É um "fétiche", direi eu. De facto, os diamantes servem para muito pouca coisa, e os que servem, são os industriais, precisamente os de menor valor. Os outros, os que cintilam de brilhos e são usados como adornos, não prestam para nada. Mas valem muito dinheiro, são atributos de riqueza e de poder. Destas razões é que resulta o grande fascínio ou interesse pelos diamantes. (...)

terça-feira, 24 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16130: Álbum fotográfico do José Salvado, ex-fur mil, CART 1744 (São Domingos, 1967/69) - Parte III: São Domingos (2): uma vila aprazível e com acessos


Foto nº 1  > O jardim


Foto nº 2  > Uma vila aprazível, e bem cuidada


 Foto nº 3 > Uma LMD (Lancha de Desembrarque Média)


Foto nº 4 > Pista de aviação de São Domingos


Foto nº 5 > Uma avioneta dos TAGP


Foto nº 6 > A chegada do Dakota 


Foto nº 7  > O Dakota



Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > CART 1744 (1967/69)



Fotos (e legendas): © José Salvado (2016). Todos os direitos reservados

1. Terceira parte do álbum fotográfico  do novo membro da nossa Tabanca Grande, José Salvado, ex-fur mil arm pes inf, CART 1744 (São Domingos, 1967/69). 

É natural da Covilhã, vive hoje nas Caldas Raínha onde é advogado. Também passou por Angola onde foi administrador de posto (1969-1975).

A CART 1744 chegou ao TO da Guiné em 25 de julho  de 1967, sendo colocada em S. Domingos, na região do Cacheu, como companhia de intervenção. Fez operações em S. Domingos, Susana, Ingoré, Cacheu e Sedengal.

O José Salvado veio de férias à metrópole em 1968. Regressou a casa no T/T Niassa, com partida a 15 de maio de 1969, e desembarque em Lisboa no dia 21.

São Domingos, capital do chão felupe, era um sítío aprazível, e con acessos (por ar, mar e rio). A CART 1744 terá limpo o subsetor de  São Domingos da presença do PAIGC, empurrando-o para o Senegal. Teve uma intensa e bem sucedida atividade operacional.

O chão felupe engloba(va) Susana, São Domingos e Varela.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P16129: Agenda cultural (488): Comemorações do Dia de África, dia 28 de Maio de 2016, na Livraria-Galeria Municipal Verney / Colecção Neves e Sousa, Oeiras

COMEMORAÇÕES DO DIA DE ÁFRICA

DIA 28 DE MAIO DE 2016

LIVRARIA-GALERIA MUNICIPAL VERNEY / COLECÇÃO NEVES E SOUSA

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16117: Agenda cultural (480): Sessão de lançamento do novo livro do lusoguineense António Júlio Estácio, "Bolama, a saudosa...", Lisboa, Palácio da Independência, dia 25, às18h00 - Resumo da obra: III e última parte

Guiné 63/74 - P16128: Parabéns a você (1084): Rui Gonçalves Santos, ex-Alf Mil da 4.ª CCAÇ (Guiné, 1963/65)

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Nota do editor

Último poste da série de Guiné 63/74 - P16116: Parabéns a você (1083): Luciano Jesus, ex-Fur Mil Art da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16127: (De)Caras (41): A Canquelifá da CCAÇ 3545 (1972-1974) e os acontecimentos de janeiro de 1974: a morte do "ranger" fur mil op esp Luís Filipe Pinto Soares (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)


1. Mensagem, com data de 19 do corrente, do nosso colaborador, amigo, camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Araújo, (que, na "vida real", é docente universitário, para quem não sabe, tendo na "outra vida" sido fur mil at inf op esp/ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74):

Caro camarada Luís Graça e demais editores:

Conforme promessa, que te dei conta em comentário escrito hoje no blogue, anexo uma nova narrativa histórica sobre os terríveis acontecimentos de janeiro de 1974 em Canquelifá (*), que guardarei para sempre na minha memória.

Aproveitei para juntar, no mesmo texto, três variáveis da guerra: os factos, os relatórios oficiais (Perintreps) e a comunicação social, com relevância para a morte de mais um camarada meu/nosso. (**)

Um abraço.

Jorge Araújo.

Guiné 63/74 - P16126: Convívios (750): 31º Encontro da CART 3494, 11 de Junho de 2016, Gaia (Sousa de Castro)


1. O nosso Camarada Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), solicitou-nos a publicação do seguinte convite para o convívio anual da sua Unidade:

31º Encontro da CART 3494 

Boa tarde,

Caros amigos, junto o ficheiro do Convívio da CART 3494 que se irá realizar no dia 11JUN2016 em Arcozelo – Vila Nova de Gaia

Saudações cordiais,
Sousa de Castro (SdC)

 PROGRAMA
 OS ORGANIZADORES

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Nota do editor


Guiné 63/74 - P16125: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Memórias de guerra ou guerra de memórias?

1. Em mensagem do dia 16 de Maio de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mais uma das suas "Outras Memórias da Minha Guerra".


Outras memórias  da minha guerra

23 - Memórias de guerra ou guerra de memórias?

Não fora o miserável vencimento de Cabo Miliciano, aquele Verão de 1966 teria sido um dos melhores de sempre.
Estava “hospedado” em Espinho, uma das melhores estâncias de veraneio do País, perto de casa e dos amigos, bem servido pelo serviço hoteleiro do GACA 3 e dispondo das excelentes oportunidades de “desenfianço”; estava eu a viver uma tropa “peluda” sem igual. Aquele meio ano de praia contínua, recheado de oportunidades amorosas e de abundantes convívios, afastou-me da ideia que ainda havia muito tempo de tropa por cumprir.

E quando chegou a mensagem de que deveria ir a Lamego prestar provas para os “Rangers”, ainda restou a esperança de que não ficaria lá, em virtude das más provas que iria prestar. Porém, de nada valeram aquelas simulações de fraqueza, pois o destino estava traçado: ficar em Lamego e obter o melhor aproveitamento, porque seria, inevitavelmente, mobilizado.

Decorriam, ainda, os festejos da Sr.ª da Ajuda, naquele final de Setembro, quando entrei para o comboio, precisamente ali diante do picadeiro, onde tantas vezes nos deleitávamos com o desfilar das maiores belezas da nossa juventude. Naquela viagem até Lamego, agora já para frequentar o curso, em que não me relacionei com ninguém, tive tempo para analisar a nova situação e tomar sérias decisões.

Naquele tempo não era nada fácil sair do CIOE de Lamego, durante os fins-de-semana. As poucas “dispensas-surpresa” e a dificuldade de ligação dos transportes até casa, não davam hipóteses do “tal” gozo de fim-de-semana. Este isolamento veio favorecer a decisão de desligar quaisquer relações amorosas que pudessem evoluir ou manter compromissos.

Assim, todas as folgas seguintes foram aproveitadas para o gozo descontraído em convívios, onde se procurava também afastar a guerra do pensamento. É certo que já pensava na necessidade de correspondência amistosa, mas estava decidido a nem sequer vir a ter “madrinha de guerra”.

Porém, num Domingo em que alterámos o circuito das visitas às jovens do interior de St.ª Maria da Feira, muito simpáticas especialmente nos magustos que nos proporcionavam, rodámos em sentido contrário, seguindo de Canedo para Lever, entrando no leste de Vila Nova de Gaia, e assentámos em Crestuma, junto ao Rio Douro, para petiscar sável e lampreia. Ao sairmos do tasco da Mariazinha, bem comidos e bem bebidos, trazíamos maiores motivações para as habituais investidas “piropeiras”. Por sorte, logo ali de frente, no Largo do Torrão, estava um grupo de belas jovens, que até pareciam estar à nossa espera. Ao fim de poucos minutos, já o grupo de pretensos galãs se dividia em conversas directas, entre fortuitos casais. Foi nessa altura que quando dei por mim, já subia pela estrada da Mouratinha, acompanhado pela “mais bela do grupo”.

Poucos dias depois, ao descer pela primeira vez, por Crestuma abaixo, pude admirar melhor as belezas naturais que a tornam uma das mais belas e mais admiradas. Parar no adro da Igreja Matriz, e olhar o Rio Douro e as suas margens, especialmente para junto da foz do seu afluente Rio Uíma, é uma sensação ímpar, inexplicável e muito emotiva. Em Fiães, uns 12 km a montante, conhecia muito bem o Rio Uíma. Foi nele que aprendi a nadar e a pescar umas trutas. Porém, nunca tinha ido a Crestuma, nem imaginava a sua grandeza intrinsecamente ligada ao rio da minha terra.

Ó terra de lenda,
Paninho de renda
Bordado por mãos de fada!
Tão bela e garrida
És a minha vida
Ó minha terra adorada!
Crestuma formosa,
Meu botão de rosa,
No perfume e no feitio,
Talvez sejas pobre
Mas és a mais nobre
Das terras da beira-rio.

Extracto de poema de Eugénio Paiva Freixo, consagrado poeta Crestumense.

Embora, inicialmente, tudo parecesse normal, o certo é que, desta vez, o espectro da guerra trazia efectivamente preocupações acrescidas. Agora, que pouco tempo faltava para ir para a Guiné, sentia que, afinal, a minha determinação de finais de Setembro fora involuntariamente ultrapassada. Já havia sido atraído por belas raparigas, com destaque para loiras, olhos verdes, mamas salientes, boas pernas, tudo do melhor, em corpos fortes e sorridentes. Porém, de repente, parece que esses predicados foram esquecidos, para valorizar outros encantos que só o coração compreende. Era chegado o amor. Enfim, o costume de quem se apaixona.

Cada vez mais preso a esta relação, procurava então que ela não pudesse provocar as indesejáveis mazelas. Assim, embora o amor estivesse bem presente neste relacionamento, procurou-se evitar compromissos de maior responsabilidade. Ficou, todavia, a ligação permanente, até o que a guerra decidisse.


Crestuma é uma pequena povoação ribeirinha, situada na margem esquerda do Rio Douro, junto à foz do Rio Uíma. O seu nome provem da aglutinação das palavras Castelo (Crastrum) e Rio Uíma (Umia) – Crastumia - Crestuma. No dizer de historiadores e arqueólogos que se têm dedicado ao estudo das origens de Crestuma, o morro do Castelo (Parque Botânico) já foi ocupado na idade do ferro (I milénio a.C.). Aí se terá instalado na elevação, um povoado indígena, similar a tantos outros castros da região.

Na sequencia das guerras púnicas, os romanos aproveitaram a estratégia dos cartagineses que os atacaram pelo norte de Itália e, retaliando, entraram pela Península Ibérica. Atacaram Mérida e chegaram a Lisboa em 218 a.C..

Em 137 a.C, já os romanos dominavam as margens do Douro, controlando e desenvolvendo as actividades mineiras. O filão aurífico que já havia sido bem descoberto, estendia-se desde as proximidades de Póvoa de Varzim, seguindo por Valongo, Melres, Lomba, Arouca, até Castro Daire.

Estudos recentes levaram à descoberta de um Cais Romano em Crestuma, de onde partiam valiosas cargas para Roma. Mais recentemente, constata-se que também já havia ali uma certa tradição na arte de fundição.

Também se apontam os inúmeros moinhos, muito antigos, concentrados no Rio Uíma, como prova de que eram utilizados para moerem também pedras, para se apurarem os minerais mais valiosos.

A.C. da Cunha Morais

Independentemente deste longo período de domínio romano, revemos testemunhos de intensa actividade industrial, especialmente nos sectores da Metalurgia e do Têxtil. Para que se compreenda a força industrial de Crestuma, basta referir que foi ali que se fundaram estes respectivos sindicatos nacionais.

Canhões fabricados em Crestuma

Ali se fabricava armamento de guerra. Hoje ainda são visíveis canhões usados na guerra civil, entre D. Miguel e D. Pedro.

Na primeira metade do século XX, esta pequena povoação possuía cerca de 40% de toda a indústria de Vila Nova de Gaia.

Fundição de Arcos de Ferro e Verguinha, fundada em 1793. Mais tarde (e até hoje) Companhia de Fiação de Crestuma.

As empresas, que gozavam de um certo proteccionismo colonial, exportavam os seus produtos com relativa facilidade. Acontecia, até, que havia produtos, cujo monopólio de produção, se cingia a empresas de Crestuma.
Como reflexo desta actividade, vivia-se em Crestuma em franco ambiente de cidade, onde nem o cinema faltava, quase diariamente. As belezas naturais, de onde se destacava a Quinta da Estrela, faziam atrair grupos de visitantes. Por sua vez, os industriais locais, que gozavam de grande prestígio, recebiam as personalidades mais importantes que visitavam o Porto.


Gago Coutinho visita Crestuma quando da sua homenagem no Porto

Já na Guiné, eu enviava fotos para a namorada, onde se realçavam os panos duros que as indígenas usavam, especialmente quando as mães prendiam crianças nas costas ou em outras cargas. Foi nessa altura que fui esclarecido que esses tecidos que chegavam a todos os cantos da Guiné, eram fabricados em Crestuma.

Mais tarde, em 1975, quando já vivia em Crestuma, em casa dos meus sogros, embora trabalhasse na fábrica de fundição, acompanhava, ao de leve, a actividade da fábrica de tecelagem, onde trabalhava a minha mulher.

Com a independência da Guiné, verificaram-se algumas alterações nesse relacionamento comercial, para onde se exportava mais de 80% da produção. Nada ficaria como antes.

Após várias deslocações do meu cunhado Augusto à Guiné, foi acordada uma parceria, ou apoio, para implantação de uma unidade de tecelagem na ilha de Bolama. Desse acordo resultou a vinda de uma equipa de guineenses, para aprenderem a trabalhar com os teares e outras máquinas, enquanto se ia construindo a fábrica em Bolama (1).

Essa equipa era composta por 5 elementos, onde se destacava um idoso, conhecedor de fabrico em tear manual, mas os outros 3 de tecelagem nada sabiam. Vinham acompanhados por uma senhora, ainda jovem, que parecia exercer funções de Comissária Política. Eles estavam instalados numa casa do senhor. Marques, no Largo do Torrão, junto à foz do Rio Uíma e comiam no Restaurante Marujo, de Fioso. A senhora estava instalada em nossa casa. Todavia, parecia sempre ausente, muito ocupada com os seus contactos de interesse, aparentemente, guineense. Telefonava muito e ausentava-se amiúde. Nos intervalos, lia e fazia relatórios. Ela parecia ocupar lugar de grande importância na governação.

Talvez devido a condicionalismos de ordem financeira, ou, talvez, devido à delicadeza da nova situação económica, eu via o meu sogro bastante apreensivo e muito cauteloso com este relacionamento. Parecia estar sempre disponível para ela.

Apesar da distância que ela parecia querer manter, logo que a conversa se proporcionou, naturalmente, falámos da Guiné.

Tudo bem enquanto falei das belezas dos Bijagós, da estadia no Quartel General de Bissau, dos mergulhos na piscina de Bafatá e dos tempos (de descanso) em Canquelifá. Porém, quando referi que a minha Companhia era de Intervenção, que estivera em vários locais, mas que o Batalhão estivera sempre em Catió, ela aproveitou logo para lembrar e enaltecer os seus bravos camaradas que derrotaram e rechaçaram todas as investidas das tropas coloniais.

Quando lhe disse que estivera no Oio, o local onde mais sofrera e que entráramos em Samba Culo (2), ela contrariou de novo, alegando que as tropas coloniais nunca lá tinham conseguido chegar. Seguidamente enumerou vários combates, alguns deles com a minha Companhia (as datas coincidiam), mas, pelo exagero dos seus heróicos relatos, nem parecia tratar-se dos mesmos.

Tentei amenizar o seu entusiasmo, lembrando que as NT utilizavam as notícias como fonte de propaganda e que, também, exageravam ao darem notícias, o que eu considerava normal em tempo de guerra. Ela retorquiu e reafirmou que os seus relatos eram reais e que o PAIGC não tinha serviço de propaganda mas sim serviço de informação.

Lembrei que eu ouvira na Rádio eles referirem que no ataque a Catió (3), haviam destruído 3 das 4 casernas do quartel. Ela quase nem me deixou acabar, para reafirmar que sim, que tinha sido verdade. Acrescentei que as granadas se dispersaram pela bolanha e que só uma caíra dentro do quartel de Catió, onde eu estava, e nem rebentara. E que uma outra rebentara na povoação Fula, tendo um estilhaço sido tirado de uma nádega, a uma mulher. Porém, mesmo assim, a Senhora Comissária continuou a reafirmar que tinha sido verdade.

Perante tanta convicção e estando eu à mesa com os meus sogros, em sua casa, não me restou outra alternativa que calar-me e aguardar que o assunto fosse esquecido.

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Notas do autor:

1 – Porque as vi embaladas, penso que chegaram a ser enviadas algumas das máquinas para Bolama (Torcedores, Dobadoras, Encartadeiras e Teares de Banda). Porém, após algumas visitas de inspecção ao edifício, humidade e clima, o projecto esfumou-se.

2 - Op. Inquietar II. No dia 6 de Julho de 1967, após cerca de 4 horas sob emboscada IN, a CART 1689 entrou em Samba Culo, onde descobriu um depósito de armas e munições. O êxito desta Operação veio a consagrar a esta unidade com a Flâmula de Honra em Ouro, atribuída pelo CTIG. http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2011/04/guine-6374-p8078-outras-memorias-da.html

3 – O referido ataque a Catió, foi na noite do dia 6 de Junho de 1968.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16054: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (23): Religiosos de primeira e pobres (crentes) de segunda (Recordações de infância)

Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Foi graças a "Os Anos da Guerra", de João de Melo que encontrei azimute para me abalançar a escrever o livro "Adeus, até ao meu regresso", um percurso da literatura da guerra da Guiné.
João de Melo foi muitíssimo bem-sucedido na investigação a que procedeu sobre os escritos das três frentes, inventariou ao tempo o que havia de melhor. Acertou em cheio com os três escritores que combateram na Guiné. Álvaro Guerra, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. Estranhamente, reduziu Armor Pires Mota a uma mera referência, justiça incompreensível.
Não hesitem em comprar ou procurar nas bibliotecas públicas esta preciosidade.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (1)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, dois volumes, continua a ser a obra de referência para toda a literatura da guerra que travámos em África, até ao fim do império. Meticulosamente, ao longo de seis anos da década de 1980, João de Melo procedeu a um levantamento das vozes, e Joaquim Vieira fez o estudo de localização histórica e política.

João de Melo arranca os dois volumes com o seguinte ensaio:
“A guerra colonial e as lutas de libertação nacional nas literaturas de língua portuguesa". Fala-se de toda a literatura de colonização, do espírito civilizador, questiona-se a seguir o que é uma literatura de guerra e se, mesmo aqueles que contestavam a guerra e não foram combatentes não tiveram um papel pioneiro na construção de uma cultura conducente a um ideal de libertação. E depois João de Melo pergunta se há uma geração literária de guerra colonial, responde positivamente e apresenta uma listagem desde os percursores até aos anos 1980. Termina assim este seu ensaio sobre a literatura de guerra:
“Ela é um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continue a produzir a comprazer-se com o espetáculo da sua própria violência interior”.

Joaquim Vieira contextualiza a África nos anos de 1960 e a multiplicação das frentes. E chegamos à Gare Marítima de Alcântara e às atividades militares que a precedem. Logo um magnífico texto de Filipe Leandro Martins intitulado “O couro selvagem das botas”, que assim começa:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvia alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de voltar. Não me apetecia partilhar o que ia ser a vida dali em diante”.

Álvaro Guerra fala da sua recruta, tal como José Martins Garcia, e depois Álamo Oliveira descreve o cais de Alcântara:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amorada do Uige, esforça-se por distinguir os corpos que enforma aquela pequena multidão, que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril. A cabeça cresceu e pesa como nunca. João não consegue estar lúcido e, no entanto, sabe que não está louco. Ainda. Embaraça-se nos tentáculos do polvo, a multidão uivante, espasmódica. Lisboa ao fundo, postal quieto, enorme. O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço”.

Joaquim Vieira dá-nos uma moldura dos acontecimentos angolanos de 1961, e depois o nacionalismo e o tribalismo, o aparecimento da Frente Leste, a guerrilha angolana dividida em três movimentos, seguem-se as narrativas dos escritores que em Angola combateram, ou sobre a guerra falaram: Manuel Alegre, Octaviano Correia, Manuel dos Santos Lima, José Luandino Vieira, Jofre Rocha, Wanda Ramos, David Mestre, Abílio Teixeira Mendes, Mário Varela Soares, Costa Andrade, António Lobo Antunes, Pepetela, João de Melo, Vergílio Alberto Vieira. A palavra a Mário Varela Soares no texto “O gajo de Cinfães”:
“O rapaz estava caído, branco, de um branco sujo onde se viam as riscas do suor cortando a poeira que tinha na cara. Um dos ombros estava descaído ao peso do sangue e do buraco negro que se avizinhava junto ao pescoço. E o borbulhar de sangue ouvia-se cavernoso e profundo como se viesse mesmo das entranhas do seu peito magro.
- O gajo tem a clavícula perfurada; não é grave mas precisa de ser evacuado…
O cabo enfermeiro quase soletrava as palavras, na importância da sua sapiência. O homem que se podia gabar de ser o tipo que mais mal dava injeções em todo o mundo. O rapaz olhava para todos sem perceber nada mais para além da sua dor e da surpresa de ter sido apanhado pelo único disparo nesse dia e nessa sua primeira guerra. A sua cara, de olhos esbugalhados, andava de um lado para o outro seguindo os movimentos lentos do cabo enfermeiro e do seu ajudante improvisado, o guia bailundo (…) Apeteceu-lhe dar uma das suas mãos para que o gajo de Cinfães a agarrasse no estertor das suas convulsões dolorosas. Nos seus olhos lia-se já o desmaio próximo; a camisa interior toda esfarrapada deixava à mostra a placa de sangue coagulado que era constantemente lavado por pequenas golfadas de sangue novo e brilhante. O buraco da bala persistia, negro e aberto, de bordos queimados.
- Tem orifício de saída – explicava o cabo enfermeiro ao guia bailundo.
O que seria o orifício de saída? As caras interrogavam-se numa mudez de desconhecimento. O que seria o orifício de saída. Os olhos do gajo de Cinfães reviraram-se ficando estrábicos numa incontinência de controlo; um vómito sobreveio ao desmaio encharcando com plaquetas brancas – o leite em pó do pequeno-almoço era sempre intragável – os braços do enfermeiro”.

E vamos despedir-nos com um texto de João de Melo, extraído de uma das obras incontornáveis da literatura da guerra, “Autópsia de Um Mar de Ruínas”:
“O furriel enfermeiro sacou rapidamente da faca-de-mato e cortou-lhe as calças, o dólman e a camisa. Fazia-o com a determinação dos olhos perdidos, dos homens que não iriam, nunca mais, perder a sua memória dos outros e de si mesmos. Cortava grandes pedaços de tecidos à navalhada e estava já ensopado daquele suor de lágrimas que tem a espessura da chuva e o salitre de uma navegação brutal. Ao ver os intestinos espalhados por todo o baixo-ventre do ferido, abri muito os olhos e disse três caralhos à vida, duas porras e três conas de madrinha-de-guerra aos capitães do Norte e, pondo-se a coçar a cabeça, sem saber o que faria àquele balão fumegante, começou por tomar as mãos do Gonçalves e disse: - Juro que não te vou deixar morrer, irmãozinho”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840): “Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)