terça-feira, 31 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10213: Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor (3): A arte nalu... em vias de extinção (António J. Perereira da Costa)


Trim-trim


Banda


Matumbó


Canoa inhominga


Guiné > Região de Tombali > Cacine > CART 1692/BART 1914, 1968/69 > Peças de arte nalu, da autoria do mestre Mussé, e que integram a coleção de arte popular da Guiné do nosso camarada António J. P. Costa, ao tempo alf art QP.


Fotos: © António J. Pereita da Costa (2012). Todos os direitos reservados










Guiné-Bissau  > Região de Tombali > Cacine > 2 cde março de 2008 > Visita no âmbito do Simpósio Interbnacional de Guiledge (1-7 de março de 2008) > Cacine vista de uma embarcação no rio... à esquerda o antigo posto de socorros no tempo da CART 1692... Ainda hoje a povoação, embora degradada, está coberto de magníficos poilões e cabaceiras.


Foto: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



1. Mensagem do nosso camarada António J. Pereira da Costa [, cor art ref], que estava aqui, na secção das reservas, à espera dos nossos Passatempos de Verão (*):


Assunto - A arte popular da Guiné

Olá, Camarada:

Já levantei este tema e, agora que tudo parece perdido, julgo que devemos voltar a ele e divulgar.

É um tema que pode interessar aos ex-combatentes e aos coleccionadores.

Conheci, em Cacine, um único artesão da arte Nalu. Passava horas a esculpir numa madeira branca que se cortava com facilidade.

Era o Mussé que usava, na cabeça, um gorro de linha, julgo que fabricado pelos fulas. Entre a cabeça e o gorro colocava, com o fornilho para fora, um cachimbo artesanal, já muito usado.

Entre as ferramentas que usava,. lembro-me de uma haste limpa-para-brisas de Unimog, devidamente afiada.

Trabalhava sentado no chã, à beira-rio,  no sítio que a figura mostra, perto do posto de socorros civil (à esquerda da foto).

Um capitão que por ali tinha passado, tentou arranjar-lhe um aprendiz. O miúdo ficava ao pé dele, mas não me parece que aprendesse com o "Mestre".

Por mim, comprei algumas peças e não permiti que as pintasse. Costumava pintá-las "a Robbialac" talvez por já ter perdido o saber das pinturas ancestrais.

Comprei uma Banda que os dançarinos colocam na cabeça, com um dos bicos para frente. E um tambor - um Matumbó (em minatura) -, um pássaro da palmeira - um Trim-trim - e um par de canoas inhomingas, em miniatura.

Mas ele fazia outras coisas.

António Costa

2. Comentário de L.G.:

Poucos de nós conviveram com os nalus, durante a guerra colonial. Para quem quiser saber mais este povo, que habita o Cantanhez há cinco  séculos, recomenda-se um trabalho, já aqui publicado, do nosso amigo Pepito.

Recomendamos também os vídeos sobre os "donos do chão", disponíveis na página da AD - Acção para o Desenvolvimento,  no You Tube. São excertos de um filme que está a ser realizado por Pedro Mesquista, com apoio dos nossos amigos e parceiros da ONG AD - Bissau.

Os donos do chão nalu 2012

Cantanhez de Pedro Mesquita em 2010

[Pedro Mesquita, cineasta português, e a sua equipa têm estado a recolher imagens para um filme cujo título provisório é "Os Donos do Chão", e que precisa de apoios para a sua finalização. Restante ficha técnica: Argumento - José Marques; Edição - Micael Espinha/Roughcut; Produção - Pedro Mesquita, José Marques, Catarina Schwarz, Joana Roque de Pinho; Música - João Bernardo; Apoios : AD, IUCN].

De acordo com a lógica com que foi criado esta série Passatempos de Verão, esperamos mais contributos dos nossos leitores sobre este este tema: a arte popular da Guiné, em geral, e arte nalu, em particular.

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10196: Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor (2): O pangolim de cauda longa, do Cantanhez (António J. Pereira da Costa)

Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho D'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

1. Continuação da publicação de Do Ninho de D'Águia até África, de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Op Cripto, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177. O Tony Borié, natural de Águeda, vive nos EUA, Flórida, há 40 anos.


Do Ninho D'Águia até África (3)

Uma pausa para reflectir,
guerra é guerra

Ou se está no conflito, ou não se faz parte desse mesmo conflito. Isto é, o que qualquer e normal cidadão poderia dizer. O Cifra foi colocado em possível cenário de guerra. Tiraram-no do ambiente da sua aldeia no vale do Ninho de d’Águia, do seio da sua família, deixou de ouvir o comboio das seis e meia, que todos os dias o acordava, e de que tanto gostava, trouxeram-no para a cidade, com costumes e pessoas diferentes, deram-lhe uma instrução básica, concentrada em matar, ensinaram-lhe as partes do corpo, em como se matava, com prolongamento de dor, rápido, com faca, ou simplesmente com as mãos, ensinaram-no a manusear uma pistola ou uma metralhadora, e que a usasse, para disparar, contra um ser humano.

Embarcaram-no. Atravessou o oceano, e largaram-no dentro de um conflito, a milhares de quilómetros de distância da sua aldeia no vale do Ninho d’Águia, da sua família e dos seus amigos. Ficou na frente, e com uma arma nas mãos, a combater pessoas que não conhecia, e que não tinham nada a ver com ele, e de quem ele nada tinha contra. Só única e simplesmente, a tal frase, e o blá, blá, blá, de alguns dos seus instrutores, tal como o chefe do governo de Portugal, de defender a bandeira e a Pátria, que é a sua mãe, ir para a guerra, em força, contra os canhões, marchar, marchar. Tudo isto a milhares de quilómetros de distância, da sua aldeia do Ninho d’Águia.
- Meu Deus!. Que injustiça!. Porque razão me mandaram para aqui? Estes naturais olham para mim, e vêm tal e qual, como eu os podia ver, se eles invadissem a minha aldeia, no vale do Ninho d’Águia!. Esta é uma verdade, que eu não posso esquecer, e me vai atormentar.

Isto era o que pensava o Cifra. Mas também sabia que todos os seus instrutores tentaram tudo o que sabiam para modificar todo o seu comportamento. Pois, nunca lhe explicaram que do outro lado, lá em África, também havia pessoas normais, com direito a viver uma vida normal, junto de suas famílias, criando os seus filhos, tratando dos seus animais, cultivando a sua terra, tomando banho na água do seu rio, construindo a sua casa, caminhando pela sua floresta, respirando e vivendo em liberdade. Liberdade essa que o Cifra nunca teve em Portugal.

Mas o que era isso liberdade? O Cifra, nem sabia o significado da palavra liberdade. Pois até à idade de fazer parte do exército de Portugal, nunca precisou de saber. Tinha toda a liberdade que os pais lhe davam na sua aldeia, no vale do Ninho d’Águia, que era o trabalho na agricultura, alguns trabalhos menores na vila, que ninguém queria fazer, mas o Cifra fazia, pois era o único meio de ter alguns trocados, tinha família, as ovelhas, os porcos, as galinhas, a represa do seu lameiro, o rio da vila, lembrava as raparigas suas amigas, que pelo menos mostravam que morriam de amores por ele, o seu comboio da seis e meia, que adorava ouvir o som do seu apito, quando descia o vale do Ninho d’Águia, em direcção ao mar. Que mais queria ele?

Sim, mas fora do seu ambiente familiar não havia de facto liberdade. Lembrava, quando a sua mãe Joana, num ano de seca, em que as terras do pinhal não deram trigo nem aveia, lá na sua aldeia, do vale do Ninho d’Águia, e com alguma angústia, pois queria dar de comer aos quatro filhos, foi pedir dinheiro emprestado, para comprar um porco bebé, na feira dos vinte e quatro, que haveria de engordar e matar, por altura do Natal, que era a única alegria que a família tinha, pois nessa altura, enquanto o pai Tónio não salgava as carnes que seriam o governo para quase todo o ano, era uma fartura, com rojões e tudo.

A pessoa importante da vila que lhe emprestou alguns trocados depois da mãe Joana lhe bater à porta, por duas vezes, pois da primeira estava sentado debaixo de uma frondosa árvore, na frente de sua casa, a descansar, no fim de talvez um lauto almoço, e mandou dizer pela criada, que lá trabalhava, ninguém sabia desde quando, e trabalhava pelo comer e vestir, mas era uma fiel servidora, e disse à mãe Joana:
- O senhor não pode ser incomodado agora, venha para a semana, Joana. Quer um bocado de broa? Se quiser, eu vou buscar sem o senhor saber?! Ande, leve para os garotos, que devem de andar com fome. Principalmente, o mais novo, o Tó d’Agar, gosta tanto da broa que eu lhe dou. Quem me dera ter um filho assim!

A mãe Joana apareceu na semana seguinte, a lastimar da sua sorte, e o dito senhor, além de uns grandes suspensórios, também usava um grande cinto, a segurar a barriga. Depois de a ouvir, quase suplicar, põe a mão no bolso da samarra, com pele de raposa na gola, tira uma carteira recheada de notas novas, e disse:
- Quanto precisas,  rapariga? Vocês não têm meio de controlar a boca aos vossos filhos?

A mãe Joana, a medo, lá lhe disse quanto era, ao que ele respondeu:
- É só isso, espera que não tenho aqui trocado, vou lá dentro e volto já.

Regressa com o dinheiro e um papel escrito que lhe estendeu, dizendo:
- Assina aqui. Ninguém sabe o dia de amanhã, com estas doenças novas, há morrer e viver, e vocês que andam sempre mal alimentados, e nesse caso, alguém terá que pagar.

A mãe Joana assinou, de cruz, um papel onde hipotecava todas as suas terras. Pagou, assim que pode, mas teve que ir a casa da dita pessoa, três vezes para reaver o papel, a desculpa era que o papel estava no banco da vila. Era assim o sistema. Pagava-se a dívida, mas ficava-se devedor para o resto da vida, obrigando o pobre a andar de chapéu na mão, curvando-se e dando lugar na rua ao senhor, que queria que o tratassem por Vossa Excelência.

Quanto mais miséria no País, e principalmente nas aldeias, mais força tinham esses senhores, protegidos pelo sistema, de governar e passar por cima de quem entendiam. Em outras palavras, quanto mais miseravelmente vivessem as populações, melhor era para esses senhores que controlavam os bons empregos, a que só a família e alguns amigos, que se curvavam, tinham acesso, e beneficiavam de todas as regalias que o governo de então proporcionava a alguns.

Outros tempos... O seu Portugal, a tal Pátria que os seus instrutores constantemente lhe diziam que era a sua mãe, que agora defendia, sem saber de quê e qual a verdadeira razão, era um País de uns quantos. Assim lhe explicavam agora alguns companheiros, já mais vividos, que como ele se encontravam na mesma aflita e angustiante situação. Mas o Cifra não sabia, não foi treinado para isso. Foi treinado para matar, custe o que custar, a palavra final era sempre, em frente, contra tudo e todos, não importa a razão, se necessário for, não hesites, mata, para isso tens uma arma nas mãos e para isso te ensinámos a manuseá-la. Pode custar a vida a uma, duas, ou centenas de pessoas, não importa, não ouças ninguém, vai em frente, em força, e mata, a Pátria é a tua mãe, (não a verdadeira mãe, que era a Joana), mata e morre pela Pátria, não importa que a guerra seja injusta e não tenhas nada a ver com estas pessoas.

Isto foi o treino, contínuo de dias e dias, que chegou a meses, em que os companheiros se envolviam em luta de treino para melhor aprenderem a maneira de se ferirem uns aos outros. No meio de todo este cenário, o Cifra, todas as manhãs, tirava uns minutos de reflexão, meditando e tentando não perder os sentimentos de honestidade que a mãe Joana e a avó Agar, de quem herdou o nome, lhe ensinaram.

Nos seus momentos de reflexão, o Cifra tinha a firme certeza de que não tinha sido bem treinado. O treino a que o submeteram não resultou em pleno nele. Entre muitas, havia três fortes razões para pensar assim. Primeiro, odiava esta maldita guerra, segundo, não estava motivado para conflitos, terceiro, nunca teria coragem para matar alguém.

Então por que carga de água estava num cenário que odiava? Cada vez se convencia mais de que as pessoas que o instruíram, ou eram fracos instrutores, ou o Cifra tinha uma mentalidade muito forte e não se deixou convencer de todo. De uma coisa o Cifra estava convicto, que era:
- Vou sobreviver e tentar sair vivo deste conflito, sem pelo menos, matar ou ferir alguém. E se para aqui me trouxeram, também daqui me vão levar, nem que seja num caixão, mas aqui, não vou ficar.

Pedia a Deus para que isso fosse uma realidade e se o conseguisse, a sua guerra estava ganha. E dizia a todos os militares, seus colegas:
- Se eu morrer, quero ser enterrado na minha aldeia do vale do Ninho d’Águia.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

Guiné 63/74 - P10211: Parabéns a você (453): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

Para aceder aos postes do nosso camarada Manuel Reis, clicar aqui
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10207: Parabéns a você (449): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 2930; Francisco Palma, ex-Sold. Cond. Auto da CCAV 2748; Júlio Abreu, ex-Comando do Grupo Os Centuriões e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Paraquedista da CCP 121

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Guiné 63/774 - P10210: Ser solidário (134): A água potável já chegou a Cautchinké (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2012:

Caríssimos amigos editores.
Junto a informação de mais um poço de água potável na Guiné-Bissau, por acção da Tabanca Pequena – Grupo de Amigos da Guiné-Bissau.
Gostava de a ver publicada no blogue de todos nós.
A descrição sobre as fotografias está a seguir.

Abraços fraternos do
Zé Teixeira


A ÁGUA POTÁVEL JÁ CHEGOU A CAUTCHINKÉ

Foi coroada de êxito a tentativa de encontrar água potável no subsolo da tabanca de Cautchinké no sul da Guiné-Bissau, para benefício da numerosa população com cerca de 100 crianças.

Segundo informações da nossa parceira na Guiné, a AD – Acção para Desenvolvimento, a ONGD local que promove a construção dos poços por administração direta, a nossos pedido, o poço agora aberto no fim da estação seca, apresenta-se com água em quantidade. Foi uma excelente surpresa para a comunidade populacional, que só muito recentemente soube que alguém, cá de longe, tinha pensado nela e se tinha disponibilizado para financiar a construção de um poço e um fontenário para que a água ali tão perto pudesse beneficiar diretamente a população de Cautchinké.

Até há pouco tempo a água para consumo era extraída de um buraco existente a cerca de dois quilómetros para onde escorriam as águas das chuvas sem qualquer garantia de salubridade.

Agora, segundo a AD, a água recolhida a cerca de 15 metros de profundidade tem boa qualidade, com a garantia de alguma salubridade pelo filtro natural que a própria terra lhe concede e pelos cuidados no isolamento do poço para que as águas à superfície não escorram para o seu interior.

A segunda fase será iniciada no fim da época das chuvas com a montagem do sistema de elevação da água através da energia solar e do respetivo depósito para que possam ter água durante as 24 horas do dia.


Início da construção

Ensaio sobre a qualidade e quantidade de água do poço

A água é boa, pelo que as mulheres utilizaram os alguidares para fazer tambores e expressar toda a sua alegria

As crianças tambem apoiaram fazendo pequenos rebocos...
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Julho de 2012 > Guiné 63/774 - P10139: Ser solidário (133): Conversas - Guiné-Bissau, dia 13 de Julho de 2012, das 21 às 23 horas, na Fundação Nortecoope em S. Mamede de Infesta - Matosinhos (José Teixeira / Tiago Teixeira)

Guiné 62/74 - P10209: A minha CCAÇ 12 (26): Outubro de 1970: o jogo do rato e do gato... (Luís Graça)








Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Imagens da progressão de um força da CCAÇ 12 (três mais grupos de combate, 1º, 2º e 3º), no subsetor do Xitole, na época das chuvas (as quatro ou cinco primeiras imagens de cima);  uma helievacução no tempo seco, no subsetor do Xime (última imagem). 


Imagens de diapositivos digitalizados, do  valioso e magnífico álbum fotográfico do ex-fur mil at inf Arlindo Roda, da CCAÇ 12 (1969/71), posto generosa e solidariamente à nossa disposição.  Natural de Leiria, é professor do ensino secundário, reformado,  é uma apaixonado jogador de damas e de xadrez, e vive em Setúbal. [Foto à direita, tirada nas margens do Rio Geba]


Fotos: © Arlindo Roda (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


A. Continuação da séria A Minha CCAÇ 12, por Luís Graça (*)





Fonte: Excertos de CCAÇ 12: história da unidade. Bambadinca, 1971, mimeog., pp. 40-41




B. Comentário de L.G.:

No poema "Esquecer a Guiné..." que publiquei em 16 de junho de 2005, na I Série do nosso Blogue, mas que remonta ainda ao meu tempo de Bambadinca (13 de fevereiro de 1971), há uma referência aos páras da CCP 123 e a esta situação de guerra (Op Boinas Destemidas, de 1 de outubro de 1970)...


(...) Os páras 
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impactes,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres. (...)

Recordo-me muito bem de os ter visto, no regresso a Bafatá, com paragem em Bambadinca, nesse já longínquo dia 1 de outubro de 1970, aos nossos valorosos camaradas da CCP 123/BCP 12... Estavam em cima dos Unimog, perfeitamente alinhados, disciplinados, frescos, profissionais, exibindo algumas das armas apreendidas aos "turras"... Davam-me a impressão de terem vindo de um piquenique. Contrariamente ao que nos parecia habitual - eles costumvam ser helitransportados até às imediações do objetivo -, a Op Boinas Destemidas (*) era uma operação terrestre, a "penantes". Igual a tantas outras executadas pela nossa "tropa-macaca". Repare-se que eles partiram ainda noite, às 5h00, de Bafatá, vêm em coluna auto pela estrada alcatroada (e segura) até Bambadinca e continuam, para o Xime, na nova estrada em construção, mas ainda não alcatroada... Às 7h00 já vão a caminho do objetivo: têm a vantagem da surpresa: nem toda a população do Xime é de confiança; alguém ficar de noite noite no quartel do Xime é sinónimo de operação no dia seguinte... E os "camaradas" que estão no outro lado, ali mais próximos ao alcance do obus 10.5 do Xime - Gundagé Beafada, Ponta Varela, Poindon, Ponta do Inglês -, ficam logo de sobreaviso...


Tenho ideia que esta cena do regresso dos páras, com passagem por Bambadinca, se passa depois do almoço, a meio da tarde. Lembro-me que as forças da CCP 123 estavam estacionadas frente ao comando de Bambadinca, aguardando provavelmente a chegada do seu comandante que dever ter ido transmitir pormenores do sucesso da operação ao comando do BART 2917... Rapidamente começou a circular no quartel de Bambandinca a notícia de que os páras tinham surpreendido 7 combatentes do PAIGC, em círculo, sentados, encobertos pelo capim... a meio caminho da mítica picada, antiga estrada, Xime/Ponta do Inglês... Caíram em cima deles, fuzilaram-nos à queima roupa e trouxeram 7 Kalashnikov novinhas em folha... Os atacantes teriam tido tempo de contar os impactes (só num dos cadáveres teriam sido contado 27 tiros!), fotografar e armadilhar os cadáveres... 


Quem conta um  conto, acrescenta-lhe um ponto... Vejo, agora, ao fim destes anos todos, ao ler a versão (oficiosa) que é contada na História do BART 2917, que as coisas não se passaram exatamente assim, ou seja como dizia por aqueles dias o jornal da caserna... 


As baixas mortais entre o IN foram de facto sete, em princípio,  combatentes, e o armamento apreendido foram 2 metralhadoras ligeiras Degtyarev e 1 LGFog RPG-2... Não havia Kalashnikov... As Kalashnikov que eu vi, faziam parte do próprio equipamento dos páras, ou pelos menos de alguns dos seus graduados. Esta CCP 123, do BCP 12, estava na época estacionada em Bafatá ou Galomaro, já não posso precisar, ao serviço do COP 7 (criado em agosto de 1969, no subsetor de Galomaro). A Op Boinas Destemidas resultou num duro golpe para  o PAIGC na zona. No entanto, quase dois meses depois, a 26 de novembro de 1970, as NT sofreriam, na mesma região, a mais violenta emboscada de que havia até então memória, e de que resultaram 6 mortos e 9 feridos graves, no decurso da Op Abencerragem Candente. Falaremos dessa operação no próximo poste desta série. No setor L1, como no resto da Guiné, jogava-se o perigoso jogo do gato e do rato...


Outros factos de relevo, referentes à atividade IN, no mês de outubro de 1970, no setor L1, segundo a história do BART 2917:

(i) 6 out 1970: Grupo IN estimado em cerca de 10 elementos emboscou com LGFog e armas ligeiras durante 2 minutos em [XITOLE 9C9-92] um Grupo de Combate da CART 2716 sem consequências para as NT; perseguido por estas,  o IN retirou sem reagir; 


(ii) 13 out 1970:  Forças da CCP 123 realizaram a Operação Golfinho, patrulha de reconhecimento com emboscada, na região de Seco Braima [, subsetor do Xitole], sem vestígios nem contactos com elementos do IN;


(iii) 15 out 1970:  Grupo IN, não estimado, emboscou em Ponta Colia [,. subsetor do Xime,]  um Grupo de Combate da CART 2715 quando este montava segurança a uma coluna vinda do Xime, à sua aproximação; o IN utilizou LGFog e armas ligeiras; as NT reagiram imediatamente apoiadas pelo fogo de Mort 81 e Obus 10.5 do Xime, pondo-se o IN em fuga; as NT não sofreram quaisquer consequências;

(iv) 30 out 1970:   Grupo IN estimado em 5 elementos abriu fogo de armas ligeiras e uma LGFog da direcção de Madina Colhido, sobre o aquartelamento do Xime; as NT reagiram imediatamente ao fogo IN, após o que saiu um Grupo de Combate tentando capturar os elementos IN; julga-se que o IN quis espalhar a confusão dado que nesse momento se encontrava no porto do Xime uma LDG descarregando material e no aquartelamento se encontravam forças de escolta a uma coluna de Bambadinca.


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Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 30 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10094: A minha CCAÇ 12 (25): Setembro de 1970: Levando 50 toneladas de arroz às populações da área do Xitole/Saltinho, e aguardando o macaréu no Rio Xaianga (Luís Graça)

(**) Op Boinas Destemidas, 1 de outubro de 1970 > Companhia de Caçadores Paraquedistas 123 > Desenrolar da acção

Pelas 5,00 horas, iniciou-se o deslocamento das forças que intervinham na operação, em coluna auto, de Bafatá para o Xime. 

Às 7,00 horas iniciou-se a progressão, rumo Sudoeste, pelo Norte de estada Xime / Ponta do Inglês.

Durante a progressão, quando as NT se deslocavam a corta mato, foi detectada e levantada uma mina A/P, a sul da bolanha de Madina [XIME 3F1-45]. O engenho foi levantado, assim como a carga de reforço, constituída por 7 kg de trótil, uma granada de bazuca e duas granadas de canhão s/r. 

A progressão continuou pela estrada Xime / Ponta do Inglês cerca de 3 km, após o que continuou paralelamente à estrada, pelo lado Norte e a corta mato. Depois de percorridos 1,5 km foi encontrada uma picada bastante batida no ponto da cota 27. Fez-se a exploração do trilho encontrando-se peugadas muito recentes. 

Entretanto, às 11,00 horas, ouviram-se vozes a cerca de 200 metros do local onde as NT se encontravam, e na direcção noroeste. Iniciou-se imediatamente uma progressão cuidada para o local de onde provinham as vozes, tendo as NT conseguido detectar um acampamento IN onde se encontravam alguns elementos. Devido à sua despreocupação, permitiram uma aproximação das NT até cerca de 20 metros. 

O pessoal instalou-se em linha frontalmente ao acampamento, o qual não pode ser cercado devido à densidade da mata. As NT abriram imediatamente fogo tendo abatido diversos elementos IN dos que se encontravam mais próximos, enquanto os mais afastados se punham em fuga desordenada. 


A reacção do IN foi muito ligeira fazendo apenas uma “roquetada” e alguns tiros de armas ligeiras sem consequências para as NT. O objectivo foi imediatamente assaltado, tendo-se encontrado 4 elementos mortos e diverso material. 


Montada a segurança, feita uma busca ao local, encontraram-se, já na picada, mais 3 elementos IN mortos, apesar de gravemente atingidos se tinham posto em fuga. 


Depois de recolhido o material e de ter sido passada revista aos mortos, as NT retiraram em direcção ao Xime, onde chegaram cerca das 12,05 horas regressando posteriormente, em coluna auto a Bafatá. 

Resultados obtidos:


(i) Baixas infligidas ao inimigo 7 elementos IN abatidos. [Estes elementos usavam fardamento esverdeado];


(ii) Inimigos capturados: Nada;


(iii) Material e documentos capturados ao IN:

- 2 M/L DEGTYAREV, municiadas; 
- 1 LROCK RPG-2; 
- 5 fitas M/L DEGTYAREV; 
- 5 tambores de M/L DEGTYAREV 
- 5 granadas de LROCK RPG-2 
- 12 carregadores de KALASHNIKOV; 
- 900 munições de KALASHNIKOV; 
- 4 bolsas para carregadores de KALASHNIKOV; 
- Cantis, marmitas, fardamentos, etc. 
- Documentos diversos. 

Fonte: História do Batalhão de Artilharia nº 2917, de 15 de novembro de 1969 a 27 de março de 1972 (Bambadinca, 1970/72), pp. 62/63 [Versão digitalizada, melhorada e aumentada, da autoria de Benjamim Durães, s/l, s/d].

Guiné 63/74 - P10208: Notas de leitura (386): O 25 de Abril e o Conselho de Estado - A Questão das Actas, por Maria José Tiscar Santiago (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 4 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Este documento é surpreendente, temos aqui a vida do Conselho de Estado entre Maio de 1974 a Março de 1975, um órgão com poder de deliberação e sobre o qual irão recair decisões de grande amplitude.
Seguramente que a descolonização foi o seu maior cometimento, foi ao Conselho de Estado que Spínola pede concordância para encetar o processo da descolonização. Estão ali as peças fundamentais da crise Palma Carlos, Spínola resigna, depois do 28 de Setembro, na presença do Conselho de Estado. A coletânea de anexos é de extrema importância: estão ali notas sobre o manuscrito do programa realizado por Mel Antunes, o primeiro projeto datilografado do programa do MFA, transcrevem-se as notas manuscritas do conselheiro Almada Contreiras ao longo das reuniões, podem ler-se algumas dessas atas e também o documento Almeida Santos sobre a atuação política para os territórios ultramarinos, uma preciosidade literária.
E se dúvidas houvesse, há aqui material de sobra para dizer que Spínola foi o presidente descolonizador português.

Um abraço do
Mário


O Conselho de Estado (1974-1975) e a Guiné

Beja Santos

O Conselho de Estado, previsto pelo programa do MFA, era um órgão com poder legislativo e que na sua vida efémera foi incumbido de emitir parecer sobre questões altamente sensíveis, com destaque para a descolonização. Até recentemente, davam-se como perdidas as atas deste órgão. Afinal, elas existiam, estavam em poder do comandante Almada Contreiras, que as guardou com as suas notas pessoais, uma investigadora analisou toda esta documentação e dá-nos uma água-forte sobre um órgão decisor regularmente minimizado pela historiografia. “O 25 de Abril e o Conselho de Estado, a Questão das Actas, Prefácio de Marcelo Rebelo Sousa” (por Maria José Tíscar Santiago, Edições Colibri 2012) é um documento inesperado que irá suscitar alguma polémica, nomeadamente por revelar uma faceta até hoje escondida do papel de António de Spínola num momento fulcral da descolonização, em Julho de 1974. É uma obra que irá sensibilizar os estudiosos: está aqui o Documento Almeida Santos, nunca divulgado, relativo às perspetivas da descolonização já depois da tomada de decisões históricas, e que é uma preciosidade literária; encerra o Documento Palma Carlos, traz luz às duas motivações de fundo que irão conduzir à sua demissão, isto num momento crítico em que a questão da descolonização se tornara inadiável; assiste-se à crescente influência da Comissão Coordenadora do Programa do MFA; e torna-se claro que os acontecimentos da Guiné-Bissau vão conduzir à decisão de Spínola em aprovar e congratular-se com a Lei n.º 7/74. Mas há outros ingredientes que irão suscitar a curiosidade tanto do investigador como do curioso por estes eventos contemporâneos ao 25 de Abril.

Como é óbvio, circunscreve-se à apreciação dos acontecimentos da Guiné pelo Conselho de Estado. Como escreve a historiadora, o mesmo Marcello Caetano que proibira Spínola de continuar os contactos quer com Senghor quer com Amílcar Cabral lançou no maior sigilo conversações com o PAIGC, em Março, e enviou a Paris o seu amigo Pedro Feytor Pinto para que este fizesse constar, em círculos representativos, que Portugal estava disposto a iniciar negociações, aceitando ou admitindo os princípios da autodeterminação e da independência. A situação da Guiné era um beco sem saída para o regime: na ONU, o regime já tinha perdido a sua soberania sobre o território guineense. A participação portuguesa em reuniões internacionais onde se encontrassem delegados da República da Guiné-Bissau era já uma provável dor de cabeça. Quando chega a Bissau, em 7 de Maio, como encarregado do Governo, o major Carlos Fabião encetou, de imediato conversações com o PAIGC para resolver a situação e fez, oralmente e por escrito, relatórios que irão ser estudados no Conselho de Estado, insistindo na urgência em resolver o problema por via da descolonização imediata, por não existirem as condições mínimas para sequer se pensar na organização de um referendo. A questão da Guiné irá abrir o precedente de discutir no Conselho de Estado o reconhecimento da independência da colónia, e decorrente dessa discussão vai nascer a Lei 7/74.

O Conselho de Estado reúne regularmente com agendas densas e quase sempre escaldantes, ali nunca se irá iludir a forte pressão que estava a ser exercida sobre os ministros que tinham que lidar com o problema colonial, na sua vertente política, militar ou diplomática. Na reunião de Londres, a delegação portuguesa sente que não tem margem de manobra face às exigências do PAIGC. Como é evidente, Spínola está a lidar com vários focos incendiários ao mesmo tempo, e a diplomacia das Necessidades alerta para a iminente admissão da Guiné-Bissau como membro de pleno direito das Nações Unidas. Palma Carlos exige mais poderes enquanto Primeiro-Ministro, a imediata promulgação de uma Constituição Provisória sujeita a referendo, com a consequente eleição do Presidente da República por sufrágio universal. Toda esta crise irá sentir-se no Conselho de Estado, o seu desfecho é conhecido. Em 15 de Julho, algures no Cantanhez, entre as 14:20 e as 16:30 teve lugar a primeira sessão de conversações entre as delegações portuguesa e a do PAIGC. Os representantes do PAIGC pediram condições de cessar-fogo e o reagrupamento das forças portuguesas. Carlos Fabião informou a delegação guineense que o reconhecimento da Guiné-Bissau era um ponto assente, o programa do MFA estava a ser reformulado. E adiantou que era desejo do general Spínola reunir o Congresso do Povo com a presença de Aristides Pereira, onde seria feito o reconhecimento da Guiné-Bissau, sendo a presença do general Spínola utilizada para promover a união dos povos.

A reunião continuou no dia seguinte, para estudar sobre os mapas a retração das forças portuguesas na colónia. O PAIGC insiste no reconhecimento no curto prazo da Guiné-Bissau, quer relações Estado a Estado. São dias tumultuosos, os de meados de Julho, Veiga Simão apresenta as credenciais como o embaixador de Portugal na ONU, a 19 reúne-se o Conselho de Estado para apreciar uma tomada de decisão concreta sobre a concessão de independência à Guiné. Spínola reverte para o Conselho de Estado o peso da decisão: “Julgo que se este Conselho de Estado verificar, como se torna evidente, a impossibilidade de uma consulta à Nação, é ele e só ele que compete decidir, inequivocamente, sobre a independência de qualquer parcela do território nacional”. O general Costa Gomes faz uma exposição sobre a situação militar: “Em relação à Guiné, as nossas Forças Armadas não estão nesta altura em condições de aguardar mais tempo; assim, ou encontramos uma solução política que nos permita ainda manter com o território da Guiné as relações que designamos de portugalidade onde nos sujeitamos a uma derrota militar e cortamos os laços que a Guiné deseja manter connosco”. A autora escreve: “Se compararmos estas palavras do general com o relatório feito pelo brigadeiro Fabião, constatamos que Costa Gomes está a resumir os termos da situação na Guiné, de forma clara, com informação vinda do terreno”.

Spínola insiste que não aceita a responsabilidade de alienar uma parte do território sem a confirmação do Conselho de Estado ou da Nação. O Conselho de Estado reconheceu por unanimidade a impossibilidade de se realizar uma consulta à Nação. Spínola submete à votação uma proposta de lei que consagra o princípio da autodeterminação. Nasce assim a Lei n.º 6/74, de 19 de Julho, que aparece no Diário do Governo sem a assinatura do Presidente da República. Almeida Santos ameaça demitir-se. O Conselho de Estado reúne a 24 de Julho. O texto foi aprovado por unanimidade. Estava escrita a certidão de óbito do Império português. Finda a reunião do Conselho de Estado, foi enviada uma comunicação para a Guiné anunciando o teor da lei acabada de aprovar, a burocracia da publicação no Diário do Governo não se compadecia com mais delongas face ao previsível reconhecimento da Guiné-Bissau pelas Nações Unidas. A 27 de Julho, o general Spínola pronuncia um discurso: “Se há hora grande da vida e da história de um Povo, essa é sem dúvida a do seu reencontro com a vocação, a fisionomia e a forma de ser e de estar no mundo que lhe são próprias. Portugal vive hoje essa hora grande: e é com a mais viva emoção que dirige ao povo português de aquém e de além-mar, na mais perfeita coerência com a nossa tradição histórica e com o ideário que nos preside e nela se inspirou, a declaração formal de haver chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos”.

A fazer fé no teor destas atas e nas notas compulsadas pelo comandante Almada Contreiras Spínola aparece claramente comprometido com soluções de que discordava, apercebeu-se de que não era possível retardar mais o calendário da História e escudou-se na deliberação do Conselho de Estado.

A Guiné empurrava inexoravelmente Portugal para a descolonização.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10200: Notas de leitura (385): "Guiné - 24 anos de independência - 1974-1998", de Zamora Induta (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10207: Parabéns a você (452): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico do BCAÇ 2930; Francisco Palma, ex-Sold. Cond. Auto da CCAV 2748; Júlio Abreu, ex-Comando do Grupo Os Centuriões e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Paraquedista da CCP 121

Para aceder aos postes dos nossos camaradas Amaral Bernardo e Francisco Palma, clicar nos seus nomes

Para aceder aos postes dos nossos camaradas Júlio Abreu e Victor Tavares, clicar nos seus nomes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10167: Parabéns a você (448): José Santos, ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)

domingo, 29 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho



1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2012, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Reformado, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69 e ex-Capitão de Art.ª e CMDT da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1972/74), enviou-nos esta história, no mínimo hilariante, para a sua série "A Minha Guerra a Petróleo":




A Minha Guerra a Petróleo (7)

Um Casal Estranho

Naquele tempo, mesmo no pior dos “buracos” surgiam sempre motivos para rir. É sempre assim. Nas situações mais difíceis, basta estarem dois homens juntos a tentar atingir um mesmo fim, para que as situações de humor surjam, ainda que por momentos fugazes. E ainda mais se os homens forem jovens. A história que vou contar é insólita, pode parecer fantasia, mas é verdadeira e só falharei num ou noutro pormenor de que já não me recordo.

Entrada do Quartel do Xime.
A devida vénia a CART 3494 & Camaradas da Guiné

O Xime era um quartel com fracas instalações que tinha, “acoplada” a nascente, uma pequena tabanca muito pobre, onde a população vivia nem eu sei bem de quê. Para lá dos espaldões dos três obuses 10,5 cm, dispostos em linha e apontados a Sul, e do último abrigo, surgia a terra-de-ninguém, atravessada longitudinalmente pelo que restava da estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês.

Uma manhã, o furriel P., comandante de uma das secções de artilharia, procurou-me com ar muito grave, dizendo que “peguecisava falague-me”. Era um rapazito do Porto, educado, provavelmente de boas famílias e que falava acentuando os “egues”. Quando lhe perguntei ao que vinha respondeu-me que pretendia “mandague vigue a minha esposa”. Perguntei-lhe para onde é que quereria trazê-la e, como me respondesse que era para o próprio Xime, fiquei sem ar. Tentei recordar-lhe que ali não tínhamos qualquer espécie de comodidade para lhe proporcionar. Não podendo habitar no aquartelamento, até por falta de espaço e de todas as outras comodidades mínimas, só restava a tabanca. Aí, não sei como seria. Não havendo casas ou partes de casa para alugar, só lhe restava construir uma morança igual às que já existiam, mas não creio que esta fosse uma saída possível.

O rapaz estava mesmo numa situação difícil com a “esposa a fazegue peguessão pâga vigue” e sem ter local para a instalar. Não se vislumbrava uma solução. Poderia vir e ficar em Bafatá e aí eu não tinha nada contra, considerando que na cidade havia três pensões, com a qualidade mínima para a receber. Porém, a distância entre o Xime e Bafatá atingia as dezenas de quilómetros, o que o impossibilitava de manter um contacto frequente com a “esposa”. Expliquei-lhe também que, em caso de ataque ou flagelação do IN, ambos ficariam em sobressalto até cada um confirmar que o outro estava bem.

Fiz-lhe um apelo à condição masculina para que lhe explicasse que as senhoras não podem “fazegue peguessão pâga” e nós cedermos, tanto mais que não se tratava de satisfazer um capricho, mas de uma situação concrecta que poderia tornar-se muito delicada. Terminámos a conversa, ficando o furriel P. de resolver a situação através de uma carta explicativa.

Eu suspeitava de que o furriel tinha feito como um outro camarada meu fizera, em 1968. Embora estivéssemos no último quartel do Sul da Guiné, o João descrevia à sua Cármen tudo como se nada tivéssemos para fazer. Além disso, o local era agradável – e era-o, de facto – e a unidade de milícia “é que desempenhava toda a actividade operacional” sob controlo do João. Este era o único ponto verdadeiro da descrição. Enfim, vivíamos no melhor dos mundos, comíamos ostras (muitas e boas), bebíamos sumo de laranja natural, os mangos e cajus eram de excelente qualidade e, às vezes, tínhamos boas refeições caça. Também conseguíamos peixe, através do pescador senegalês – o Turé, que falava francês e até comia pelicano assado – que abastecia Cacine, a meias com um português. O peixe podia ser “poisson de segunda”, se fosse tainha, ou “poisson de primeira”, se fosse qualquer outro peixe. Tudo isto era verdade, mas não era suficiente para que o quadro fosse bucólico e de tranquilo tinha pouco. E a Cármen acreditou, como eu vi, alguns anos depois, quando o João ma apresentou.

Agora não era assim e, uns dias mais tarde, o Furriel P. procurou-me para me dizer que a sua esposa continuava a pressioná-lo para que a deixasse vir para a Guiné. Que sim, que já lhe escrevera a tal carta, mas ela até ameaçava que um dia aparecia-lhe no quartel, sem avisar. Esforcei-me por dissuadi-lo de colaborar em semelhante loucura, mas não contei com uma intervenção do Alferes Gomes, meu ex-colega de liceu, embora mais novo, e agora sempre decido a resolver tudo bem e depressa. Tendo presenciado a nossa conversa, gritou-lhe:
- Olha, pá! Se ela aqui aparecer, sem avisar, tu enfias-lhe um murro na tromba que ela fica enterrada no tarrafo até aos ovários. E agora, vai lá escrever a carta e conta-lhe a verdade, para ela ficar a saber porque é que não pode vir para aqui.

A resposta do furriel foi espantosamente inverosímil:
- Só se o meu “alfegues esqueguevegue”

Achei que a conversa estava a passar das marcas e despedi o furriel. Afinal, estávamos na hora de almoço e as batatas cozidas que acompanhavam o atum de lata estavam a esfriar.

Alguns dias depois fui, mais uma vez, contactado pelo furriel P.. A “esposa” estava para chegar e ele pretendia trazê-la para uma das pensões de Bafatá. Combinei com o comandante do pelotão de Artilharia uma ida a Bissau “para tratar de assuntos do pelotão” e ele seguiu, com a indicação de que, na segunda-feira seguinte, deveria estar no Xime. Ia haver mais um passeio à Ponta Varela e imediações e eu queria ter a artilharia bem guarnecida e pronta para colaborar nas festividades, se necessário. Porém, no domingo, o furriel P. não apareceu. Lá fomos ao passeio e, dessa vez, as festividades ficaram-se por mais uma estafa, algumas horas de sede e muito tempo de atenção difusa.

À chegada, o furriel esperava-me com uma carta do capitão comandante do E.Rec de Bafatá em que este assumia a responsabilidade da falta, por o ter aconselhado a ficar mais um dia e assim poder aproveitar um reconhecimento que o esquadrão ia fazer para os meus lados para se apresentar. Portanto, desculpei e tudo ficou bem por ter acabado bem.

A partir daqui, tudo se passou num galope de acontecimentos. Dois dias depois conheci a esposa do furriel. Foi transportada ao Xime por um comerciante e madeireiro, estabelecido em Bafatá, que vinha ao cais despachar algumas toneladas de madeira, conduzindo o seu Mini 1275 GT. Além dela, trazia mais duas senhoras mais velhas: a sua própria esposa e uma amiga desta.

 Xime > Messe de Oficiais

Recebi-os naquilo a que se tinha convencionado chamar Messe de Oficiais, conversámos um pouco e eu admirei-me da coragem da jovem Celeste, que atravessava o quartel com uma mini-saia bastante diminuta. Feito o embarque, o “bólide” regressou, velocíssimo, a Bafatá com os seus ocupantes. E chegámos ao domingo decisivo. Nos dois domingos anteriores eu tinha sido acordado por helicópteros que demandavam o Xime. No primeiro, os fuzileiros tinham desencadeado uma acção na Ponta Varela, sem colaboração das forças terrestres e queriam apoio de héli, negligenciando o de artilharia. No segundo domingo – o imediatamente anterior – o brigadeiro adjunto-operacional tinha vindo entregar-me um alferes que me faltava no efectivo da companhia. O helicóptero não solicitado ou previsto era habitualmente uma visita do General, com a correspondente inspecção e perguntas “de algibeira”. Eu tinha, portanto, sofrido dois falsos alarmes. Por isso, naquele domingo, revoltei-me e resolvi dar-me uma meia-manhã de descanso. Subitamente, batem-me à janela da rulote. Era o Dias do bar desorientadíssimo a gritar:
- Meu capitão! O gajo deu um tiro! O gajo deu um tiro!

Xime > Messe de Oficiais > Em primeiro plano o Cap Art.ª Pereira da Costa. À sua direita o Alf  Mil Pereira 

Imaginei o pior. Um suicídio, um acidente de tiro ou um ataque de loucura. Pensei que iria encontrar alguém gravemente ferido, agonizante, talvez morto. Visualizei, em poucos minutos, algumas situações aflitivas, mas, ao sair da “messe”, dei de caras com a “esposa” e, um pouco mais à frente, duas Chaimites estacionadas com as tripulações, descansando calmamente à sombra dos mangueiros. Tudo tinha sucedido no abrigo da artilharia. Ao entrar, vi o furriel P. de pé, arfando, mas não parecia ferido. O Mendes Pinto – furriel mecânico – sentado numa mala procurava acalmar o “artilheiro”. Quando procurei saber o que sucedera este respondeu:
- Capitão fui cobáguede!

Vi então o que sucedera. Com uma G3, tinha procurado dar um tiro em si próprio, mas, por falta de jeito ou de convicção, acabara dando um tiro para o ar. Nessa altura, uma voz feminina atrás de mim indagou:
- Morreu?

Era demais. Saí, dirigi-me ao alferes que comandava a coluna do E.Rec e disse-lhe secamente, mas em voz baixa:
- Desaparece e leva isto daqui para fora!

Isto, como se calcula, era a inquiridora acerca do estado de morte do furriel P.. Enquanto as Chaimites arrancavam, regressei à messe. Aquilo, de comédia tinha pouco, mas poderia ter resultado numa tragédia e, se assim tivesse sido, nada haveria que a revertesse. Alguém, que não tinha que fazer, vinha perturbar o meu pouco sossego conseguido a custo, depois de ter sido aconselhada a deixar-se ficar na “Ímbiqueta” quieta e calada, fazendo a vida que mais lhe aprouvesse. Graças a Deus, o promitente suicida tivera falta de coragem. Senão…

Que fazer agora? Tínhamos marcado para esse dia uma “Ranchada”, em Bafatá e eu resolvi que não seria este incidente que nos iria tirar a possibilidade de melhorar a nossa alimentação. Creio que o restaurante era a “A Transmontana” e, pela sua situação privilegiada, podíamos deixar as armas em cima das viaturas, enquanto comíamos. Organizei um patrulhamento auto, e seguimos até Bafatá. Quando íamos a sair, o furriel P. quis falar comigo. “Queguia igue também a Bafatá pâga tegatágue da sua vida”.

A contragosto deixei-o ir. À chegada, separou-se de nós e só mais tarde eu soube para onde foi. Almoçámos com calma, tomámos o digestivo, descansámos e, na hora de regressar, comecei a constituir a coluna. Nessa altura, o P. surgiu e disse, mais uma vez, que “peguecisava falague-me”. Como é de calcular, eu não estava com disposição para grandes conversas com ele e respondi:
- O que é que foi agora?
- Tenho pegublema. A minha esposa não tem onde duguemigue.

Não entendi logo o que se passava. Lembrei-lhe o que tínhamos combinado e que ele seguia connosco e ela ficaria na pensão onde estava hospedada.
- O pegublema é que a minha esposa teve um fegaquesa!

Imaginei um problema súbito de saúde. Uma quebra de tensão ou algo similar e indiquei-lhe o caminho para o comando do batalhão onde, provavelmente, o médico poderia ver o que passava. Mas não fora nada disso. Tinha tido uma fraqueza, sim, mas com um alferes da Cavalaria. Ao saber da desgraça, o marido manifestou a sua ira. Tinham discutido e ele até lhe tinha dado “dois tabefes”. Claro que, em face deste panorama de traição e violência doméstica, o dono da pensão tinha entendido que o melhor era pagarem a conta e, por consequência…

Lembrei-me, então, do dono do 1275 GT que também tinha uma pensão e a uma escola de condução, onde a malta da companhia obtinha as suas cartas com alguma facilidade, e fui-lhe pedir que recebesse a “jovem saneada”, ao menos por alguns dias. Parecia-me que a situação estava insustentável e que a retirada para a Metrópole era dado adquirido. A resposta foi esclarecedora:
- Depois duma “barraca" destas, se eu fizesse isso, a “Patroa” matava-me…

O tempo impunha que regressássemos ao Xime e não valeria a pena consultar a terceira pensão, considerando as proporções do escândalo. Como dizia o meu professor de História da AM “o que preciso é dar um tiro para qualquer lado, só assim teremos algo para corrigir”. Resolvi “dar o tiro” e sentei a senhora no lugar do chefe de viatura dum Unimog 404. Rumámos ao Xime, sem passarmos por Bambadinca, não fosse o comandante do batalhão ser “informado” de que algo de estranho se passava…

No Xime havia festa. Tinha nascido a filhota de um dos furriéis e estava a organizar-se a correspondente refeição oferecida pelo feliz progenitor, seguida de fados e outras cantorias que a inspiração ditasse. A minha dúvida era agora saber onde o jovem casal desavindo iria pernoitar. Por prudência, resolvi afastá-lo da celebração que se desenhava. Não podia correr o risco de que algum conviva mais animado tecesse algum comentário despropositado ou criasse qualquer outra situação desagradável. Por isso cedi-lhes o terreiro central da nossa messe. Era uma área rectangular, cimentada, em cujos cantos haviam sido colocadas quatro rulotes, os nossos quartos. No centro, um alto tronco de palmeira cravado a pino, suportava o telhado de capim. Entre duas rulotes “funcionava” um bar. No open-space (como hoje diríamos) assim constituído, tínhamos o nosso living-room e a área de refeição. No living, umas cadeiras de palha e uma baixa mesa de madeira. Uma outra mesa, cujo tampo nunca vi, pois tinha uma grande toalha de plástico permanentemente colocada, e umas cadeiras era onde tomávamos as nossas refeições. Do tecto pendia um candelabro, suspenso por uma corrente de ferro, com três garrafas de brandy, sem fundo, disfarçadas de abat-jours. Além disso tínhamos um tabuleiro de xadrez/damas apoiado em quatro pés, a utilizar nas correspondentes práticas desportivas. Foi justamente sobre esta infraestrutura desportiva que mandei pôr a mesa onde o casal iria jantar em tête-à-tête. Mas o pior seria arranjar um sítio onde pudessem dormir. Estava, obviamente, fora de questão que ficassem no abrigo da artilharia, onde o furriel dormia. O Mendes Pinto poderia ser a solução. Tive de usar toda a minha habilidade para o convencer a ceder o seu pequeno quarto no meio dos bidons, restos de viaturas e produtos indênticos. Era exíguo, mas garantia uma certa privacidade.

E foi assim que o casal teve um jantar a dois e uma noite de descanso. Julgo eu…

No dia seguinte, havia mais um passeio à Ponta Varela, o que invalidava a possibilidade de se fazer outra coluna a Bafatá para colocar a Celeste num avião a caminho de Bissau. No regresso do passeio eu tinha a solução. Era necessário tirar a jovem do Xime. A sua presença poderia dar aso a comentários, piropos ou algo pior do que isso tudo. Por isso, chamei o P. e intimei-o a tirá-la dali. Para tal, iria de novo a Bissau, agora por sua conta e risco, fazendo a viagem de avião, a expensas suas e devidamente acompanhado. Depois, a jovem seguiria para Lisboa, nem que fosse a nado, e ele regressaria às suas funções habituais. Tudo teria de ser resolvido num curtíssimo intervalo de tempo. Essa era a minha imposição.

Em dois dias o casal partiu para Bissau e eu fiquei com o coração nas mãos acerca do que o furriel faria em Bissau, numa situação de total ilegalidade. Os dois ficaríamos mal se se descobrisse que andava por ali um jovem casal, cujo marido deveria estar no interior a cumprir as suas tarefas operacionais.

Enfim, ao fim de uma semana, tive o grato prazer de ter o efectivo da artilharia completo. Procurei esquecer o sucedido e rezei para que o assunto não fosse muito divulgado.

Alguns dias depois, fui abordado pelo alferes Viegas da artilharia, queixando-se de que o P. não queria lavar o obus. Quando me preparava para o mandar dar uma volta ao pelotão, em bicicleta, surge o cabo enfermeiro a gritar:
- O gajo matou-se! O gajo matou-se!

Não vi logo quem era o gajo, mas a pior das hipóteses confirmou-se. O furriel P. apanhara um frasco de Valium 10, embalagem hospitalar, e tomara “n” comprimidos. O cabo enfermeiro esclareceu-me de que o frasco tinha cem comprimidos, dos quais ele já tinha dispensado talvez uns vinte. No fundo do frasco rolavam pouco mais de vinte comprimidos. Conclusão: cerca de sessenta comprimidos iam começar a circular no sistema nervoso do furriel.

Colocámo-lo numa maca e num Unimog que eu próprio conduzi, levei-o a Bambadinca. Dois maqueiros amparavam a maca e eu dei a velocidade de que o carro era capaz. Em Bambadinca, o médico, já avisado da nossa chegada perguntou qual era o problema. Quando lhe descrevi a situação, ele colocou o sinistrado numa posição cientificamente adequada e, metendo-lhe dois dedos na boca, provocou o vómito. Um jackpot de líquido e comprimidos azulados saiu a rolar da boca.

O médico ficou fiel depositário do sinistrado e eu regressei ao Xime. Tive informação de que dormiu praticamente durante três dias. Depois, entrou num período de recuperação e acabou por regressar à sua secção de 10,5 cm.

Entretanto, fui chamado ao meu comandante de batalhão que queria saber o que se passara. Contei muito resumidamente e confirmei que a Sr.ª D. Celeste P. já estava fora do “TO daquela PU”. Tranquilizado o meu superior hierárquico, tudo poderia ter voltado à normalidade se a respectiva esposa não se tivesse lembrado de intervir no desenrolar da acção. Era uma senhora muito participativa, que assumia o seu papel de “comandanta”, procurando influenciar os acontecimentos, exibindo, de quando em vez, os resultados positivos da comissão que ambos tinham feito em Angola. Não me lembro de ter existido um batalhão comandado “a duo” pelo comandante e esposa, mas eu também nunca estive em Angola… Alguns dias depois, encontrando em Bambadinca dois alferes do E.Rec., a boa senhora resolveu fazer uso de toda a sua persuasão, perguntando-lhes frontalmente qual dos dois dormira com a “mulher do furriel”. Colheu como resposta uma boa dose de silêncio e um sorriso amarelo.

O meu alferes Correia, que viera no mesmo helicóptero que brigadeiro adjunto-operacional, era ex-aluno do Colégio Militar, tal como um dos alferes do E.Rec.. Ao abrigo de uma camaradagem colegial e de um código de deontológico que não conheço, resolveu ir “pregar uma rabecada” no atrevido que dera uma tão larga colaboração para a “fraqueza” que vitimara a Celeste. A resposta foi desconcertante. Tudo tinha começado logo após a partida do furriel P. para o Xime. Ao jantar, na pensão, os dois alferes da cavalaria estavam presentes por terem também um quarto alugado. Era realmente uma situação insólita, mas tinha explicação. Ao que parece, a messe do esquadrão era pequena e o capitão estava também empenhado em tarefas bélico-sexuais. Para ter uma certa liberdade de acção “convidara” os dois alferes a passar um fim-de-semana fora.

Ao vê-los, a Celeste deu-se à conversa e, em breve, um bom contacto estava estabelecido. A conversa progrediu, aumentando de interesse por ter resvalado para terrenos movediços. A disponibilidade da jovem atingiu níveis inauditos, quando informou que estava grávida e, por isso “não haveria problema”. O Correia ia-se inteirando dos pormenores, mas apesar de tudo, continuou a censurar os alferes por se terem aproveitado da mulher de um camarada que estava longe e, mais ainda, num ambiente tão restrito e onde se incluíam tantos militares.

Mas, o pior (ou o melhor) estava para vir, quando a Celeste optou ou correspondeu ao assédio de apenas um dos alferes. Nessa conformidade, o outro teve de ir ver Bafatá by night, enquanto o casal que acabava de se constituir “se recolhia”. Cerca da meia-noite e cansado do intenso movimento da Night de Bafatá, dirigiu-se ao quarto que também era seu, já que o alugara a meias com beneficiado. Bateu à porta e foi recebido por este que o mandou entrar. De fonte segura, sabe-se que o quarto tinha duas camas. Só as paredes terão presenciado e poderiam descrever o que sucedeu, mas as paredes não falam. Por consequência, mais do que isso, o Correia não soube. Verdadeiramente abismado com estas revelações, não se sentiu à vontade para continuar a censurar os “prevaricadores”. No fundo, tudo se tinha passado como a natureza manda e o calor local propicia.

Imediatamente após aquela noite, foi organizada a coluna ao Xime que permitiu que o P. ouvisse a confissão terrível, que deu lugar ao tiro para o ar e ao susto que eu apanhei.

A cena do Valium 10 não teve, a curto prazo, mais consequências para além de uma certa letargia que determinou o comportamento do furriel P. durante uns dias. Julgo que se ofereceu para um Pel. Art. que iria para o Cantanhez, cuja ofensiva estava a decorrer, mas segundo me disseram, o oferecimento não foi aceite.

Nunca mais tive notícias do casal desavindo, devido à acção da Natureza e à “força do calor”. O alferes Correia saiu, pouco tempo depois, para uma Africana (companhia de caçadores africanos), como se dizia então, e eu perdi-lhe o rasto. O E.Rec. nunca mais patrulhou o itinerário até ao Xime, talvez porque o In tivesse deixado de andar por ali…

Esta foi uma aventura que, por variadas causas, poderia ter terminado muito mal. Como assim não foi, alimentou as nossas conversas durante algum tempo, entre censuras à Sr.ª D. Celeste P. e a hilaridade inerente à revisão da sequência de todas aquelas situações dignas de uma ópera-bufa.
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Nota de CV:

Vd. poste anterior da série de 5 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8507: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (6): Ai que me doi tanto!... ou o drama dos especialistas de minas e armadilhas - II Parte

Guiné 63/74 – P10205: Convívios (460): Almoço comemorativo dos 38 anos do regresso das 2ª e 3ª CART do BART 6523, no próximo dia 8 de Setembro, Braga (António Barbosa)


1.   O nosso Camarada António Barbosa (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER do 1º Pelotão da 2.ª CART do BART 6523, Cabuca, 1973/74, solicita-nos a divulgação do próximo convívio da sua companhia.

 Almoço comemorativo dos 38 anos do regresso das 2ª e 3ª CCART do BART 6523 
8 de Setembro de 2012
Braga

Camaradas,

Solicito a publicação do programa do próximo Almoço Comemorativo do regresso a casa das 2ª e 3ª CART do BART 6523/73.


O meu obrigado
Cumprimentos
António Barbosa
Alf Mil Op Esp/RANGER do 1º Pel da 2ª CART/BART 6523,
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P10204: Blogpoesia (194): Lá longe a Pátria e Quando o Estado morrer (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Julho de 2012:

Carlos, meu bom amigo,
Provavelmente já sentias saudades das minhas missivas, mas vais ter que me desculpar a inoperância, que fica a dever-se a um misto de falta de inspiração e preguiça, acentuado pelos calores austrais que nos invadem por esta ocasião. Só apetece, é ir p'rá bolanha.
No entanto, em resultado de uma sombria arrumação, descobri uns pretensos poemas escritos, ou associados à Guiné, coisas do século passado, e com duvidoso valor artístico. Seja como for, aqui vai a reprodução de duas dessas obras, com o pedido antecipado de desculpas, tendo em conta os excelentes momentos de poesia que o Blogue nos tem oferecido, e a brevidade deste sacrifício.

Para ti e para o restante tabancal, vai um grande abraço.
JD


Lá longe a Pátria

A Pátria é bela, 
Sonhada. 

Cá longe, 
Onde os dias são anos, 
E a vida ganha-se taco-a-taco, 
tiro-a-tiro, 
que há fome e guerra, 
Sol sem pão, 
Oficiais, 
Sargentos... 
e praças, 
BUM 
BUM, BUM, 
Tensão! 
sai uma obusada, 
lágrimas e rezas, 
morteiros, 
Filhos da mãe! 
Depois passa: 
se calhar, há feridos, ou mais.

O momento é solene, 
o coraçao ainda bate com força, 
ou quase parou, 
é uma luta íntima. 
Raios me partam! 
Lá longe, a Pátria. 

Bajocunda, 1971

Nota do autor:
Poema dedicado ao Foxtrot, um Pelotão de rapazes bons, que só agora tem expressão pública, e a dois valorosos combatentes que foram feridos com gravidade, o Marcolino António Pestana e o Orlando Ferdinando Andrade.

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Quando o Estado morrer

Quando o Estado morrer, 
Vou ver o enterro, 
Numa cova muito funda, 
Os homens de pás e picaretas, 
Vestidos de tunica, 
Deitar terra castanha e preta. 

Depois de se rezar, 
O povo todo vai embora, 
Fica a viúva, coitada, 
Que ali deixa um tacho com flores, 
À espera de um novo Estado, 
Para ser violada.

Este Estado, 
só tem um estado, 
Que é um estado de Estado...
Desastrado.

Bajocunda, 1971
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10053: História da CCAÇ 2679 (51): Uma dívida por pagar (José Manuel M. Dinis)

Vd.- último poste da série de 19 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10168: Blogpoesia (193): Deste-me asas para voar... (Joaquim Mexia Alves)